(Imagem: Thinkstock)
O tema da redação desta semana foi tirado do processo seletivo 2014/2 da Universidade Federal de Goiás (UFG). Leia a coletânea a seguir.
Tema
Experiências estéticas e práticas éticas nas relações sociais
Coletânea
1. A ética, questão de vida ou morte
A preocupação ética cresceu muito nos últimos anos no Brasil e no estrangeiro, mas sobretudo aqui. Penso que tem a ver com o crescimento da sociedade brasileira, ou melhor, com o crescimento do que chamamos “a sociedade”. Infelizmente, em países marcados como o nosso pela desigualdade, “a sociedade” não se refere a toda a população. Sempre foram muitos os excluídos. Mas a novidade é que diminuiu o número deles.
Vejamos o trânsito. Funcionou bem, enquanto tinham carro apenas três ou cinco por cento dos brasileiros. O tráfego fluía. Era fácil guiar e estacionar. Mas, hoje, metade das viagens realizadas na cidade de São Paulo é por carro.
Não dá. E é claro que toda pessoa que já pensou no trânsito sabe que o transporte individual tem de ser a exceção, não a regra. Mas o que fazer, quando na maior parte de nossas cidades o ônibus é a vala comum na qual as classes abonadas não querem se meter e da qual os mais pobres querem escapar? Ter um carro, ainda que caindo aos pedaços, passa a ser um sinal mínimo e necessário de dignidade. Porque dignidade e cidadania não são palavras abstratas, de teor apenas cívico: têm a ver com conforto. É errado pensar que o civismo se mede só pelos símbolos nacionais ou pela dedicação ao bem comum. Ele está no respeito ao outro. É por isso que, quando o conforto é negado a quem se vale do ônibus, ter um carro se torna distintivo do cidadão. É um distintivo errado e destrutivo a médio prazo, pela poluição e engarrafamentos que causa, mas é um distintivo.
O que tem isso a ver com a ética? Duas coisas. A primeira é que a educação e as boas maneiras têm forte sentido ético. Aliás, alguns até derivam a palavra “etiqueta”, no sentido das regras de comportamento, do termo “ética”, como se a etiqueta fosse a pequena ética, a “small morals”, que lida não com os princípios mas com as regras. Essa etimologia é errada (etiqueta vem do rótulo que se colocava nos processos e, por extensão, significa rotu lar as pessoas pela sua classe social), mas rica: mostra que tratar bem o outro é sinal de respeito. E o respeito é um dever ético, é um valor que atribuímos aos nossos semelhantes, justamente para assinalar que são nossos iguais, que não nos consideramos melhores que eles.
Chego assim ao segundo ponto. O Brasil funcionou, enquanto a desigualdade era aceita socialmente. Não se via maior problema em uma pessoa furar a fila, se ela tivesse certas características que a faziam superior – a beleza, o charme, a “boa aparência” (expressão cujo significado, como se vê nas novelas, era “não ser negro”), a riqueza. Isso era detestável, mas a sociedade aceitava razoavelmente a desigualdade. Nossa sociedade não deixou de ser desigual, nem acabou a exclusão, mas aumentou incrivelmente o desejo de inclusão. É o que leva os mais pobres, já sem esperança num transporte coletivo decente, a comprar carros.
Esse é o nosso equivalente das “invasões bárbaras”, de que fala o filme canadense. Como se negou e se nega aos mais pobres a cidadania, eles a tomam por si próprios – e isso se dá de maneira altamente conflituosa. Nosso trânsito é uma guerra social. […]
Ora, isso quer dizer que aqueles que podiam furar a fila – falei no banco, mas pode ser o restaurante chique, a loja de bom atendimento, qualquer lugar – também aumentaram em proporção. Passar na frente dos outros, com a aceitação resignada ou mesmo prazerosa deles, é uma coisa quando são raros os que o fazem. Mas, quando muitos começam a querer isso, se torna intolerável.
Em nossa sociedade, adotamos então recursos indiretos para manter a desigualdade. Quem pode, manda um boy para o banco. Ou usa a Internet para o acesso. Ou se torna um cliente, não apenas especial, porque muitos já o são, porém vip, com guichê escondido para você. Ou dá um jeito de passar na frente discretamente, quase envergonhado: porque, antigamente, furar na fila era já um sinal de distinção.
Voltemos então à ética. Nas colunas anteriores, sustentei que a ética não é abstrata, um conjunto de princípios genéricos sem relação com a vida social, que devemos impor a todo custo. O fato é que, se o Brasil hoje fala tanto em ética, é porque chegamos à conclusão de que um mínimo de respeito ao outro é necessário para sermos, nós mesmos, respeitados.
