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Quem é Ailton Krenak, escritor indígena que entrou para a lista da Unicamp

Lançado em 2020, "A vida não é útil" discorre sobre a pandemia e os problemas socioambientais da atualidade

Por Luccas Diaz
Atualizado em 13 jul 2022, 11h16 - Publicado em 13 jul 2022, 09h54
Ailton Krenak é um homem indígena na casa dos 70 anos, ele está usando uma camisea preta e uma faixa na cabeça
O autor Ailton Krenak é um dos símbolos da luta pelos direitos indígenas no Brasil (Vozes da Floresta/YouTube/Reprodução)
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“Por que insistimos em transformar a vida em uma coisa útil?”, questiona Ailton Krenak em sua obra “A vida não é útil” (Companhia das Letras, 2020). O escritor, jornalista, ambientalista e líder indígena faz parte da mais recente edição da lista de leituras obrigatórias do vestibular da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Sua obra, lançada em 2020, será cobrada a partir de 2024 como parte dos conteúdos abordados na prova. Ao lado de Krenak, nomes como Conceição Evaristo, Paulina Chiziane e Caio Fernando Abreu também entram para a lista de leituras do vestibular 2025.

Mas quem é e o que pensa Ailton Krenak? Prestes a completar 70 anos, o autor é conhecido pela sua trajetória de luta pelos direitos indígenas e ambientais. Em suas obras “Ideias para adiar o fim do mundo“, “O amanhã não está à venda“, “Lugares de origem” e “A vida não é útil”, compartilha reflexões e opiniões acumuladas em suas viagens pelo Brasil e pelo mundo acerca dos principais problemas socioambientais da contemporaneidade.

Além de ser um autor prestes a aparecer no vestibular, ler as obras de Krenak é uma oportunidade de refletir sobre questões que acometem o planeta sob o ponto de vista dos povos indígenas. Neste texto, o GUIA DO ESTUDANTE apresenta as principais ideias e realizações de Ailton Krenak.

Um importante papel

Ailton Alves Lacerda Krenak nasceu em 1953 na região do vale do rio Doce, em Minas Gerais, território do povo Krenak que enfrenta há décadas as consequências da intensa atividade mineradora realizada por multinacionais. Após migrar com a família para o Paraná, tornou-se jornalista. Só passou a se dedicar exclusivamente à causa indígena a partir da década de 1980. Em 1985 fundou a organização não governamental Núcleo de Cultura Indígena, que promove a cultura indígena a partir de festivais e encontros entre povos.

Pouco tempo depois, em 1987, desenvolveu um papel importante nas discussões da Assembleia Constituinte, que deram origem à atual Constituição brasileira. Ao discursar no plenário do Congresso Nacional, pintou todo o rosto de preto com pasta de jenipapo, simbolizando o retrocesso que os direitos indígenas estavam sofrendo no país. Seu papel na assembleia foi determinante para, na Constituição de 1988, ser incluído o “Capítulo dos índios”, que garante os direitos indígenas à terra e à cultura autóctone – pelo menos, em teoria.

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Ailton Krenak também contribuiu para a fundação da União das Nações Indígenas (UNI) e a Aliança dos Povos da Floresta, ambos projetos que visam a proteção de povos indígenas e das florestas. Em 2005, co-escreveu a proposta da Unesco que criou a Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço e, desde então, é membro de seu comitê gestor.

Além disso, foi homenageado como comendador da Ordem do Mérito Cultural da Presidência República, uma ordem honorífica que celebra personalidades ou instituições que desenvolvem um papel importante na celebração da cultura brasileira, e recebeu o título de doutor honoris causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

Sua trajetória é tema do documentário de 2017 “Ailton Krenak e o sonho de pedra”, do diretor Marco Altberg.

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A vida não é útil

Em “A vida não é útil”, o autor afirma que a sociedade opera como se uma casta ou um grupo tivesse sido eleito como a humanidade, enquanto todos os outros que estão fora deste grupo compõem uma sub-humanidade. “Não são só os caiçaras, quilombolas e povos indígenas, mas toda vida que deliberadamente largamos à margem do caminho”, diz.

A luta pelos direitos indígenas é um dos principais temas do livro, mas não o único. Na visão do autor, a invisibilidade das minorias sociais é parte de um processo maior que envolve a completa depredação e exploração dos recursos naturais da Terra.

O desmatamento das florestas, a crescente camada da população em situação de miséria, a atuação intensiva das indústrias exploratórias, a alienação causada pelas redes sociais e até a recente exploração turística do espaço são temáticas que se interconectam na obra.

