A imensidão do mundo muçulmano
A ação de grupos fundamentalistas que dizem agir em nome do islã alimenta distorções sobre a segunda crença mais popular do planeta
Nos últimos anos, a imagem do islamismo ficou muito associada a estereótipos do terrorismo, da intolerância e da repressão aos direitos individuais. Essa visão deturpada é consequência da atividade de grupos violentos como a Al Qaeda e o Estado Islâmico (EI), que dizem basear seus atos brutais no islã. Ao escolher o caminho do fundamentalismo para disseminar sua interpretação radical do islã, essa minoria barulhenta acaba silenciando outras tendências da religião – uma expressiva maioria que repudia os atos de violência.
Ainda que essa pequena fração fundamentalista ganhe os holofotes da mídia, ela é incapaz de representar toda a diversidade de uma comunidade formada por 1,7 bilhão de adeptos do islamismo. É a segunda crença mais popular, depois do cristianismo, que tem 2,4 bilhões, e seus seguidores aumentam numa velocidade maior do que a religião de Cristo.
Ao longo de seus quase 14 séculos de existência, o islamismo exerceu grande infuência, não apenas na esfera religiosa, mas nos campos da política, da economia e das relações internacionais.
Uma de suas principais características é abranger não apenas um corpo de crenças, mas orientações que infuenciam toda a vida social de seus praticantes.
Rápida expansão
O islamismo, ou islã, cujos seguidores são conhecidos como islâmicos ou muçulmanos, é uma religião monoteísta baseada nos ensinamentos de Mohamed (570-632), chamado no Ocidente de Maomé, que nasceu e viveu onde atualmente se situa a Arábia Saudita. Aos 40 anos, Maomé passou a ter visões e ouvir vozes, que atribuiu ao anjo Gabriel, trazendo-he a revelação da palavra de Deus (Alá).
Posteriormente, essas mensagens foram consolidadas num livro, o Alcorão. Perseguido pela elite comercial de Meca, sua cidade natal, Maomé partiu em 622 para Medina. Esse movimento, conhecido como Hégira (ou migração), é um dos elementos constitutivos do islamismo. Conquistando adeptos rapidamente, Maomé, chamado pelos seguidores de profeta, tornou-se não apenas o chefe religioso, mas o governante político e comandante militar de Medina. Os novos féis dispuseram-se a realizar uma guerra santa de expansão do islã, que se espalhou por todas as regiões da Arábia.
Mesmo após a morte de Maomé, exércitos comandados por seus sucessores invadiram territórios vizinhos e em menos de um século formaram um grande império, o califado. O dirigente do novo império era o khalifa (califa), termo que equivale a representante de Maomé após a sua morte. Ao longo da história, os muçulmanos constituíram três grandes califados ou impérios: Omíada (661-750), Abássida (750-1258) e Otomano (1281-1922). O fim do Império Otomano marcou o fm do predomínio muçulmano como força política unificada de uma ampla região do planeta.
Sunitas e xiitas
Os muçulmanos dividem-se em uma pluralidade de correntes, mas duas grandes vertentes são as principais: os sunitas (cerca de 85%) e os xiitas (15%). A origem dessa divisão remonta à disputa pela sucessão de Maomé à frente do islã. Após a sua morte, duas tendências se manifestaram. A minoritária defendia que o sucessor fosse alguém da família do profeta – Ali, primo e genro de Maomé, era quem liderava essa corrente. Já a outra tendência entendia que qualquer muçulmano poderia ser o escolhido, desde que fosse da tribo de Maomé – o clã dos coraixitas – e aceito pela comunidade.
Este último grupo que defendia uma eleição entre seus seguidores acabou se impondo, e Abu Bakr, amigo de Maomé, tornou-se o califa, em 632. Seguiram-se outros dois califas (Omar e Otman) até Ali, o primo de Maomé, assumir o poder, o que alterou o sistema sucessório em favor de seu grupo e desencadeou uma guerra civil dentro do islã. Ali foi morto em 661, abrindo espaço para que Muawiyya se tornasse califa, iniciando a primeira dinastia califal, a dos omíadas.
A maioria dos árabes aceitou a pacificação sob seu comando. Mas os seguidores de Ali consideravam Muawiyya um usurpador e formaram o Partido de Ali (Shiat Ali), que é a origem dos xiitas. O
segundo flho de Ali, Hussein, liderou uma rebelião contra Yazid, flho e sucessor de Muawiyya, mas foi facilmente derrotado. Isso consolidou o poder dos omíadas, que se tornaram os seguidores da tradição (sunna), ou sunitas.