Aumentou a classe média, e portanto até os abonados percebem que, se continuar a regra (ou a des-regra) de furar a fila, eles mesmos serão prejudicados. Ou seja, também quem está bem na vida sabe que precisa seguir a regra comum. Também a elite começa a ver que passou a depender de princípios éticos para sobreviver.
Por outro lado, os pobres não acham mais “bonito não ter o que comer”, para citar fora de contexto um verso de “Amélia”, uma das mais belas canções de Mário Lago. Ver o outro passar na sua frente não é mais aceitável. Daí que falemos tanto em ética: a sociedade brasileira foi tomando consciência de que, na guerra de todos contra todos, valores como o do respeito, o da igualdade e o da liberdade são fundamentais. Ou eles, ou o caos. […]
RIBEIRO, Renato Janine. Disponível em: <https://www.renatojanine.pro.br/Etica/colunaaol.html>. Acesso em: 31 mar. 2014.
2. “O empregado tem carro e anda de avião. E eu estudei pra quê?”
Dia desses, um amigo voltou desolado de uma reunião de condomínio e resolveu desabafar no Facebook: “Ontem, na assembleia de condomínio, tinha gente ‘revoltada’ porque a lavadeira comprou um carro. ‘Ganha muito’ e ‘pra quê eu fiz faculdade’ foram alguns dos comentários. Um dos condôminos queria proibir que ela estacionasse o carro dentro do prédio, mesmo informado que a funcionária paga aluguel da vaga a um dos proprietários”.
A cena parecia saída do filme O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho, no qual a demissão de um veterano porteiro é discutida em uma espécie de “paredão” organizado pelos condôminos. No caso do prédio do meu amigo, a moça havia se transformado na peça central de um esforço fiscal. Seu carro-ostentação era a prova de que havia margem para cortar custos pela folha de pagamento, a começar por seu emprego. A ideia era baratear a taxa de condomínio em 20 reais por apartamento.
Sem que se perceba, reuniões como esta dizem mais sobre nossa tragédia humana do que se imagina. A do Brasil é enraizada, incolor e ofuscada por um senso comum segundo o qual tudo o que acontece de ruim no mundo está em Brasília, em seus políticos, em seus acordos e seus arranjos. Sentados neste discurso, de que a fonte do mal é sempre a figura distante, quase desmaterializada, reproduzimos uma indigência humana e moral da qual fazemos parte e nem nos damos conta.
Dias atrás, outro amigo, nascido na Colômbia, me contava um fato que lhe chamava a atenção o chegar ao Brasil. Aqui, dizia ele, as pessoas fazem festa pelo fato de entrarem em uma faculdade. O que seria o começo da caminhada, em condições normais de pressão e temperatura, é tratado muitas vezes como fim da linha pela cultura local da distinção. O ritual de passagem, da festa dos bixos aos carros presenteados como prêmios aos filhos campeões, há uma mensagem quase cifrada: “você conseguiu: venceu a corrida principal, o funil social chamado vestibular, e não tem mais nada a provar para ninguém. Pode morrer em paz”. […] O sujeito tem motivos para comemorar quando entra em uma faculdade no Brasil porque, com um diploma debaixo do braço, passará automaticamente a pertencer a uma casta superior. Uma casta com privilégios inclusive se for preso. Por isso comemora, mesmo que saia do curso com a mesma bagagem que entrou e com a mesma condição que nasceu, a de indigente intelectual, insensível socialmente, sem uma visão minimamente crítica ou sofisticada sobre a sua realidade e seus conflitos. É por isso que existe tanto babeta com ensino superior e especialização. Tanto médico que não sabe operar. Tanto advogado que não sabe escrever. Tanto psicólogo que não conhece Freud. Tanto jornalista que não lê jornal.
Função social? Vocação? Autoconhecimento? Extensão? Responsabilidade sobre o meio? Conta outra. Com raras e honrosas exceções, o ensino superior no Brasil cumpre uma função social invisível: garantir um selo de distinção.
Por isso, comemora-se também ao sair da faculdade. Já vi, por exemplo, coordenador de curso gritar, em dia de formatura, como líder de torcida em dia de jogo: “vocês, formandos, são privilegiados. Venceram na vida. Fazem parte de uma parcela minoritária e privilegiada da população”; em tempo: a formatura era de um curso de odontologia, e ninguém ali sequer levantou a possibilidade de que a batalha só seria vencida quando deixássemos de ser um país em que ter dente era (e é), por si, um privilégio. Por trás desse discurso está uma lógica perversa de dominação. Uma lógica que permite colocar os trabalhadores braçais em seu devido lugar. Por aqui, não nos satisfazemos em contratar serviços que não queremos fazer, como lavar, passar, enxugar o chão, lavar a privada, pintar as unhas ou trocar a fralda e dar banho em nossos filhos: aproveitamos até a última ponta o gusto de dizer “estou te pagando e enquanto estou pagando eu mando e você obedece”. Para que chamar a atenção do garçom com discrição se eu posso fazer um escarcéu se pedi batata frita e ele me entregou mandioca? Ao lembrá-lo de que é ele quem serve, me lembro, e lembro a todos, que estudei e trabalhei para sentar em uma mesa de restaurante e, portanto, MEREÇO ser servido. Não é só uma prestação de serviço: é um teatro sobre posições de domínio. Pobre o país cujo diploma serve, na maioria dos casos, para corroborar estas posições.
