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Literatura: Barroco

Entre o céu e o inferno

Autores do Barroco (1601-1768) vivem o dilema de conciliar razão e fé

Arte de contrastes, a literatura do período barroco utiliza a linguagem de maneira rebuscada, empregando figuras de linguagem (como as antíteses e os paradoxos) que reforçam os conflitos interiores vividos pelo homem no período da Contrarreforma Católica na Europa. O sagrado e o profano, o espiritual e o material, o céu e a terra são alguns dos elementos opostos presentes nas letras barrocas.

Contrarreforma – O QUE ISSO TEM A VER COM A HISTÓRIA?
A Contrarreforma foi um movimento de afirmação do catolicismo que tinha por objetivo recuperar o espaço político-religioso perdido para os protestantes, após a Reforma Luterana (1517). O papa Paulo III convoca, em 1545, o Concílio de Trento, que condena o protestantismo e reafirma os princípios católicos. A Contrarreforma não consegue acabar com o protestantismo, apenas freia sua expansão. Um de seus maiores êxitos é a disseminação da fé católica pelas colônias europeias – inclusive o Brasil.

Padre Antônio Vieira

A oratória de Padre Vieira (1608-1697), sacerdote jesuíta que alcançou enorme prestígio como pregador, é um bom exemplo do conceptismo barroco. Essa corrente literária do século XVII emprega construções sintáticas elaboradas e imagens ilustrativas para veicular um conjunto de pensamentos complexos de acordo com princípios lógicos rigorosos.

No Sermão de Santo Antônio aos Peixes, pregado pelo sacerdote português aos cidadãos do Maranhão em 1654, fica evidente o combate à corrupção da sociedade. Em vários momentos de sua fala, ele utiliza o recurso da paráfrase para construir sua argumentação.

A pregação religiosa de Vieira envolve estratégias argumentativas para persuadir o auditório a aderir a determinados comportamentos e crenças. Na prosa doutrinária do religioso, os argumentos são sempre dirigidos aos féis e visam à conversão daqueles que apresentam condutas consideradas viciosas. Os argumentos fazem uso da sabedoria bíblica, bem como de imagens e descrições que facilitam a visualização e a assimilação dos conceitos abstratos, com o objetivo de reforçar o ponto de vista defendido pelo sacerdote.

 

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Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção[1]? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. (…) Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem[2] a seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal![3]
(…)

Muitas vezes vos tenho pregado nesta igreja, e noutras, de manhã e de tarde, de dia e de noite[3], sempre com doutrina muito clara, muito sólida, muito verdadeira, e a que mais necessária e importante é a esta terra para emenda e reforma dos vícios que a corrompem.
(…)

Isto suposto, quero hoje, à imitação de Santo António, voltar-me da terra ao mar, e já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes. O mar está tão perto[5] que bem me ouvirão[4]. Os demais podem deixar o sermão, pois não é para eles. Maria, quer dizer, Domina maris: «Senhora do mar»; e posto que o assunto seja tão desusado, espero que me não falte com a costumada graça. Ave Maria.

Enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes? Nunca pior auditório. Ao menos têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam. Uma só cousa pudera desconsolar ao pregador, que é serem gente os peixes que se não há-de converter.
(…)

Ah moradores do Maranhão, quanto eu vos pudera agora dizer neste caso! Abri, abri estas entranhas; vede, vede este coração[6]. Mas ah sim, que me não lembrava! Eu não vos prego a vós, prego aos peixes.
(…)

Antes, porém, que vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas repreensões.
(…)

Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os Brancos. (…) Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os acredores; comem-no os oficiais dos órfãos e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-a a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para a mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o[7] levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra.[8]

Já se os homens se comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria de sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós.
(…)

Obras Escolhidas. Lisboa: Sá da Costa, 1952/ 1953.

[1] EPISÓDIO BÍBLICO: A abertura dos sermões parte sempre de um episódio bíblico. Aqui, ele recorre à metáfora criada por Cristo segundo a qual os cristãos devem funcionar de modo análogo à ação do sal na terra, ou seja, combater a corrupção.