Geopolítica e religião
Durante séculos, as rivalidades se assentaram, e as duas alas do islamismo conviveram em relativa paz. Em boa medida, as divergências mais recentes têm a ver com a Revolução Iraniana, vitoriosa em 1979, que levou os xiitas ao poder. A ascensão política do Irã foi vista como uma ameaça à hegemonia regional da Arábia Saudita, guardiã das tradições sunitas na região.
Mais do que um grande confito sectário, o atual antagonismo entre xiitas e sunitas está mais ligado a disputas geopolíticas. Na verdade, a rivalidade é alimentada menos pela imposição de uma vertente religiosa sobre a outra; trata-se mais de uma disputa por poder local e regional. Nessa estratégia, os governantes acabam insufando o ódio religioso para atingir seus objetivos políticos – seja o controle do poder local, a expansão da infuência regional ou a distribuição das riquezas nacionais para o seu grupo de apoio. É o que tem acontecido em países como Síria, Iraque, Líbano, Barein e Iêmen. A interferência estrangeira, especialmente das potências ocidentais, também exerce papel decisivo neste cenário.
O fundamentalismo wahabita
A atual onda fundamentalista no islã tem origem em algumas correntes dentro do sunismo que pregam uma interpretação rigorosa e literal do Alcorão. O salafsmo e o wahabismo são as expressões mais ativas dessas tendências.
Salafsmo, que vem da expressão al-salaf, ou seja, os predecessores, designa de forma genérica essa linha de interpretação, enquanto wahabismo diz respeito diretamente ao movimento criado pelo teólogo Mohammed ibn Abd al-Wahhab, no século XVIII, em aliança com o clã dos Saud – que formaria uma dinastia responsável pela reunifcação árabe na Arábia Saudita, em 1932. Os wahabitas passaram a ter grande infuência na Arábia Saudita. A família Saud detinha o poder político e econômico, enquanto os clérigos wahabitas passaram a controlar a educação e o sistema judiciário.
Com a infuência regional e internacional obtida com a riqueza do petróleo, os sauditas difundiram esses princípios em vários países. As monarquias da Arábia Saudita e do Catar teriam gasto, desde a década de 1970, cerca de 3 bilhões de dólares por ano para financiar a construção de madrassas, universidades, mesquitas e outras instituições, para difundir o wahabismo pelo mundo. As potências ocidentais não se opuseram a essa ação, porque os dois países são seus aliados e mantêm inúmeros negócios – em particular a venda de petróleo e a compra de armas – que ajudam a movimentar a economia norte-americana e de várias nações europeias.
Os preceitos wahabistas inspiraram diversos grupos terroristas que dizem combater em nome do islã. O fortalecimento dessa corrente ganhou grande impulso na invasão do Afeganistão pela União Soviética, em 1979. Diversos grupos e militantes inspirados no wahabismo lutaram no país, com apoio ocidental. Foi o caso de Osama bin Laden, que futuramente dirigiria a Al Qaeda.
Na atual crise envolvendo o extremismo islâmico no Oriente Médio, Catar e Arábia Saudita são acusados de financiar e armar grupos fundamentalistas que se opunham ao regime sírio, mas posteriormente juntaram-se ao EI, levando consigo as armas e o dinheiro.
Ainda que o fundamentalismo esteja atualmente associado aos islâmicos, grupos fundamentalistas existem em várias religiões. Eles defendem que interpretações literais dos textos religiosos devem ser a única orientação para diversos aspectos da vida, das relações familiares à organização do Estado e da sociedade. É uma posição que se opõe à perspectiva secular adotada desde a Revolução Francesa (1789), quando os negócios de Estado se separaram das convicções religiosas. A rigor, o termo fundamentalismo é inexato, quando se fala em muçulmanos, porque designava movimentos surgidos no início do século XX entre os protestantes mais conservadores dos Estados Unidos (EUA). Eles queriam a volta aos fundamentos da fé cristã e defendiam que a Bíblia deveria ser entendida literalmente. Grupos protestantes conservadores nos EUA, por exemplo, são contra o aborto e a igualdade de direitos civis para os homossexuais. Nos católicos, manifesta-se em organizações como a tradicionalista Opus Dei, surgida na Espanha. Entre os hinduístas, um exemplo é o Partido Bharatiya Janata (BJP), que atualmente governa a Índia e tem um histórico de intolerância em relação aos cultos muçulmanos no país.