Por isso, o discurso ouvido por meu amigo em seu condomínio é ainda uma praga: a praga da ignorância instruída. Por isso, as pessoas se incomodam quando a lavadeira, ou o porteiro, ou o garçom, “invade” espaços antes cativos. Como uma vaga na garagem de prédio. Ou a universidade. Ou os aeroportos. Neste caldo cultural, nada pode ser mais sintomático da nossa falência do que o episódio da professora que postou fotos de um “popular” no saguão do aeroporto e lançou no Facebook: “Viramos uma rodoviária? Cadê o glamour?”. (Sim, porque voar, no Brasil, também é, ou era, mais do que o ato de se deslocar ao ar de um local a outro: é lembrar os que rastejam por rodovias quem pode e quem não pode pagar para andar de avião). Esses exemplos mostram que, por aqui, pobre pode até ocupar espaços cativos da elite (não sem nossos protestos), mas nosso diploma e nosso senso de distinção nos autorizam a galhofa: “lembre-se, você não é um de nós”. Triste que este discurso tenha sido absorvido por quem deveria ter como missão a detonação, pela base e pela educação, dos resquícios de uma tragédia histórica construída com o caldo da ignorância, do privilégio e da exclusão.
PICHONELLI, Matheus. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-empregada-ja-tem-carro-e-eu-estudei-pra-que-5156.html>. Acesso em: 31 mar. 2014.
3.
Disponível em: <https://www.google.com.br/search?q=%C3%A9tica+e+est%C3%A9tica>. Acesso em: 24 abr. 2014.
4. (Clique para ampliar).
Disponível em: <https://www.filosofia.com.br/charge.php?pg=1>. Acesso em: 24 abr. 2014.
5. “Rolezinho”, capitalismo e gente bonita
No capitalismo moderno distinções logicamente infundadas de classe, étnicas, religiosas, de gênero etc. são abolidas no direito posto e na ética das relações entre particulares e o Estado e mesmo entre particulares quando esteja envolvida nessa última relação o uso de ambiente de caráter público, mesmo que privado. Posso exigir que em minha lanchonete as pessoas em geral venham vestidas de um modo socialmente aceitável (regra geral) mas não posso impedir que pobres, mulheres ou afrodescendentes a frequentem (regra discriminatória que teria seu critério de discriminação não amparado em razão de ordem lógica). […] O que os jovens da periferia pretendiam com seus “rolezinhos” era um footing num dos poucos espaços públicos que têm segurança para tanto e que desde minha pré-adolescência são os espaços substitutivos das praças e da Rua Augusta, já que celebração, sedução e paquera juvenil, felizmente, ainda não se conseguiu acabar.
Combinar socialmente um dia para que tal footing se realize é um pouco da essência do negócio. Nos tempos de meus pais era o domingo; no meu, os sábados ou os horários de hora de aula cabulada; nos dias de hoje, o que se combina pela internet. Em vez do baile naquele dia, o “rolezinho” num espaço habitualmente frequentado por pessoas de elite. Nada de mais normal do sentido estrito da expressão (dentro da norma), afinal estamos em uma sociedade capitalista de classes, não em uma aristocracia estamental. Se resolve ficar sem carne na mesa um mês para pagar a entrada o pobre pode entrar no cinema frequentado pelo rico, é a regra do jogo. Do mesmo modo o rico paga para desfilar na escola de samba. É a regra do jogo.
Classe social, hábitos de vestimenta fashion ou forma corporal não são critérios logicamente fundados, ou seja, legítimos, para impedir alguém de frequentar um ambiente comercial público. Não se pode explorar economicamente tal tipo de espaço comercial ou de serviços condicionando o acesso apenas para “gente bonita”. Pelo simples fato de haver o “rolezinho” nada disso se punha em questão. Comportamentos e ambientes tradutores das distinções sociais existem por todo canto da existência e o evento em questão não pretendeu ir além de seu caráter lúdico. Não era um protesto contra os males do mundo, era uma forma de procurer espantá-los por algumas horas de forma segura, alegre e num ambiente valorizado pelos desejos de consumo que todos temos em alguma medida.
