O que é racismo recreativo e por que ele ainda é tolerado?
As "piadas" de Léo Lins e as ofensas sofridas por Vini Jr: conheça o termo "racismo recreativo" - um preconceito ainda minimizado e com efeitos devastadores
Nas arquibancadas lotadas, torcedores rivais gritam em coro “Vinicius eres un mono” – “Vinicius é um macaco”, em português. O alvo da ofensa é Vini Junior, brasileiro, um dos maiores jogadores de futebol do mundo, que hoje veste a camisa do Real Madrid – e também um homem negro. A cena faz parte de um compilado de vídeos publicado esta semana nas redes sociais do jogador que, no domingo (21), foi mais uma vez alvo de racismo em campo.
O caso gerou comoção especialmente no Brasil, onde fãs, artistas e políticos cobram um posicionamento da La Liga, a primeira divisão da liga espanhola de futebol profissional. No país que reivindica o título de democracia racial, no entanto, casos como esse repetem-se cotidianamente – dentro e fora de campo.
Em 2014, uma torcedora dirigiu a exata mesma ofensa ao goleiro do time rival durante uma partida, aqui no Brasil. O caso foi parar na justiça sob a acusação de injúria racial, mas a defesa alegou que a fala não representava o que a mulher, de fato, pensava a respeito de pessoas negras. Ela até mantinha amizades com negros. E, afinal de contas, o que é dito durante um jogo não deve ser levado tão a sério.
“Para seus defensores, o campo de futebol é um espaço distinto de outros porque é um lugar de recreação, motivo pelo qual seus atos não poderiam ser julgados com o mesmo rigor que se tivessem ocorridos em outro espaço”, explica o jurista Adilson José Moreira, pós-doutor pela Universidade de Harvard e pesquisador da Universidade de Berkeley.
Isso significa que o racismo, quando proferido em tom de piada ou em um espaço de diversão, deixa de ser racismo?
Foi sobre essa pergunta que Adilson se debruçou para cunhar o termo “racismo recreativo”, abordado por ele em um livro que leva o mesmo nome, publicado em 2019.
O passado escravocrata brasileiro, discursos de ódio, os limites da liberdade de expressão e até o papel social do humor: entenda como o racismo recreativo abarca todos estes assuntos que podem – e já foram – cobrados em diversos vestibulares.
O que é racismo recreativo
Reproduzidas em ambientes que vão do campo de futebol aos palcos de stand up, essas ofensas disfarçadas de piada têm um elemento que une todos os tipos de racismo: “As pessoas querem convencer a sociedade como um todo que negros, asiáticos, indígenas, não são atores sociais competentes”, afirmou o jurista em entrevista ao canal Canal Preto.
É o que ocorre quando, em piadas ou esquetes, a figura do homem negro é associada a de um assaltante. Ou a mulher negra é retratada de uma forma hipersexualizada. Ou ainda quando indígenas são mostrados como preguiçosos.
Mas porque, então, tanta gente ri dessas piadas? Porque, justamente, não as veem como racistas. Para uma parcela significativa da sociedade, ofensas que não causam danos visíveis não podem ser encaradas dessa forma. Afinal, o objetivo da piada é o riso, e “nada além disso”.
Mas grandes nomes da filosofia, sociologia e psicanálise discordariam.
Na Grécia Antiga, pensadores afirmavam que o humor envolve algum grau de malícia, já que muitas vezes rimos de piadas que retratam situações ridículas envolvendo certas classes de pessoas.
Mais tarde, Thomas Hobbes, filósofo inglês famoso pelo livro “Leviatã”, propôs a teoria da superioridade no humor. Segundo ele, observar os infortúnios e confusões envolvendo outras pessoas nos faz sentir mais autoconfiantes. Ao nos compararmos às pessoas que são alvo da piada, nos sentimos superiores a elas.