“Para muita gente, na epistemologia ocidental, a ideia de outro mundo é apenas um outro mundo capitalista consertado: você pega este mundo, leva para a oficina, troca o chassi, o para-brisa, arruma o eixo e bota para rodar mais uma vez. Um mundo velho e canalha fantasiado de novo”, diz. “Eu me pergunto quantas Terras essa gente precisa consumir até entender que está no caminho errado.”

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O livro é um compilado de entrevistas e palestras dadas pelo autor durante o final de 2019 e o primeiro semestre de 2020. Por isso, aborda exatamente o período em que a covid-19 começa a se espalhar pelo mundo. Krenak enxerga o vírus como um recado do planeta Terra para os humanos.

Não se pode comer dinheiro  

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Durante a pandemia, Krenak se opôs ao discurso de que a economia não podia parar. No livro, destaca que se todos os dirigentes do Banco Central fossem colocados em um cofre gigante e deixados para viver isoladamente lá dentro, iriam perceber que não se pode comer dinheiro.

Durante toda sua carreira, o líder indígena foi um crítico do sistema capitalista e da percepção eurocêntrica do que significa ser uma civilização. Em sua passagem pela 26º Bienal Internacional do Livro de São Paulo, em julho de 2022, o autor debateu o papel do capitalismo e do colonialismo no processo de formação do povo brasileiro. O tema é recorrente na obra e pode ser considerado um dos principais ponto do pensamento de Krenak.

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“A história colonial do Brasil não terminou com a declaração da independência, ainda estamos imersos na colonialidade no nosso modo de reproduzir e mimetizar a chamada civilização. Se não tivermos a capacidade de entender que estamos em um colonialismo, vamos reproduzir isso infinitamente”, afirmou. “O nosso cotidiano é a reprodução de toda essa narrativa patriarcal, colonialista e hierarquizante. Ninguém tem disposição de fato pra inverter a pirâmide. É como diz a Conceição Evaristo, o mundo inteiro acha mais fácil acabar com a vida do planeta do que acabar com o capitalismo, porque eles estão drogados pelo capitalismo”.

Na série documental “Guerras do Brasil.doc”, Krenak reflete sobre as constantes invasões que o país sofre desde a chegada dos europeus. Mas, ao contrário do que os livros de História por vezes relatam, explica que nunca houve um momento de rendição por parte dos povos originários. “Acreditar que a história colonial nos ‘pacificou’ é dizer que nos rendemos. E não nos rendemos. Se não nos rendemos ainda estamos em guerra.”

A série está disponível na Netflix.

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Trecho do livro “A vida não é útil”

Quando falo de humanidade não estou falando só do Homo sapiens, me refiro a uma imensidão de seres que nós excluímos desde sempre: caçamos baleia, tiramos barbatana de tubarão, matamos leão e o penduramos na parede para mostrar que somos mais bravos que ele. Além da matança de todos os outros humanos que a gente achou que não tinham nada, que estavam aí só para nos suprir com roupa, comida, abrigo. Somos a praga do planeta, uma espécie de ameba gigante. Ao longo da história, os humanos, aliás, esse clube exclusivo da humanidade — que está na declaração universal dos direitos humanos e nos protocolos das instituições —, foram devastando tudo ao seu redor. É como se tivessem elegido uma casta, a humanidade, e todos que estão fora dela são a sub-humanidade. Não são só os caiçaras, quilombolas e povos indígenas, mas toda vida que deliberadamente largamos à margem do caminho. E o caminho é o progresso: essa ideia prospectiva de que estamos indo para algum lugar. Há um horizonte, estamos indo para lá, e vamos largando no percurso tudo que não interessa, o que sobra, a sub-humanidade — alguns de nós fazemos parte dela. É incrível que esse vírus que está aí agora esteja atingindo só as pessoas. Foi uma manobra fantástica do organismo da Terra tirar a teta da nossa boca e dizer: “Respirem agora, quero ver”. Isso denuncia o artifício do tipo de vida que nós criamos, porque chega uma hora que você precisa de uma máscara, de um aparelho para respirar, mas, em algum lugar, o aparelho precisa de uma usina hidrelétrica, nuclear ou de um gerador de energia qualquer. E o gerador também pode apagar, independentemente do nosso decreto, da nossa disposição. Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. Não é preciso nenhum sistema bélico complexo para apagar essa tal de humanidade: se extingue com a mesma facilidade que os mosquitos de uma sala depois de aplicado um aerossol. Nós não estamos com nada: essa é a declaração da Terra.

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