Estante: Dicas Culturais
Repórteres em ação
Uma equipe de jornalistas investiga casos de abusos sexuais da Igreja em Spotlight.
O Oscar 2016 fcou marcado pelo engajamento de boa parte dos concorrentes, com muitos vencedores deixando em seus discursos de agradecimento mensagens em prol de causas como igualdade racial, diversidade sexual e defesa do meio ambiente. O fato de o filme Spotlight: Segredos Revelados levar os prêmios de roteiro original e melhor filme também acabou refletindo esse tom abertamente político da cerimônia.
Isso porque o filme aborda com bastante propriedade duas importantes questões contemporâneas: o papel do jornalismo em nossa sociedade e os abusos sexuais contra menores cometidos por padres da Igreja Católica.
Dirigido por Tom McCarthy, Spotlight apresenta uma história verídica. No começo dos anos 2000, uma equipe de jornalistas investigativos do jornal The Boston Globe decidiu apurar as suspeitas de que a cúpula da Igreja de Boston estaria acobertando casos de pedofilia envolvendo sacerdotes católicos.
É a partir dessa trama que o espectador é convidado a conhecer os bastidores da redação de um dos jornais mais influentes dos Estados Unidos. Com o Boston Globe em crise financeira e sob o comando de um novo diretor, o clima entre os jornalistas é tenso. O diário mantém uma unidade especial – chamada justamente Spotlight – para trabalhar em pautas investigativas, que demandam um enorme trabalho de apuração e tempo para checar todas as informações. A partir de uma notícia que mencionava um padre acusado de molestar sexualmente uma criança, o novo diretor pede à equipe de Spotlight para verificar se eles estavam diante de um caso isolado ou uma prática disseminada.
A investigação jornalística vai, pacientemente, desvendando como os líderes da Igreja de Boston protegeram dezenas de padres das acusações de abusos sexuais contra menores ao longo de décadas. Como Boston é uma cidade com um grande número de católicos, a Igreja tem enorme poder e mantém relações estreitas com políticos e autoridades policiais e judiciais. Essa influência ajudou a criar uma rede de proteção aos sacerdotes que cometiam abusos, evitando que os casos fossem investigados judicialmente ou vazassem para a opinião pública.
O grande mérito do filme é construir uma atmosfera atraente para levantar a discussão de um tema tão barra-pesada. A narrativa é de tirar o fôlego, mostrando em detalhes os bastidores do jornal, os desentendimentos entre os repórteres e o intrincado processo de investigação.
Apesar de o filme se passar no começo dos anos 2000, o tema, infelizmente, ainda permanece bastante atual. Quando assumiu o poder no Vaticano, em 2013, o papa Francisco formou uma comissão especial para tratar das acusações de abuso sexual cometidas por sacerdotes e autorizou o julgamento de bispos que acobertam os padres acusados de pedofilia.
Também merece destaque a forma como a obra aborda o trabalho jornalístico, mostrando como uma imprensa livre e atuante é um dos instrumentos fundamentais das sociedades democráticas.
SPOTLIGHT: SEGREDOS REVELADOS – Direção | Tom McCarthy Ano | 2015
A ruína Econômica
A Grande Aposta aborda os eventos que levaram à crise de 2008, com boa dose de humor
A tarefa à qual o diretor Adam McKay se propôs não era das mais simples: transformar os eventos que antecederam a eclosão da crise econômica de 2008 em uma comédia de humor negro. Pois o resultado de A Grande Aposta surpreende não apenas pelo fato de o filme ser bem-sucedido em sua proposta cinematográfca como ainda conseguir ser didático a partir de um tema tão complexo.
A origem da crise está ligada aos empréstimos que os bancos norteamericanos concederam a milhões de clientes para comprar suas casas. Mesmo sabendo que muitas dessas pessoas não tinham capacidade financeira para pagar a dívida, os bancos autorizaram a liberação desses créditos, em operações pouco transparentes.
Algumas pessoas que atuavam no mercado financeiro perceberam que a situação logo se tornaria insustentável. Havia a intuição de que, em determinado momento, esses devedores não conseguiriam pagar as hipotecas, o que provocaria uma reação em cadeia que quebraria o sistema bancário.
É aí que entram os protagonistas de A Grande Aposta. No filme, acompanhamos alguns personagens que ganharam fortunas prevendo a ruína da economia norte-americana. Michael Burry, vivido por Christian Bale, por exemplo, trabalha em um fundo de investimento e decidiu apostar milhões na aquisição de um seguro contra a quebradeira do mercado. Mesmo sendo taxado de louco, a história provou quem estava certo.
Além de personagens carismáticos e da narrativa envolvente, A Grande Aposta lança mão de algumas sacadas que conferem ainda mais graça à trama. Quando conceitos mais complicados entram em cena, o filme faz uma pausa na narrativa e introduz celebridades, como a atriz Selena Gomez, que explicam metaforicamente as situações de forma direta para o espectador.
