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Literatura: Humanismo

LITERATURA DE TRANSIÇÃO

Entre o final da Idade Média e o início do Renascimento, o Humanismo (1418-1527) coloca o homem como o responsável por seu destino

O Humanismo situa-se numa fase de transição entre a decadência dos valores feudais e o surgimento do Renascimento. Uma das principais obras do período, a peça Auto da Barca do Inferno foi representada pela primeira vez em 1517. Ela integra a famosa trilogia das barcas, composta também de Auto da Barca do Purgatório (1518) e Auto da Barca da Glória (1519).

A ação do Auto da Barca do Inferno se passa em um porto, situado em um mundo além- túmulo, no qual estão ancoradas duas barcas: a primeira, comandada pelo Diabo, tem como destino o inferno; a segunda, capitaneada pelo Anjo, seguirá para o paraíso. Nota-se uma visão de mundo cristã, baseada na crença de vida após a morte e na recompensa das virtudes e punições dos pecados.

Nessa peça, Gil Vicente (1465-1536?) critica os setores da sociedade de seu tempo: diversos representantes das class es sociais são castigados porque cometeram práticas condenáveis pela moral cristã. Apenas dois segmentos são enviados ao paraíso: um bobo (o parvo Joane), cuja loucura o isenta de responsabilidade pelos seus atos, e um grupo de cavaleiros cruzados, que morreram em defesa da fé de Cristo. A própria Igreja, como instituição, não é poupada: um Frade é castigado pelo afastamento da vida espiritual. No entanto, essa crítica atinge apenas o comportamento do clero e não questiona os princípios da religião cristã, defendidos pelo autor.

Gil Vicente

Considerado o fundador do teatro português, suas peças foram produzidas durante a passagem da Idade Média para a Moderna. Apresenta aspectos conservadores (como a defesa da moral cristã) e inovadores (como a crítica à sociedade). O teatro vicentino é dividido em farsas (peças de caráter cômico e crítico sobre questões sociais) e autos (peças geralmente de cunho religioso).

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Joane[1]. Hou daquesta!
Diabo. Quem é?
Joane.   Eu sô.
É esta a naviarra vossa?
Diabo. De quem?
Joane. Dos tolos.
Diabo.  Vossa.
Entra!
(…)

Diabo. De que morreste?
Joane.  De quê?
Samicas de caganeira.[2]
Diabo. De quê?
Joane. De caga merdeira!
Má rabugem que te dê!
(…)

Joane.  Aguardai, aguardai, houlá!
E onde havemos nós d’ir ter?
Diabo. Ao porto de Lúcifer[3].”


IDEOLOGIA Todo texto veicula determinada ideologia, isto é, um conjunto de ideias, valores e crenças característicos de um período ou de um determinado autor. No caso de Gil Vicente, é possível reconhecer uma defesa de valores morais típicos do cristianismo, como a celebração das virtudes e a condenação dos vícios.

INTENCIONALIDADE Note a intenção de Gil Vicente de formar um painel representativo dos diferentes grupos da sociedade portuguesa, para apontar modos de correção dos costumes, de acordo com a moral cristã.


[1] O BOBO: O parvo (tolo) Joane tem como objetivo provocar o riso, inserindo um elemento cômico em uma peça que trata da trágica realidade da morte e da corrupção da sociedade portuguesa. A inocência e a simplicidade de Joane são encaradas como virtudes que o tornarão merecedor do paraíso. Note que o personagem é apresentado como desatento e desinformado: dirige-se ao Diabo sem medo e o interroga continuamente. A loucura do bobo permite que ele aponte sem receio de censura os problemas da sociedade portuguesa.

[2] LINGUAGEM COLOQUIAL: Os diálogos do Auto da Barca do Inferno estão repletos de expressões populares e elementos característicos da linguagem coloquial do período. Repare na espontaneidade da fala do parvo Joane, que assinala a origem popular da personagem: a pouca instrução e a loucura fazem com que o Bobo possa falar tudo o que lhe vem à cabeça (até mesmo que morreu de “samicas de caganeira”).