Um outro nome de peso que faz coro a essa interpretação é o pai da psicanálise, Sigmund Freud. Para ele, representar a outra pessoa como um ser de menor valor moral, como desprezível ou como um personagem cômico, é uma forma de alcançar a satisfação psicológica. Um jeito de satisfazer a agressividade de uma forma “relativamente benigna”.
A teoria do racismo recreativo baseia-se nessas leituras de humor, mas vai além – e diz que essas piadas não são apenas uma forma de satisfação individual, mas fazem parte de um projeto racial.
Em outras palavras, o racismo se manifesta de diferentes formas, em diferentes meios e com diferentes roupagens. O humor, sendo um tipo de mensagem que exprime ideias e valores, é uma dessas roupas.
“O humor hostil cumpre então uma função importante: preservar a distinção social positiva de um grupo em relação a outro por meio da ênfase nos aspectos negativos dos que são representados em expressões humorísticas. Isso ocorre a todo momentos, mas principalmente quando o avanço de direitos de minorias ameaça desestabilizar o sentimento de superioridade”, afirma Adilson José Moreira.
Onde o humor, a escravidão e a eugenia se encontram
Há poucos dias, assistimos a um exemplo prático de piada que explorava um aspecto negativo da população negra – e que parece, justamente, ser uma reação à conquista de direitos, ainda que a escravidão tenha sido abolida há 135 anos.
“Negro não consegue achar emprego, mas na época da escravidão já nascia empregado e também achava ruim”, declarava, entre risos da plateia, o humorista Léo Lins, em um especial de comédia gravado e publicado no Youtube.
O vídeo foi tirado do ar por determinação da justiça, que entendeu que a piada reproduzia “discursos e posicionamentos que hoje são repudiados”.
Léo Lins, homem branco reconhecido por ter minorias sociais como alvo de suas piadas, fez escola em uma ampla tradição do humor brasileiro – que muitas vezes colocou as próprias pessoas negras como vetores do humor racista.
O autor de Racismo Recreativo resgata em seu livro os casos de Tião Macalé, Mussum e Vera Verão, personagens icônicos do humor brasileiro que reproduziam estereótipos a respeito da população negra. O feio, o bêbado e a bicha preta.
Uma análise aprofundada do conteúdo das piadas racistas mostra ainda que elas reproduzem os mesmos elementos que faziam parte de políticas eugenistas, que visavam eliminar a herança africana da população brasileira por meio do “embranquecimento”.
E os exemplos não ficam restritos só ao Brasil. No século 19, o americano Thomas D. Rice preconizou o que hoje ficou conhecido como “blackface”: ele pintava seu corpo com tinta preta e encenava um homem negro em apresentações humorísticas caricatas. Seu personagem, que ficou conhecido como Jim Crow e mais tarde deu nome a um conjunto de políticas segregacionistas no sul dos Estados Unidos, era burro, maltrapilho e bobo. Como eram lidas as pessoas negras.
Discurso de ódio versus liberdade de expressão
“Não gosta de uma piada? Não consuma essa piada. Se a piada não incitou o ódio e a violência, ela é só uma piada”. É desta forma que o humorista Fábio Porchat saiu em defesa de Léo Lins quando o vídeo contendo a piada com a escravidão precisou ser retirado do ar.
A leitura de que o racismo recreativo não incita o ódio, no entanto, é mais uma que Adilson Moreira rebate em seu livro. O jurista explica que, para diversos estudiosos da área, o discurso de ódio é uma forma de comunicação que expressa hostilidade em relação a certos grupos. E associar pessoas negras à criminalidade, promiscuidade e por aí vai certamente pode ser lido como uma mensagem hostil.
Ele afirma que o discurso de ódio, por sua vez, tem como efeito o assalto à dignidade das pessoas as que ele se dirige – uma forma de dizer que elas não merecem o mesmo respeito do aqueles que estão rindo.
Essas ofensas fantasiadas de piada tem potencial de causar danos psicológicos de longo prazo, mas em um nível mais amplo, legitimam a violência contra esses grupos.
O limite do riso, por isso, seria a intolerância.
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