[2] CONFLITO: Uma característica do Barroco é a tensão entre os valores cristãos e os prazeres materiais. Neste sermão, a realidade terrena – representada pelo comportamento religiosamente questionável dos maranhenses da época – se contrapõe à realidade espiritual – simbolizada pelo ideal religioso defendido pelo jesuíta.

[3] PARALELISMO: Recursos como o paralelismo (veja no Saiba mais ao lado) e a anáfora são usados para justificar a pouca eficácia da retórica sacra.

[4] METÁFORA: A prosa de Vieira combina figuras de pensamento e de construção para atacar as vaidades humanas.  O pregador alude à figura de Santo Antônio, que, reza a lenda, teria pregado para um auditório de peixes. Durante o sermão, os peixes funcionam como metáfora dos homens, aos quais se associam por causa de comportamentos semelhantes. A metáfora é a figura de linguagem que aproxima elementos pertencentes a universos distintos, em razão da existência de características semelhantes.

[5] PRONOME RELATIVO: A estrutura sintática dos sermões de Vieira emprega inúmeras relações entre elementos previamente referidos. Aqui, o pronome relativo “que” retoma o referente “os peixes”, que fora introduzido no período anterior. Essas ligações servem para articular os elementos dos textos, encadeando-os em uma unidade de sentido que permite ao leitor seguir a progressão dos argumentos.

[6] FUNÇÃO APELATIVA: O pregador se dirige diretamente ao auditório. Por meio do uso da função apelativa da linguagem, a argumentação de Vieira procura persuadir o público a aderir aos valores cristãos. Note o uso de verbos no imperativo.

[7] PRONOMES PESSOAIS: No fim do sermão, Vieira abandona a metáfora que aproxima homens e peixes. Do mar, o sacerdote passa a terra para tratar da realidade brasileira. A ambição, a mesquinhez, a cobiça e o egoísmo dos homens brancos são apontados pelo sacerdote por meio de exemplos ligados à morte de um cidadão qualquer. Pronomes oblíquos são usados para se referir ao indivíduo morto, articulando os diferentes exemplos a um mesmo referente e garantindo a unidade da argumentação.

[8] PARCIALIDADE: Os sermões de Vieira têm um tom inflamado, e as frases exclamativas, que procuram impactar o público, revelam o estilo exaltado do pregador que fala no púlpito. Essas características explicitam a parcialidade do orador, defensor da moral cristã e contrário às práticas de vida que não levam em consideração os ensinamentos religiosos. Repare no tom irônico com que Vieira aborda a realidade terrena e os interesses materiais que estão por trás das ações humanas.

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PARALELISMO

Construções em paralelo são aquelas que apresentam a repetição intencional de uma estrutura gramatical em um texto, com o objetivo de explicitar a relação existente entre duas informações. Essas construções servem para articular ideias e expressões similares, de um modo claro e simétrico. Há diversas possibilidades de construir estruturas paralelísticas, como você pode ver a seguir.

Repare que as formas verbais são sempre semelhantes e que os termos são muito parecidos:

Não fomos à escola por ser feriado e por estar nevando.
(preposição + verbo no infinitivo)

Não fomos à escola não só porque era feriado, mas também porque nevava.
(explicação + verbo no pretérito imperfeito)

A superfície do planeta é coberta em parte por terra e em parte por água.
(note que as estruturas são idênticas, mudando apenas o substantivo final)

É necessário que você venha à festa e traga um presente.
(verbos no subjuntivo)

Era um cachorro problemático, ou seja, agressivoincontrolável.
(adjetivos)

Veja um exemplo em que não há paralelismo e, em seguida, a correção segundo a gramática tradicional:

Eu te amo. Você é linda.(Na primeira frase foi usado um pronome pessoal da 2ª pessoa do singular [te]; na segunda frase foi usado um pronome pessoal associado à 3ª pessoa do singular [você]. Para haver paralelismo seria preciso se referir à mesma pessoa.)

