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Por que o vestido de Fiuk incomoda tanta gente?

A moda muda, mas estereótipos de gênero continuam gerando discriminação e, no limite, violência. Como podemos lidar com essa questão

Por Danilo Thomaz
24 mar 2021, 19h19
Fiuk usa peça parecida com vestido em festa do BBB
 (Reprodução/Divulgação)
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Um vestido deu o que falar no Brasil nesses últimos dias. Não era, a bem dizer, um vestido, mas um camisetão que a produção do BBB enviou a Fiuk, um dos participantes da edição. Pelo comprimento da peça, o cantor Rodolffo disse que a produção havia mandado “um vestido para o Fiuk”. O comentário irritou o participante, que disse usar vestidos. Assim que Fiuk saiu do quarto, Rodolffo comentou com Sarah, outra participante: “Como leva esse menino de vestido para as boates lá em Goiânia?”. O comentário fez com que o líder da semana, o economista Gilberto, conhecido como Gil do Vigor, indicasse Rodolffo para o paredão. Ele,  assim como muitos espectadores, entenderam o comentário como homofóbico.

A questão mobilizou a audiência do programa nas redes sociais, mas Rodolffo acabou se salvando por uma diferença de 0,51% dos votos para a eliminada, a atriz Carla Diaz. O crítico de TV Maurício Stycer atribuiu sua permanência na casa ao fato de ele ter conversado com Fiuk e explicado o contexto de onde nasceu – Rodolffo é do interior de Goiás e afirma ter crescido em um ambiente muito machista.

Por que o comentário de Rodolffo incomodou e mobilizou tanto?

Os movimentos ligados aos direitos das minorias políticas – ou seja, grupos que sofrem discriminação e enfrentam desigualdades legais, como as mulheres, negros e LGBTQIA+ – têm vivido um novo momento no Brasil, buscando alertar a sociedade para o preconceito que existe na nossa cultura e em nosso cotidiano. Comentários que, antes, eram considerados inocentes, hoje são contestados e criticados por seu teor de preconceito. É o caso do “fiu-fiu”, de expressões como “samba do criolo doido” e de comentários como esse sobre o vestido do Fiuk.

Qual a gravidade desse tipo de comentário?

Infelizmente, temos, no Brasil, uma sociedade bastante homofóbica e transfóbica. Por mais que a população LGBTQIA+ tenha obtido conquistas legais recentes – como o direito ao casamento igualitário e a equiparação da homofobia ao crime de racismo –, do ponto de vista comportamental, a sociedade mudou muito pouco. O país, há anos, é o que mais mata transexuais no mundo – e o número só vem aumentando.

Há uma série de casos de violência – e assassinato – contra pessoas LGBTQIA+ em decorrência de suas roupas ou de comportamentos ditos femininos. Isso dentro e fora de casa. Portanto, esse tipo de comentário não apenas aviva uma memória coletiva de agressões junto a essa população, como é algo que pode levar a consequências mais graves, como agressão e até mesmo um assassinato. O preconceito não se expressa apenas em crimes, mas também nas dificuldades que essa população enfrenta para denunciar e processar seus agressores.

Qual a relação entre moda e gênero?

Se, entre 1990 e 2000, a questão era se homens “poderiam” usar brincos e até cabelos longos – identificados com a estética feminina. Hoje, esses itens já são comuns entre os homens sem que isso leve a um questionamento de orientação sexual. A partir dos anos 2000, porém, a discussão passou a ser sobre a indumentária: saias e vestidos são, afinal, roupas masculinas?

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A cartunista Laerte Coutinho, que assumiu sua transgeneridade em 2009, afirmou, por sua vez, que os homens, como as mulheres, precisam fazer sua própria revolução. Se as mulheres aboliram as fronteiras de gênero no seu figurino por que os homens não podem fazer o mesmo? No filme “Mãe só há uma” (2016), a cineasta Anna Muylaert também traz a discussão ao apresentar um protagonista bissexual – Pierre (Naomi Nero) – que não se identifica como transgênero, mas usa roupas ditas femininas, além de pintar as unhas.

Por estranho que seja acreditar nisso hoje, nos anos 1930, a atriz americana Katharine Hepburn, também ela heterossexual, como Fiuk, era alvo de comentários homofóbicos por usar… calças. Quem também escandalizava com suas vestes consideradas masculinas era ninguém mais ninguém menos que um dos maiores nomes da moda do século 20, Gabrielle Chanel, a “Coco” Chanel, que criou a marca que até hoje carrega seu sobrenome.

É importante lembrar também que saias e vestuários semelhantes a vestidos também fazem parte, historicamente, do figurino masculino nas culturas greco-romanas e escocesa – a “kilt”, uma espécie de saia rodada até a altura dos joelhos, é utilizada por homens.

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Se a moda muda, por que recriminar homens de vestido?

O caso do BBB revela uma situação pouco discutida: o preconceito contra homens que são se enquadram no dito “padrão” de masculinidade. E isso não diz respeito apenas à roupa, mas aos modos e até mesmo a relações sociais ou demonstrações de afeto e emoção em público.

Comentários preconceituosos têm especial reverberação em ambiente escolar, o chamado “bullying”. Garotos e garotas que não se enquadram nos padrões são alvos de piadas, ofensas e agressões que não costumam ser coibidas pelas escolas. Muitas vezes, envergonhados em virtude do que sofrem, se calam, se isolam – o que afeta tanto seu desenvolvimento psicológico quanto social e escolar.

Logo no início do mandato de Jair Bolsonaro, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, disse que o governo era o início de “uma nova era” no Brasil, na qual “meninos vestem azul, meninas vestem rosa”. A afirmação da ministra em sua posse reverberava as críticas de Bolsonaro ao “Escola sem homofobia”, projeto que visava combater o bullying por orientação sexual e de gênero nas escolas, e foi apelidado de “kit gay”. Informações falsas propagadas durante a campanha eleitoral acusavam o programa de pregar uma “ideologia de gênero” com uma suposta inversão de papéis entre meninos e meninas. A proposta era justamente discutir padrões e acolher a diversidade.

O que podemos fazer para não ampliar a discriminação?

O caminho para combater a discriminação não só no que diz respeito à homofobia e à transfobia, mas também no que a pessoas que não se identificam com os padrões de gênero, passa tanto pela lei quanto pela cultura.

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Do ponto de vista legal, é preciso criar delegacias e preparar os profissionais ligados ao Direito e à saúde para atender as vítimas de preconceito e instituir um projeto de lei específico para a discriminação de orientação sexual e de gênero, o que ainda não temos – a equiparação da homofobia e transfobia ao crime de racismo foi uma solução provisória para o problema.

No aspecto cultural, é preciso implantar medidas socioeducativas – nas escolas e nos meios de comunicação – de forma a desmontar pré-conceitos, explicar o que é orientação sexual e de gênero, a construção histórica dos padrões de comportamento e a importância de se conviver pacificamente em um ambiente plural.

Mudar padrões estabelecidos milenarmente não é fácil nem simples, mas ações concretas e educativas são o único caminho possível em uma longa jornada.

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