[3] LINGUAGEM COLOQUIAL: Os diálogos do Auto da Barca do Inferno estão repletos de expressões populares e elementos característicos da linguagem coloquial do período. Repare na espontaneidade da fala do parvo Joane, que assinala a origem popular da personagem: a pouca instrução e a loucura fazem com que o Bobo possa falar tudo o que lhe vem à cabeça (até mesmo que morreu de “samicas de caganeira”).

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A REPRESENTAÇÃO DO BOBO

A escritora Clarice Lispector, em uma de suas crônicas, também tratou da figura do bobo. Algumas características gerais desse personagem lembram o parvo Joane, o bobo que alcança o paraíso no Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente

Lispector utiliza a ironia para tratar da condição do bobo: ao contrário do que muitos pensam, ela é vantajosa, pois os ditos espertos desprezam a simplicidade dos bobos, que, na verdade, enxergam detalhes da vida que passam despercebidos da maioria. Da mesma forma, o parvo de Gil Vicente aponta as mazelas sociais dos personagens que comparecem à frente das barcas.

O destino que Lispector reserva aos bobos também é o paraíso. O próprio Cristo, por agir de modo diferente da maioria, acabou crucificado. Perceba o tratamento irreverente que a autora confere à temática religiosa.

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“O bobo[1], por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo.
(…)
O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não veem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os veem como simples pessoas humanas. O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver.
(…)
Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.
(…)

A Descoberta do Mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.


POLISSEMIA Uma mesma palavra pode apresentar múltiplos sentidos conforme o contexto em que é empregada. “Bobo” também pode designar, como ocorria na Idade Média, a profissão dos bufões (fanfarrões), que entretinham as cortes com demonstrações de comportamentos pouco convencionais.


[1] SUBSTANTIVOS E ADJETIVOS: Veja que a palavra “bobo” é empregada como substantivo e designa um ser humano aparentemente desatento e estúpido. Em outros contextos, a palavra “bobo” pode ser utilizada como adjetivo para caracterizar uma pessoa ou situação tola e ingênua (por exemplo: “Conheci um homem bobo”).

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A cena representa uma das imagens (texto não verbal) mais recorrentes da arte medieval: as danças macabras, que mostram um desfile no reino dos mortos, com esqueletos e pessoas recém-falecidas. O Auto da Barca do Inferno é um texto verbal que apresenta uma estrutura sequencial que remete às danças macabras: os personagens se alternam no palco, diante das duas barcas, numa espécie de dança. Em ambos os casos, a lição, no contexto da religiosidade medieval, é uma só: o destino de todos, sem distinção de classe social, é o mesmo. A morte aparece como elemento responsável por igualar todas as pessoas.

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RUMO ÀS TREVAS

(…)
Diante disso, o que oferecem os parlamentares liderados por Eduardo Cunha? O Estatuto da Família, marginalizando os homossexuais; nenhuma discussão sobre aborto; a revisão do Estatuto do Desarmamento, para que mais gente tenha armas e dê tiros por aí; a redução da maioridade penal, para aumentar prisões e ódios.
É claro que esses políticos representam o que muitos brasileiros pensam. Mas quem pensa diferente tem direito a dizer em voz alta que esses projetos significam um recuo às trevas. (…)

Folha de S.Paulo, 27/4/2015


Neste trecho de artigo, o autor sugere que parte dos parlamentares representa uma parcela da sociedade brasileira reticente às mudanças e ganhos sociais e arraigada a valores ultrapassados e arcaicos. Desta forma, ele ironiza que caminhamos não para o futuro, mas para o passado. Segundo ele, pelas propostas cada vez mais retrógradas, estamos perto de chegar à “Idade das Trevas”.