A gramática prescreve: Eu a amo. Você é linda.

 

Gregório de Matos

No período Barroco, o poeta baiano Gregório de Matos (1636?-1695) compôs uma série de poemas que refetiam as tensões espirituais do homem da época (dividido entre o pecado e a salvação, o humano e o divino). Na Bahia do século XVII, Gregório ficou conhecido como “Boca do Inferno”, por satirizar em seus textos aspectos da sociedade política brasileira.

O autor é um dos expoentes do cultismo, corrente estética do Barroco que utiliza uma linguagem rebuscada, com relações de sentido sofisticadas, figuras de linguagem abundantes e sintaxe requintada. No poema A Cristo N. S. Crucificado, o eu lírico (que expressa os sentimentos do autor) se concentra no conflito entre matéria e espírito, dialogando com Deus a respeito das possibilidades de perdão.

Uma característica do soneto barroco é a estruturação lógica baseada em tese, antítese e síntese. Num primeiro momento, é colocada uma ideia a ser discutida e relativizada – no caso do poema A Cristo N. S. Crucificado, o inevitável julgamento da alma do eu lírico por Deus após a morte. A problematização é baseada em oposições semânticas como “pecar” e “amor” e “fim” e “infinito”. Em seguida há uma síntese: a conclusão de que o amor divino é maior que o pecado do eu lírico lhe dá esperança da salvação.

 

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Meu Deus, que estais pendente
de um madeiro,
Em cuja lei protesto de viver,
Em cuja santa lei hei de morrer,
Animoso, constante, firme e inteiro:

Neste lance, por ser o derradeiro,
Pois vejo a minha vida anoitecer;
É, meu Jesus, a hora de se ver
A brandura de um Pai[1], manso Cordeiro[2].

Mui grande é o vosso amor e o meu delito;
Porém pode ter fim todo o pecar,
E não o vosso amor que é infinito.

Esta razão me obriga a confiar,
Que, por mais que pequei, neste conflito
Espero em vosso amor de me salvar.[3]

https://www.dominiopublico.gov.br

 


PERSUASÃO: Assim como os homens do Maranhão, cujos vícios são apontados pelo sermão de Vieira, Gregório de Matos admite ser pecador, e não esconde a sua culpa. No entanto, nota-se um sofisticado jogo de persuasão: ele afirma ter direito ao perdão de Deus. Para o sujeito poético, somente assim fará com que Deus adquira o estatuto de piedade e onipotência que lhe são conferidos. Como o pecado é uma característica humana, o perdão das faltas é obrigação divina. O amor e a salvação são alcançados pelo autor, em troca da glorificação e do exercício das virtudes divinas.


[1] ARREPENDIMENTO: Nas duas primeiras estrofes, o poeta expressa arrependimento e crença no amor infinito de Cristo, para manifestar, no final, a certeza da obtenção  do perdão.

[2] IRONIA: A imagem do Cordeiro inocente é evocada pelo eu lírico suplicante. Note a ironia usada para manipular o Criador. Mais do que um pedido, há uma imposição que obriga Deus a perdoar o pecador. Vieira lança mão do mesmo recurso para persuadir seus ouvintes.

[3] SILOGISMO: O soneto encobre uma formulação silogística – dedução formal em que há duas premissas a partir das quais, por inferência, se chega a uma conclusão. Ela pode ser expressa assim: o amor de Cristo é infinito; o meu pecado, por maior que seja, é finito, e menor que o amor de Jesus. Logo, por maior que seja o meu pecado, eu espero salvar- me. O jogo de ideias e conceitos, conduzindo à formulação de um raciocínio complexo, é uma característica típica do Barroco.

 

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RELAÇÕES LÓGICAS

As frases podem ser articuladas por mecanismos lógicos, como a pressuposição, a dedução e a indução.