Ainda que essas intervenções não sejam suficientes para que a audiência saia do filme preparada para dar uma aula sobre o mercado financeiro, o recurso é muito útil no entendimento da trama. E, a partir dessa compreensão geral, é possível perceber como as engrenagens da maior economia mundial são movidas por investidores inescrupulosos e especulações, em uma estrutura que pouco difere de um grande cassino. O problema é que, quando a banca perde, o resultado é recessão, desemprego e aumento da miséria.
A GRANDE APOSTA – Direção | Adam McKay Ano | 2015
China em transe
Saga de garoto chinês acompanha as transformações no país desde Mao Tsé-tung
Poucas histórias são tão fascinantes quanto as transformações políticas, culturais e sociais pelas quais a China passou durante o século XX. A vitória do líder comunista Mao Tsé-tung e a proclamação da República Popular da China, em 1949, mergulharam o país em um período de esperanças e turbulências, cujos reflexos moldaram a China que conhecemos hoje.
É justamente esse rico momento da história contemporânea o foco de Uma Vida Chinesa, trilogia em quadrinhos baseada na vida do desenhista chinês Li Kunwu, com a colaboração do diplomata francês P. Ôtié. No Brasil, estão disponíveis os dois primeiros volumes desta coleção.
No primeiro livro, a narrativa acompanha o crescimento do garoto Xiao Li, cuja saga se confunde com a própria história da China maoísta. Nascido em 1955, o herói dessa epopeia cresce imerso no idealismo comunista do pai e ao culto à fgura de Mao Tsé-tung. Sob a ótica de Xiao Li, vivenciamos toda a mobilização coletiva por trás de dois momentos-chave da China no século XX.
A euforia do Grande Salto Para Frente, um projeto que modificou a organização da zona rural para impulsionar a produção agrícola, logo vira frustração com a falta de alimentos que afeta toda a comunidade. Mas é a descrição da Revolução Cultural o grande destaque do primeiro volume. A campanha de perseguições políticas e humilhações públicas é narrada de forma sensível e ao mesmo tempo didática. A abordagem dos autores consegue envolver o leitor, que vê a estrutura familiar de Xiao Li ruir, e ensinar a partir de alguns exemplos dos excessos provocados por tais humilhações contra cidadãos considerados reacionários.
O segundo livro aborda o período imediatamente posterior à morte de Mao Tsé-tung, quando uma nova onda de euforia toma conta do país diante da ascensão dos reformistas liderados por Deng Xiaoping. Os personagens tentam deixar os abusos da Revolução Cultural para trás e vislumbram a modernização da China. Neste volume, a trajetória pessoal de Xiao Li no Exército ganha mais destaque, com sua tentativa de entrar no Partido Comunista Chinês.
Nos dois volumes, em meio às transformações da China, a narrativa tem como foi condutor a evolução do personagem principal como desenhista – dos primeiros traços da infância até a produção de cartazes enaltecendo o regime durante a liderança de Deng Xiaoping.
Aliás, vale ressaltar que, além de apresentar um ótimo retrato da China maoísta, Uma Vida Chinesa brinda o leitor com os belos traços em nanquim de Li Kunwu. As expressões dos personagens e a precisão dos detalhes de cada quadro saltam aos olhos e transformam a leitura em uma experiência ainda mais agradável.
Viagem ao mundo
Quadrinhos de desenhista canadense mostram países pouco conhecidos
Uma boa oportunidade de aprender mais sobre o cotidiano de países pouco conhecidos é mergulhar na obra de Guy Delisle. O canadense ganhou notoriedade por fazer histórias em quadrinhos muito originais, nas quais traça retratos de países nos quais morou, como Coreia do Norte, China, Mianmar (antiga Birmânia) e Israel. Com um traço simples, apresenta suas histórias com muito bom humor e um olhar franco sobre a realidade.
Profissional de desenhos de animação, morou alguns meses em Shenzhen, cidade chinesa, no final dos anos 1990, para supervisionar um trabalho em sua área. Isolado pelas dificuldades de comunicação, teve a grande ideia de transformar sua experiência numa narrativa em quadrinhos, com a qual conduz o leitor a uma realidade pouco conhecida.
O mesmo se repetiu quando passou uma temporada em Pyongyang, capital da Coreia do Norte, um dos países mais fechados do mundo. Sua narrativa direta mostra os absurdos de um país onde os estrangeiros vivem em vigilância constante. Já casado e com um filho, Delisle acompanhou sua mulher, Nadège, integrante da organização Médicos Sem Fronteiras, durante um período em Mianmar, outro país onde a repressão era ostensiva quando lá viveram, entre 2006 e 2007.
