Em abril de 2017, como desdobramento da delação premiada de executivos da empreiteira Odebrecht (a “delação do fim do mundo”), o ministro do STF Edson Fachin autorizou abertura de inquérito contra dezenas de figuras públicas dos mais altos escalões da República. Os pedidos de inquérito haviam sido formalmente entregues em março pelo Procurador-Geral, Rodrigo Janot, em documento que ficou conhecido como a “lista de Janot“.
Para se ter noção, a lista de Fachin traz oito ministros do governo Temer (dentre os quais Eliseu Padilha, da Casa Civil, e Moreira Franco, da Secretaria-Geral), 24 senadores (dentre os quais Aécio Neves, que foi candidato a presidente em 2014), 39 deputados federais e três governadores. Aparecem nos inquéritos autorizados por Fachin quatro ex-presidentes – Dilma, Lula e FHC e Collor. Destes, apenas Collor, hoje senador, será julgado no STF, já que os demais não possuem foro privilegiado.
Em meio a tantos nomes relevantes, uma ausência ilustre não poderia deixar de ser notada. Estamos falando do próprio presidente da República, Michel Temer. O presidente é citado por delatores da Odebrecht como um dos principais articuladores do PMDB de um esquema de propinas. Afinal, por que ele não aparece nas listas de Janot e Fachin? É isso que vamos explicar.
A imunidade penal temporária
O motivo por que Temer, ao menos por enquanto, não pode ser indiciado pelas autoridades encontra-se na Constituição. O artigo 86, §4º, afirma que:
“O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções.”
Em outras palavras, o presidente possui um tipo especial de imunidade, que vai além do foro privilegiado (o direito de ser julgado apenas pelo STF). Essa imunidade tem um nome um tanto complicado: irresponsabilidade penal relativa temporária, ou imunidade penal temporária. Essa imunidade garante a Temer (e qualquer cidadão que ocupe a presidência) que ele, até o fim de seu mandato em 2018, só poderá ser julgado de duas formas:
1) Por crimes de responsabilidade, em processo de impeachment. Foi em um processo desse tipo que Dilma Rousseff foi condenada e perdeu o posto de presidente da República, em 2016. Os crimes de responsabilidade estão definidos na Lei 1.079, de 1950 e refere-se a infrações que o presidente comete enquanto exerce suas funções. Quem julga o presidente por impeachment é o Congresso Nacional. Dois terços da Câmara e do Senado precisam ser a favor da condenação.
2) Por infrações comuns (penais), em ação do STF, apenas quando elas estiverem relacionadas ao exercício da presidência. Ou seja, se viesse à tona que Temer, em algum momento de seu mandato como presidente (que começou oficialmente em 31 de agosto de 2016), cometeu algum ilícito comum diretamente ligado às suas funções, ele poderia ter um inquérito autorizado no Supremo.
Por exemplo: se houvesse indícios de que o presidente recebeu propina de algum empresário para sancionar um projeto de lei, caberia uma análise do STF sobre o caso ainda durante o mandato.
Mesmo quando se trata de crimes comuns, o processo no STF só pode ser aberto após a autorização da Câmara dos Deputados, com votação mínima de dois terços dos deputados. É a mesma exigência feita para a abertura do processo de impeachment.
No caso discutido no âmbito da Operação Lava Jato em 2017, Temer foi acusado de participar de reuniões em que foram discutidos valores de propinas, realizadas em 2010, quando ele ainda era candidato a vice-presidente. Ou seja, o caso não cumpre o requisito de ser um ato ocorrido durante o mandato e ligado às funções presidenciais (uma vez que Temer sequer era presidente no período).
Isso não significa que Temer nunca será julgado por esses atos. A única coisa que a imunidade presidencial garante é a suspensão da possibilidade de indiciar o presidente por atos que não tenham relação com sua função. Assim que ele passar a faixa para seu sucessor, poderá responder na Justiça como qualquer outro cidadão (inclusive responderá na Justiça comum, uma vez que perderá o foro especial). Além disso, a prescrição dos eventuais crimes fica suspensa durante todo o mandato, de acordo com Marcela Faraco.
O presidente pode pelo menos ser investigado?
A Constituição garante apenas que o presidente não pode ser responsabilizado por atos estranhos às suas funções. Isso abre brecha para uma interpretação defendida recentemente pelo professor de Direito da FGV Diego Werneck Arguelhes, em artigo do portal Jota.
Segundo Arguelhes, a Constituição não impede que o presidente seja investigado por atos suspeitos, mesmo aqueles que não tenham sido cometidos durante a presidência.
A investigação imediata de casos envolvendo o presidente seria não apenas permitida, mas necessária para que o presidente pode ser efetivamente responsabilizado após deixar o cargo. Se a investigação é adiada após a presidência, torna-se mais difícil coletar provas depois, porque testemunhas e documentos podem ser perdidos ao longo do tempo.
Entretanto, nem todo mundo concorda com a visão de Arguelhes. O próprio Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, entende que é impossível investigar Temer nesse caso, graças à imunidade presidencial. É por isso que Temer continua a não ter seu nome formalmente anunciado em investigações e denúncias da Operação Lava Jato.
E se o ato tiver sido cometido em mandato anterior?
Outra controvérsia em relação à imunidade do presidente foi muito citada durante o breve segundo governo de Dilma Rousseff. Ao longo de 2015, o então presidente da Câmara Eduardo Cunha arquivou diversos pedidos de impeachment contra a então presidente Dilma Rousseff alegando que as acusações se referiam a atos cometidos no primeiro governo de Dilma, entre 2011 e 2014. Cunha evocava justamente o artigo 86 da Constituição para impedir a instauração dos procedimentos do impeachment na Câmara.
Trata-se de mais um ponto em que não existe consenso entre juristas. Alguns, como Hyago Otto, alegam que as ações de um presidente reeleito durante seu primeiro mandato podem ser julgadas no segundo, afinal não são “atos estranhos às suas funções”. Já outros, como Cunha em 2015, afirmam que, com o final do primeiro mandato, o presidente reeleito inicia outro período, distinto do primeiro. Assim, apenas os atos do segundo mandato não poderiam ser considerados como estranhos às suas funções.
A imunidade formal do presidente
Além de não poder ser julgado por “atos estranhos às suas funções”, o presidente também possui a imunidade formal. Ela garante que, enquanto não houver uma sentença condenatória (ou seja, enquanto não for condenado definitivamente), o presidente não poderá ser preso, sob nenhuma hipótese. Por isso, você provavelmente jamais verá um presidente em exercício ser preso em flagrante, ou ter decretada sua prisão preventiva ou temporária. Isso é garantido pelo § 3º do mesmo artigo 86 da Constituição.
Referências: Marcela Faraco (JusBrasil): peculiaridades do cargo de presidente – Hyago Otto (JusBrasil): o presidente pode ser responsabilizado por atos de mandato anterior – Jota: Temer, Janot e a lista de Fachin: investigar é possível – UOL – G1 – Folha de São Paulo