Jihad e Sharia
Entre as interpretações literais que o wahabismo faz dos textos sagrados, a mais polêmica diz respeito à jihad, traduzida em geral por “guerra santa”. Este sentido de conotação mais militar se impôs, mas não corresponde ao que está contido no Alcorão. Literalmente, jihad é “esforço ou empenho em favor de Deus”. Pode referir-se à disciplina da transformação interior, contra os próprios erros ou os da comunidade (grande jihad) ou à guerra de conversão dos inféis (pequena jihad).
A interpretação literal das normas contidas no Alcorão também deu origem à sharia, que pode ser traduzida por “o caminho certo”. Trata-se do código legalislâmico, que estabelece regras a serem obedecidas na vida em sociedade. Sua consolidação data do século IX, quase 250 anos depois da morte de Maomé. Isso explica muitas das contradições apontadas por especialistas entre o Alcorão e a sharia. O Alcorão por exemplo, diz que há igualdade entre homens e mulheres, enquanto a sharia afirma que a mulher é inferior e deve cobrir-se. A sharia abrange todos os aspectos da vida do muçulmano – as regras familiares, a sexualidade, os hábitos alimentares, as obrigações religiosas e as práticas econômicas e políticas. De modo geral, são normas restritas à esfera privada e pessoal dos muçulmanos. Mas em estados religiosos, como a Arábia Saudita, ela é instituída como sistema de lei, podendo ser aplicada pelas cortes de justiça. Dessa forma, crimes como o adultério, o roubo e a ingestão de bebidas alcoólicas podem ser punidos com amputações, chibatadas e até mesmo a morte.
Em muitos países de maioria muçulmana, especialmente nos que adotam a sharia institucionalmente, existem restrições às liberdades democráticas e desrespeito aos direitos humanos. No entanto, há uma grande diferença dessas nações para a situação da Turquia e da Indonésia, por exemplo. Ainda que a democracia nessas nações enfrentem desafios, são Estados de maioria muçulmana em que as instituições são seculares (separadas da religião) e que realizam eleições regulares. Da mesma forma, apesar de o fundamentalismo islâmico ser uma ameaça à segurança internacional, a imensa maioria da comunidade muçulmana abomina o terrorismo e prega a tolerância. São exemplos que mostram como algumas generalizações simplistas não traduzem a realidade e ignoram a diversidade da sociedade muçulmana.
Para se aprofundar no assunto
O GUIA DO ESTUDANTE separou três livros que tratam do mundo muçulmano para quem quer se aprofundar no assunto sem cair em estereótipos. Confira:
Em nome de Deus: O fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo, de Karen Armstrong
Karen Armstrong, considerada uma das maiores especialistas do mundo no estudo das religiões, trata neste livro sobre a ascensão do fundamentalismo entre as três religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo) durante o século 20. Em suas palavras, a “democracia, pluralismo, tolerância religiosa, paz internacional, liberdade de expressão, separação entre Igreja e Estado” não interessam a estes movimentos fundamentalistas. O livro cumpre um papel importante ao lançar luz sobre o autoritarismo também no cristianismo e no judaismo, não isolando o islamismo nesta posição.
Hajja, hajja: A experiência de peregrinar, de Francirosy Campos Barbosa
Escrito pela antropóloga Francirosy Campos Barbosa, professora na Universidade de São Paulo (USP), o livro relata uma das experiências centrais da fé muçulmana: a peregrinação à cidade de Meca, na Arábia Saudita. Francirosy reconstrói sua própria experiência de peregrinação do ponto de vista antropológico, destacando como o islamismo está relacionado à vivência e prática da fé.
O mundo falava árabe: A civilização árabe-islâmica clássica através da obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta, de Beatriz Bissio Moreira
Este livro nasce de anos de pesquisa acadêmica acerca da constituição e expansão do mundo árabe. Beatriz Bissio de Moreira busca dissociar os árabes da leitura comumente feita acerca destes enquanto bárbaros ou fundamentalistas, destacando a riqueza cultural e as contribuições que o próprio islamismo deixou para a estruturação de determinadas sociedades.
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