Pressuposição Uma informação pressuposta permanece como circunstância ou fato considerado como antecedente necessário a outro: Pedro parou de trabalhar na firma do pai (informação pressuposta para que a sentença faça sentido: Pedro trabalhava na firma do pai).

Dedução O raciocínio dedutivo consiste em uma inferência que parte de dados gerais para tratar de dados
particulares: Meu pai avisou que estava chovendo. Eu saí de casa e, ao sentir pingos finos molhando a minha
roupa, constatei que ele tinha razão.

Indução Parte de um caso particular para chegar a uma afirmação geral: Saí de casa e comecei a sentir pingos
finos molhando a minha roupa. Concluí, então, que começava a chover. Voltei para buscar o guarda-chuva.

 

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(…)

No movimento gay entre os anos 1960 e os 1980, a estratégia de “coming out” (de se revelar ou se desmascarar) não era tanto uma provocação contra uma sociedade repressora quanto uma declaração pública para acabar com a culpa interna.

Sem a culpa interna e a vergonha que ela produz, o poder de uma lei repressora é mínimo – ele acaba valendo apenas como um exercício de força, sem autoridade simbólica.

A culpa, em suma, não é o efeito de nossas transgressões da regra social. Ao contrário, a regra social aproveita a culpa para poder se impor. Ou seja, a culpa interna é uma condição, não um efeito, da repressão.

Em outras palavras ainda, minha culpa e minha vergonha servem para instituir e sustentar a regra que parece (mas só parece) motivá-las. Como em “O Processo”, de Kafka: primeiro sinta-se culpado, logo lhe diremos de quê.

Há os casos em que a culpa interna e a repressão que ela permite são necessárias para o convívio social – por exemplo, para que a gente não se mate em cada esquina. Mas, em geral, o que acontece é que nossa neurose média nos leva a oferecer nossa culpa como um sacrifício aos deuses da cidade, como se nós estivéssemos sempre pedindo: “Me reprimam, por favor”.

(…)

Folha de S.Paulo, 28/1/2016


Nesta crônica, o leitor é levado a refletir sobre o sentimento de culpa na sociedade atual. O colunista sugere que a culpa interna e a vergonha são os agentes mais eficazes para o cumprimento das regras sociais. A questão da culpa aparece tanto no poema de Gregório de Matos como no sermão de Padre Vieira. No poema de Gregório de Matos, a culpa seria expiada pelo perdão divino. No sermão de Padre Vieira, os vícios seriam redimidos por meio da adesão ao cristianismo. A questão religiosa é evocada para justificar a presença dos sentimento de culpa. Em toda a argumentação há um conflito: de um lado, a ideia de culpa teria sido reforçada pela moral repressora da Igreja – este é o aspecto moralizante dos sermão de Vieira; do outro, a religião também pode proporcionar o perdão – este é o aspecto piedoso presente no poema de Matos. Já no Arcadismo, a busca por uma existência simples, voltada para o prazer (carpe diem) e livre de preocupações atenuou o sentimento de culpa. A preocupação com a felicidade conduziu a uma estética baseada na exaltação dos prazeres terrenos.


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Enquanto os poetas barrocos dispunham de figuras de linguagem (antíteses e paradoxos) para imprimir os contrastes típicos do período, pintores como o italiano Caravaggio, autor de David Vencedor de Golias (no alto), trabalharam os mesmos conflitos com base na dualidade claro/escuro e na dramaticidade das imagens. No período neoclássico ou árcade, as contradições e os excessos do Barroco são substituídos pelos ideais de harmonia, suavidade e equilíbrio. Como na pintura Cristo Crucificado (acima), do espanhol Francisco Goya, que explora a temática religiosa, recorrente no Barroco, mas com outra abordagem. Note as linhas serenas e harmoniosas de um corpo limpo, sem sangue, que transmitem a sensação de que a morte é dor, não agonia. Os traços fortes e as abundantes sombras do Barroco dão lugar a um dramatismo sutil, sem emoções exageradas.

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