Parte significativa da sociedade brasileira costuma abordar sua própria História de uma forma, no mínimo, curiosa: produz lembranças sobre um determinado evento apenas para que ele seja esquecido. Há alguns anos, uma famosa marca de cachaça brasileira, celebrando à época seus 150 anos, lançou uma edição especial de aniversário de seu produto. Teria sido somente mais um conjunto qualquer de garrafas enfileiradas nas prateleiras de algum supermercado, se a marca não tivesse optado por fazer sua celebração de uma forma consideravelmente desrespeitosa. Tanto no rótulo da garrafa quanto na embalagem da caixa especial comemorativa foi colocada uma imagem com trabalhadores negros escravizados triturando a cana-de-açúcar em uma moenda artesanal.
A imagem utilizada pela marca de cachaça consistia na aquarela Engenho Manual que faz Caldo de Cana, de Jean-Baptiste Debret (1822). Tendo chegado ao Brasil em 1816, Debret foi um dos nomes mais destacados da chamada Missão Artística Francesa (grupo de pintores, escultores e arquitetos franceses que morou no Rio de Janeiro e, durante o reinado de D. João VI, trabalhou para o rei enquanto a corte portuguesa esteve instalada no Brasil). Algumas das principais produções artísticas do grupo retratam o cotidiano das opressões escravistas que moldavam as relações sociais no Brasil do século XIX.
Pouco tempo depois do episódio amargo da cachaça, uma grande rede de supermercados brasileira também considerou ser uma excelente ideia “celebrar” a escravidão para impulsionar as vendas. Dentro de uma de suas lojas, na cidade de São Paulo, foi colocado um manequim de um garoto em trajes amarrotados segurando um enorme cesto carregado de pães e frutas. Havia, entretanto, um detalhe que não incomodou muito a clientela da loja, mas repercutiu negativamente nas redes sociais: tratava-se de um manequim negro com grilhões presos em seus tornozelos, tal qual um escravizado.
Usando da memória para apagar o passado
Esses episódios fazem parte das frequentes explicitações de um tipo de desdém com o qual parte da sociedade encara a própria História. Como se fosse uma esquecimento através da memória, a busca por maior visibilidade (e lucratividade) de um produto ocorre através da banalização e esvaziamento do passado, de seus significados e suas consequências. Da mesma forma como não são situações isoladas, essas indiferenças com o sofrimento alheio também não são exatamente uma novidade.
Em 1970, na época em que a Ditadura Militar (1964-1985) vivenciava seu auge, uma das revistas de maior circulação no Brasil do período publicou uma peça publicitária assustadoramente desrespeitosa. Nela, um homem derrubado está amarrado com os braços para trás, espancado, com hematoma no rosto, de olhos revirados e sua cabeça está caída. Na imagem, esse torturado está sendo levantado do chão com violência, puxado pela sua camisa rasgada pelo personagem principal: o torturador. Se com um braço ele levanta sua vítima, na outra mão ele segura uma espécie de cabo elétrico para incrementar o terror da cena. Esse torturador sorri sadicamente e está vestido somente com sua calça Tergal, a falida marca de roupas que fez essa propaganda. A imagem ocupa página dupla da revista e no alto das duas folhas está escrito em letras gigantescas: “Seja cruel”.
E quem seria mais cruel? Os publicitários que tiveram a brilhante ideia de enaltecer a tortura (desde que feita com trajes adequados) ou os editores que veicularam a propaganda? De modo semelhante ao casos da cachaça e do supermercado mencionados, o desprezo à realidade das famílias destruídas por torturadores pode também ser lido como um tipo de apagamento através da lembrança. Ou seja, determinada passagem da História não é escondida. Ao contrário, é importante que seja revelada. Porém, é exatamente essa revelação que opera silenciando qualquer reflexão sobre o assunto. A explicitação acaba desempenhando a função de banalizar a passagem histórica, ignorando suas consequências sobre a sociedade e, junto a isso, talvez ainda gere algum lucro a um conjunto de empresários.
Sociedade e Estado na banalização do patrimônio
Mais do que um retrato de posicionamentos desprezíveis individuais, o desdém com o qual o passado é observado faz parte de algo maior, ou seja, o modo como a sociedade não demonstra se importar muito com sua própria História. Simultaneamente, mesmo as instituições estatais voltadas à preservação de patrimônio histórico e valorização de memória também não atuam de forma suficientemente efetiva para reverter essa situação. O caso do “Dopinho”, em Porto Alegre (RS), é apenas mais um dos exemplos que evidenciam essa insuficiência.
“Dopinho” é nome dado a um casarão que foi o primeiro centro clandestino de torturas utilizado pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) na capital gaúcha. Vinculado à Polícia Civil e atuando por todo o Brasil, o DOPS foi um órgão de investigação e repressão especializado em perseguições políticas que operou no país entre as décadas de 1920 e 1980.
Embora não tenha se limitado à Ditadura Militar, este foi o período em que o órgão mais se destacou pelos sucessivos casos de prisões ilegais, torturas e assassinatos de pessoas acusadas de “subversão”. O “Dopinho” funcionou entre 1964 e 1966, sendo fechado somente após ter sido revelado à população que foi nesse local que o sargento Manoel Raimundo Soares foi torturado até a morte (acusado de estar vinculado a grupos de oposição à ditadura).
E, ao longo da última década, o “Dopinho” esteve disponível num famoso aplicativo reservas de hospedagens turísticas (como um quarto hotel ou uma pousada qualquer). Os proprietários do casarão, confrontando os diversos pedidos dos movimentos sociais que valorizam a memória das vítimas da ditadura, consideraram que a reserva de hospedagens nesse chalé do horror via aplicativo seria uma ótima oportunidade de negócios.
Mas como os órgãos públicos agiram nesse caso? Lamentavelmente, desde 2013 o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) tem recebido solicitações para que o local seja tombado e preservado, mas até o momento a instituição ainda não concluiu se o casarão deve, ou não, ser considerado como patrimônio histórico.
Com as instituições funcionando nessa agilidade, o que impediria, por exemplo, que uma grande loja de móveis e decoração para residências de classe média hipoteticamente se apropriasse de modo privado, digamos, das cadeiras de um histórico estádio de futebol em São Paulo e lucrasse vendendo unidades desse patrimônio público e histórico a seus requintados consumidores de muito bom gosto? A sociedade enxergaria algum tipo de problema nessa situação? Ou seria somente mais um episódio ignorável de descaso com a História e com a preservação da memória?