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O livro censurado no vestibular e a perseguição de professores

De Marçal Aquino a Michelangelo: a censura em salas de aula no Brasil e EUA não para de crescer. Mas para quê serve a escola, se professores forem calados?

Por Raphael Amaral, o Tim
Atualizado em 31 Maio 2023, 16h05 - Publicado em 15 Maio 2023, 15h02

No estado da Flórida (EUA), a Tallahassee Classical School é uma escola pública que afirma ter como missão “treinar as mentes e aprimorar os corações da juventude através de uma educação rica em conteúdo clássico nas artes liberais e ciências”. Curiosamente, essa escola adquiriu notoriedade global por um episódio destoante dessa autoatribuída missão. Em abril de 2023, Hope Carrasquilla, professora da instituição, foi acusada de fomentar pornografia entre os estudantes por ter apresentado a escultura Davi, de Michelangelo, ícone da arte renascentista. A fúria de pais e mães contra a professora fez com que Carrasquilla pedisse demissão.

Longe de ser um caso isolado, esse evento acompanha a mais recente escalada conservadora nos EUA focada no ataque sobre a educação. Segundo um relatório da organização PEN America, entre julho e dezembro de 2022, quase 1.500 livros foram proibidos nas escolas públicas de 37 estados, majoritariamente localizados no sul dos EUA. São títulos que indivíduos e organizações da direita estadunidense acusam de fomentar teorias críticas raciais, a “ideologia de gênero” e um conjunto de ideias consideradas nocivas pelo conservadorismo nacionalista cristão daquele país.

Essa cruzada norte-americana contra a educação é reforçada por governantes que buscam aprovar leis que explicitamente censuram os currículos escolares nos EUA. De acordo com a organização Future Ed, estão sendo debatidas (e, em alguns casos, já foram aprovadas) cerca de 97 novas legislações estaduais que proíbem determinados temas de serem abordados em instituições de ensino, tanto na educação básica quanto no ensino superior (e, novamente, esse ataque ocorre principalmente nos estados do sul). O alvo central são os estudos sobre teoria racial crítica na História dos EUA, uma abordagem que ressalta o papel central da escravidão na formação do país. Mas a censura também abrange tópicos como relações de poder entre gêneros, diversidade na sexualidade e desigualdades socioeconômicas. 

É possível que se intelectuais como James Davison Hunter e George Lakoff analisassem esses eventos iriam apontar que se trata de mais um capítulo das chamadas “guerras culturais”. Entretanto, para o professor Cornel West e ao ativista Shaun King, trata-se mais precisamente de um fortalecimento do nacionalismo supremacista branco sobre as estruturas de poder (dentre estas, as instituições de ensino). Considerando-se atacada, a identidade branca cristã conservadora acredita estar reagindo contra as ideologias que ameaçam seus valores e tradições. E tal recrudescimento não tem sido privilégio exclusivo dos EUA.

Sobrou para Marçal Aquino e Hélio Oiticica

Também no Brasil são facilmente notadas dinâmicas inquisitoriais impulsionadas por um conservadorismo enfurecido sobre a educação. Dentre os casos mais recentes, a Universidade de Rio Verde (UniRV), em Goiás, retirou da lista de livros de seu vestibular a obra Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, de Marçal Aquino. A campanha contra o livro foi movida por um deputado de extrema-direita e, ao excluir a publicação de sua lista, a instituição corrobora com a acusação de que se trata de um texto que dissemina “conteúdo literário pornográfico”. 

Em Goiânia, uma professora foi demitida no começo de maio após usar uma camiseta estampando uma obra de arte do artista plástico Hélio Oticica, com os inscritos “seja marginal, seja herói”. Pouco importa que a obra seja uma das mais importantes da arte brasileira e que já tenha sido exposta em museus em Nova York e Londres – para um deputado conservador do PL, tratava-se apenas de uma “professora petista”, e isso justificaria a perseguição.

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De modo semelhante ao caso estadunidense, o ataque do ultraconservadorismo sobre instituições de ensino não é exatamente uma novidade no Brasil. Porém, ele tem se fortalecido na última década sob a alegação de combater a infiltração de ideologias de esquerda nas escolas e impedir a abordagem de temas acusados de sexualizarem a juventude. São movimentos, organizações e indivíduos ancorados em ideologias ultraconservadoras atacando currículos, professores, livros didáticos, escolas, universidades e estimulando a perseguição de profissionais da educação. 

Segundo a Human Rights Watch, no relatório “Tenho medo, esse era o objetivo deles”: Esforços para proibir a educação sobre gênero e sexualidade no Brasil, entre 2014 e 2022, políticos brasileiros, em âmbito federal, estadual e municipal, apresentaram cerca de 217 propostas legislativas para proibir a “doutrinação” e a dita “ideologia de gênero” nas escolas.

Essas perseguições agravam as já deterioradas condições de trabalho de profissionais da educação. Em meio à crescente precarização enfrentada por professores no Brasil, tornou-se corriqueiro também ter de lidar com estratégias sufocantes de autocensura e “camuflagens” para evitar ao máximo serem culpabilizados por alguma acusação delirante originada de familiares de  alunos. 

Tal asfixia pode ser analisada a partir dos alertas feitos pelo historiador Antoon De Baets, autor de uma importante pesquisa sobre censura ao longo da História, o livro Crimes Against History (Routledge, 2018). Tanto nessa obra quanto em outros artigos, De Baets aponta que a autocensura é a “forma de censura mais eficiente, mais ampla e menos visível”, ou seja, consiste no êxito dos agentes da censura em produzirem efeitos aterrorizantes, “instalando um clima de ameaça e medo”. 

Restam, porém, algumas dúvidas que os agentes da censura não sabem responder: censurar um determinado assunto impede que suas ideias circulem na sociedade? Uma escola censurada ajuda estudantes a lidar com qual desafio? Fomentar ambientes de medo e perseguição é uma boa estratégia para melhorar a educação? A criminalização da prática docente traz qual tipo de benefício aos estudantes? Dessa forma, se profissionais da educação (e a comunidade escolar como um todo) não puderem desfrutar de liberdade para debater temas pertinentes à vida em sociedade, por que as escolas deveriam ter alguma relevância aos alunos? 

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Raphael Amaral, o Tim, é professor de História e autor de material didático para Ensino Médio e Pré-Vestibular. Possui Bacharelado e Licenciatura pela USP, Lato Sensu e Mestrado em História pela PUC. Acompanhe-o no Instagram também: @raphael_tim

 

 

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