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“Diabo. Que é isso, padre? Que vai lá?
Frade. Deo gratias![1] Som cortesão.
Diabo. Sabês também o tordião[1]?
Frade. Por que não? Como ora sei!
Diabo. Pois, entrai! Eu tangerei
e faremos um serão.
Essa dama[2] é ela vossa?
Frade. Por minha a tenho eu,
e sempre a tive de meu.
Diabo. Fezeste bem, que é fermosa!
E não vos punham lá grosa
no vosso convento santo?
Frade. E eles fazem outro tanto!
Diabo. Que cousa tão preciosa!
Entrai, padre reverendo!
Frade. Pera onde levais gente?
Diabo. Pera aquele fogo ardente
que não temestes vivendo.
Frade. Juro a Deus que não t’entendo!
E est’hábito não me val?
Diabo. Gentil padre mundanal,
a Berzabu vos encomendo!”


VISÃO DE MUNDO Durante a Idade Média, predominara uma visão de mundo teocêntrica, centrada no poder de Deus e na perfeição da Igreja. Na época de Gil Vicente, a realidade já estava mudando: os hábitos religiosos não são mais garantia para a conquista do paraíso; são as atitudes virtuosas que valem. É isso que o Diabo mostra ao Frade ao convidá-lo a entrar na barca: apesar de pertencer à Igreja, a vida mundana pode levar à condenação de qualquer um. Ainda que a moral defendida pelo autor reflita uma concepção de mundo religiosa, a crítica social revela a transformação da mentalidade no período.


[1] ALEGORIA: No teatro vicentino, elementos concretos podem, muitas vezes, representar ideias abstratas, geralmente relacionadas a virtudes ou defeitos humanos. Esse recurso recebe o nome de alegoria. Na cena do Frade, o tordião (canção festiva) e a dama (amante do padre) representam, alegoricamente, o apego aos prazeres mundanos e a luxúria, que corrompiam o clero

[2] IRONIA: Vários setores da sociedade são apresentados de modo irônico. Por trás de todo o luxo e erudição que o Frade deseja transparecer, escondem-se um homem hipócrita e as mazelas da instituição religiosa. Por trás da figura aparentemente inofensiva e desatenta do Parvo, está um indivíduo capaz de reconhecer os problemas sociais de seu tempo e zombar deles.

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“Diabo.  Entrai cá! Que cousa é essa?
Eu não posso entender isto!
Cavaleiro.  Quem morre por Jesu Cristo
não vai em tal barca
como essa![1]
(…)

Anjo.  Ó cavaleiros de Deus,
a vós estou esperando, 
que morrestes pelejando 
por Cristo, Senhor dos céus!
Sois livres de todo mal,
mártires da Madre Igreja,
que quem morre em tal peleja
merece paz eternal.”[2]

BERARDINELLI, Cleonice (org.). Antologia do Teatro de Gil Vicente. 3.ed. Rio de Janeiro/  Brasília: Nova Fronteira/ INL, 1984.

[1] CAVALEIROS MEDIEVAIS: No período medieval, a relação política e social entre cavaleiros e senhores feudais originou o código de cavalaria. A defesa das terras era garantida por cavaleiros que juravam servir ao seu senhor com lealdade (vassalagem). No plano cultural, a relação dos cavaleiros com os senhores feudais levou ao aparecimento, durante o Trovadorismo, do código do amor cortês, no qual um poeta (trovador) expressava seus sentimentos por uma dama da corte (considerada perfeita e superior).

[2] MORAL CRISTÃ: O Auto da Barca do Inferno defende uma moral cristã. O comportamento dos cruzados, que morreram em defesa do cristianismo, é visto como virtuoso. A fala do Anjo, destacando as qualidades heroicas dos soldados, tem como objetivo estimular o comportamento virtuoso do público e a adesão à religião cristã. A recompensa pelo sofrimento terreno, para o autor, é a conquista do paraíso.

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O JULGAMENTO FINAL

O Auto da Compadecida, peça escrita em 1955 por Ariano Suassuna e ambientada no Nordeste do Brasil, apresenta traços muito semelhantes aos dos autos de Gil Vicente.