A reação desmedida de donos de shoppings, polícia e Judiciário é que trouxe à tona o debate público sobre as distinções sociais inconstitucionais e inaceitáveis existentes no cotidiano de práticas comerciais desprovidas de qualquer pudor humano ou democrático, feudais mais que capitalistas. Descabido totalmente na sociedade moderna presumir violência ou criminalidade na pobreza, seja na revista policial ou no acesso ao shopping. Gente bonita e descolada do comum e do público tem de saber acatar as leis e regras do jogo capitalista. Inconstitucional e eticamente inaceitável um centro comercial não permitir um encontro coletivo pacífico de pessoas por conta de sua condição social, étnica, de gênero, orientação sexual, padrão de consumo etc. […]
A vida contemporânea, no Brasil e fora daqui, é cada vez mais tolerante com discriminações sociais e estéticas infundadas logicamente. Interessante notar que essa e outras liberdades públicas, valores e conceitos originais do pensamento liberal vêm, cada vez mais na contemporaneidade, sendo defendidas por forças tidas como de esquerda no quadro político. Nossos liberais estão cada vez menos liberais, cedendo à força conservadora das teses de uma direita reativa aos valores das revoluções francesa e americana. Por outro lado, também, é um equívoco das forças de esquerda querer enxergar no “rolezinho” qualquer conduta anticapitalista. O “rolezinho” é, ou era para ser, antes de tudo um momento lúdico de afirmação do consumo e dos valores estéticos do mercado capitalista. Um desejo de inclusão nele e não de sua extinção.
SERRANO, Pedro Estevam. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/sociedade/rolezinho-capitalismo-e-gente-bonita-6318.htm>. Acesso em: 31 mar. 2014.
Propostas
A – Editorial
O editorial é um gênero do discurso argumentativo que tem a finalidade de manifestar a opinião de um jornal, de uma revista, ou de qualquer outro órgão de imprensa, a respeito de acontecimentos importantes no cenário local, nacional ou internacional. Não é assinado porque não deve ser associado a um ponto de vista individual. Deve ser enfático, equilibrado e informativo. Além de apresentar opiniões assumidas pelo veículo de imprensa, costuma também resumir opiniões contrárias, para refutá-las.
Imagine que você seja o editor-chefe de uma revista de grande circulação nacional. Discuta fatos recentes do país que acenam para conflitos nas relações sociais, dadas as contradições historicamente construídas em torno da relação entre as experiências estéticas e o comportamento ético. Mobilize argumentos que sustentem o ponto de vista da revista, refutando argumentos contrários ao posicionamento assumido.
B – Carta aberta
De natureza persuasivo-argumentativa, o gênero carta aberta manifesta publicamente a opinião de uma pessoa ou de um grupo de pessoas a respeito de um problema. Tem a finalidade de persuadir um interlocutor específico a tomar consciência do problema e se mobilizar para solucioná-lo. O texto denuncia os fatos, analisa-os, sugere e reivindica ações resolutivas. Além disso, mobiliza a opinião pública para a adesão ao ponto de vista do locutor. Para isso, o locutor deve construir a imagem do interlocutor e as estratégias adequadas para convencê-lo.
Imagine que você seja um dos moradores do condomínio onde o carro da lavadeira se tornou polêmica entre os condôminos, que, por isso, exigiram uma assembleia. Diante da revolta de uns e da indignação de outros com a polêmica sobre o status da empregada, você resolve escrever uma carta aberta aos moradores do condomínio, expressando sua indignação com a repercussão do fato e com os argumentos apresentados por aqueles que se diziam revoltados.
Como locutor da carta, você deve utilizar estratégias argumentativas e persuasivas para convencer os condôminos a adotar ações que garantam uma convivência social ética no condomínio. Para persuadir o leitor, utilize outras situações semelhantes como argumentos e discuta suas implicações de forma a mobilizar a opinião pública a acatar o seu ponto de vista em relação às formas estéticas da existência humana para a construção de um mundo mais justo e ético.
NÃO IDENTIFIQUE O REMETENTE DA CARTA.
Instruções
– Desenvolva seu texto em apenas um dos gêneros apresentados.
– O texto deve ser redigido em prosa.
– A fuga do tema ou a cópia da coletânea anula a redação. Você não deve copiar trechos ou frases. Quando for necessária, a transcrição deve estar a serviço do seu texto.
– Use a variedade padrão culta da língua portuguesa.
– Sua redação deve ter entre 180 e 300 palavras.
Você pode enviar seu texto até quinta-feira, dia 21 de maio, para o e-mail: redacaoguia@gmail.com, em um anexo ou no corpo na mensagem. Coloque seu nome completo, idade e cidade. Ele poderá ser avaliado e publicado aqui no blog. Faremos a correção de um texto para cada gênero.