Em 2008, a família, então com duas crianças, morou um ano em Israel, enquanto Nadège realizava seu trabalho médico nos territórios palestinos. Nessa situação, a vida de Delisle era, como ele diz, bancar a dona de casa: cuidar dos filhos e, no resto do tempo, fazer desenhos e conhecer o país. Esporadicamente, dava palestras e oficinas para estudantes.
A narrativa sobre Israel é rica e marcada pela convivência intensa do autor com judeus e palestinos. Jerusalém tem milhares de anos de história. A religiosidade, que inclui também o cristianismo em várias manifestações (ortodoxos, católicos), está fortemente presente no calendário e nas edificações.
Próximo à sua casa, há comunidades de judeus ortodoxos. Não muito longe, começa a Cisjordânia, território palestino recortado por um gigantesco muro, construído por Israel para separar as populações, quase onipresente na paisagem. Um estado de guerra entre israelenses e palestinos está presente de forma permanente: sua babá palestina sofre com o irmão assassinado por um judeu. Já Delisle, no zoológico com os filhos, vê passar ao lado uma família cujo pai carrega um fuzil com a naturalidade de quem leva uma bolsa.
Sua história, contada de forma humanista e com um olhar atento para as pessoas, traz muita informação sobre a realidade israelense. Diferentemente do norte-americano Joe Sacco, ao qual Delisle se refere em passagem engraçada, o canadense não faz reportagem em quadrinhos, mas narra sua experiência pessoal. Por isso, o nome Crônicas.
A tragédia dos refugiados que chegam à Europa
Fotorreportagem com colaboração do brasileiro Mauricio Lima vence o Prêmio Pulitzer ao retratar a trágica crise dos refugiados das guerras e da fome que fogem para a Europa
RESTOS DE FUGAS – Um homem observa o amontoado de botes infláveis vazios e coletes salva-vidas, em novembro de 2015, na praia de Lesbos, ilha do litoral da Grécia, testemunhos dos milhares de migrantes que chegam à Europa fugindo de guerras e procurando uma vida melhor
A cor laranja fluorescente dos coletes salva-vidas ganha ainda mais destaque ante o fim de tarde nublado da costa de Lesbos, ilha grega a nordeste do Mar Egeu. Junto a centenas de boias e restos de botes, os objetos formam uma gigantesca pilha, que toma a maior porção da fotografa abaixo. De cima dela, um único homem vislumbra sua extensão, recriando um cenário quase apocalíptico.
Os materiais descartados são os equipamentos básicos utilizados por refugiados que concluíram a recorrente travessia da Turquia rumo à Grécia. O país tornou-se a principal rota de chegada de migrantes, que se lançam em grandes viagens em busca de melhores condições de vida nas nações europeias. A Agência Nacional da ONU para Refugiados (Acnur) estima que mais de 1 milhão de refugiados tenham entrado na Grécia, pelo mar e por terra, entre janeiro do ano passado e março deste ano.
Responsável por acompanhar a chegada de imigrantes do Oriente Médio ao país, o documentarista e fotojornalista brasileiro Mauricio Lima foi premiado com o Prêmio Pulitzer 2016, na categoria Fotografa de Notícias. Fruto de um trabalho conjunto com Sergey Ponomarev, Tyler Hicks e Daniel Etter para o jornal norte-americano The New York Times, em 2015, a série Exodus traz um olhar bastante sensível para aqueles que fogem da fome e da guerra em seus países, no maior movimento de migração humana desde a II Guerra Mundial. As fotos foram feitas no segundo semestre, principalmente com grupos da Síria, Iraque e Afeganistão.
Semelhantemente à história da fuga do povo hebreu do Egito, contada no livro bíblico Êxodo, a saga dos refugiados é contada em uma narrativa visual. A chegada pelo mar é representada com as embarcações precárias, nos semblantes desgastados pela travessia à deriva e no grande número de objetos deixados, às pressas, para trás. A emoção dos que conseguem chegar à terra firme contrasta-se com a dureza das imagens de corpos levados pelas ondas, que morreram sem alcançar “a terra prometida”. A narrativa continua, registrando o clima de ajuda mútua entre eles, as viagens em ônibus abarrotados, as barracas instaladas em praças. Chamam a atenção o grande número de crianças e as filas para receber agasalhos, água, alimentos. A repressão das autoridades locais traduz-se nas cenas de conflito com a polícia, decorrentes das grandes aglomerações. As grades altas, sentinelas e cercas pontiagudas evidenciam: apesar de tolerados, os que chegam não são bem-vindos ali.
A série de fotos pode ser vista no site oficial do Prêmio Pulitzer: https://www.pulitzer.org/winners/mauricio-lima-sergey-ponomarev-tyler-hicks-and-daniel-etter.