No fim da peça, as principais personagens participam de um julgamento após a morte. Estão presentes o Encourado (demônio caracterizado com trajes nordestinos), que levará os condenados para o inferno, e a Compadecida (Nossa Senhora), que conduzirá os bem-aventurados para o paraíso.

Assim como no Auto da Barca do Inferno, o padre e o bispo – representantes da Igreja – são condenados.  O Encourado aponta uma série de atitudes reprováveis que contradizem os preceitos cristãos.

Nas duas obras, questões características da sociedade do período são apresentadas de modo a enfatizar as virtudes e os vícios humanos.

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“(…)
Manuel – Então, acuse o padre.
Padre – De mim ele não tem nada o que dizer!
Encourado – É o que você pensa, minha safra hoje
está garantida. Tudo o que eu disse do bispo pode
se aplicar ao padre. Simonia, no enterro do cachorro,
velhacaria, política mundana, arrogância
com os pequenos, subserviência com os grandes.”

“(…) A Compadecida – Na verdade, João tem toda razão.
Falei assim por falar, mas que São José era
um santo, não é nenhuma novidade.
Encourado – A senhora está falando muito
e vê-se perfeitamente sua proteção com esses nojentos,
mas nada pode dizer ainda
em favor da mulher do padeiro.
A Compadecida – Já aleguei sua condição de mulher,
escravizada pelo marido e sem grande possibilidade
de se libertar. Que posso alegar ainda
em seu favor?

Padeiro – A prece que fiz por ela antes de morrer.
O mais ofendido pelos atos que ela praticava era eu e,
no entanto, rezei por ela. Isso deve ter algum valor.
A Compadecida – E tem. Alego isso em favor dos dois.”

Agir, 2005.

PERSONAGENS ALEGÓRICAS

A peça teatral Lisbela e o Prisioneiro (1964), de Osman Lins, é uma comédia com diversas referências à cultura nordestina brasileira. O par romântico da história é formado pela ingênua e sonhadora Lisbela e pelo malandro Leléu. No trecho abaixo, observa-se um diálogo do casal, em que ficam evidentes as virtudes da moça e os vícios do rapaz. Assim como no teatro de Gil Vicente, notam-se diferentes com- portamentos humanos retratados no perfil dos personagens centrais. Por isso, podem ser denominados personagens alegóricos.

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(…)
Lisbela: Não! Leléu, você não pode ir?[1]
Leléu: Pude. Estou com dois cavalos aí fora. Mas era grosseria eu ir com a senhora.
Lisbela: Não precisa continuar me chamando de senhora.
Leléu: Pra mim é o que a senhora há de ser sempre. Chamar “você” é um exagero, não mereço tanto.
Dr. Noêmio: Por que você não foi embora, rapaz? Por que voltou?
Leléu: Por causa de Dona Lisbela, Doutor. Pra ficar perto do chão onde ela pisa.
Lisbela[2]: Você podia ouvir minhas pisadas junto de você a vida toda. Por que não me levou?
Leléu[3]: Porque a senhora não merece a incerteza da minha vida. Não tenho eira nem beira, que trono lhe podia oferecer?
(…)

[1] GÊNERO DRAMÁTICO: A estrutura característica desse gênero é marcada pela indicação das falas e pelo caráter coloquial, apropriado à encenação teatral.

[2] LISBELA: Noiva oficial de  Dr. Noêmio, representa a inocência e a pureza.

[3] LELÉU: Esse protagonista revela-se complexo, pois apresenta diferentes identidades. Ex-circense, é mulherengo e volúvel.

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O filme Lisbela e o Prisioneiro, de Guel Arraes, lançado em 2003, a partir da adaptação da peça de teatro de Osman Lins, é uma divertida comédia romântica. A atriz Débora Falabella e o ator Selton Mello interpretam o casal protagonista da trama, ambientada no interior de Pernambuco. Destaque para a trilha sonora, que traz Lisbela, de Los Hermanos, e Você Não Me Ensinou a Te Esquecer, hit dos anos 70 de Fernando Mendes, interpretada por Caetano Veloso.

Literatura: Humanismo
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