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Ditadura Militar: O legado de dom Paulo Evaristo Arns

ATO DE CORAGEM  Dom Paulo Evaristo Arns (à esq.), em culto na Sé, homenageia o jornalista Vladimir Herzog, em 1975

 

Um legado de luta e resistência

Com a morte do cardeal-arcebispo Emérito de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, o Brasil perde um ícone que desafiou o autoritarismo do regime militar

 

Em 1975, quando o Brasil já vivia havia mais de uma década sob o autoritarismo e as atrocidades do regime militar, coube a um carismático líder católico comandar o primeiro grande ato público contra a ditadura. Devido à morte do jornalista Vladimir Herzog, assassinado pelos militares nas dependências do Exército em São Paulo, o cardeal-arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, convocou um ato ecumênico em sua memória. O evento reuniu cerca de 8 mil pessoas na Praça da Sé, em São Paulo, e se transformou em um marco na luta pelo restabelecimento da democracia.

A defesa incondicional dos direitos humanos e a resistência contra a ditadura foram alguns dos principais legados deixados por dom Paulo, morto em dezembro de 2016, aos 95 anos, de falência múltipla de órgãos. Antes mesmo do ato na Sé, ele já havia se notabilizado como o maior defensor dos presos políticos. Nas visitas que realizou aos presídios, constatou a prática sistemática de tortura nos porões do regime e denunciou publicamente suas arbitrariedades. Por isso, bateu de frente com as lideranças militares, tentando interceder diretamente ao pedir o fim das torturas. Também deixou como legado a participação na publicação Brasil: Nunca Mais, o primeiro levantamento dos arquivos militares sobre a repressão política e a prática da tortura na ditadura.

Anos de chumbo

Dom Paulo tornara-se arcebispo da Arquidiocese de São Paulo por decisão do papa Paulo VI, em 1970. Nessa época, o Brasil vivia o período mais repressivo da ditadura militar. Após o golpe de Estado em 1964, quando os militares derrubaram o presidente João Goulart e entregaram o poder à cúpula das Forças Armadas, a repressão suprimiu qualquer tipo de oposição política. Mas foi a partir de 13 de dezembro de 1968 que o país viveu a fase mais dura do regime, conhecida como “anos de chumbo”. Com a decretação do Ato Institucional Número 5 (AI-5), o general Arthur da Costa e Silva, chefe da junta militar, passou a ter amplos poderes. O AI-5 permitiu ao presidente fechar o Congresso Nacional, eliminar os direitos civis e políticos de qualquer pessoa no país e cassar parlamentares, prefeitos e vereadores. Sua atuação estava além dos limites previstos na Constituição e a ação do Judiciário submetia-se ao seu poder.

O AI-5 também suspendeu o direito ao habeas corpus, recurso legítimo contra prisões questionáveis. Essa medida deu carta branca às forças policiais e agentes clandestinos para prender civis sem acusação formal. Muitos opositores civis e membros de movimentos agrários, sindicais e estudantis foram perseguidos, presos, torturados e assassinados. Outros foram sequestrados e eliminados, tornando-se para sempre desaparecidos.

A ditadura escancarada

O AI-5 marcou o ápice de sucessivas medidas que restringiam ou eliminavam direitos civis. Todos os partidos políticos do país haviam sido proscritos e fora adotado o bipartidarismo, com um bloco parlamentar do governo, a Aliança Renovadora Nacional (Arena), e outro de oposição, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Os militares eliminaram a eleição direta, pela população, do presidente da República e seu vice, dos governadores e dos prefeitos das capitais.

O período dos “anos de chumbo” gerou uma fuga de brasileiros que se exilaram no exterior. O aumento da repressão policial e as restrições às liberdades individuais levou parte da esquerda a refugiar-se na clandestinidade e a adotar a luta armada. Grupos radicais organizaram-se na guerrilha urbana e rural. Os guerrilheiros passaram a assaltar bancos para obter fundos e a sequestrar estrangeiros, com o objetivo de negociar a libertação de presos políticos ou obter resgate. Para conter esses grupos, a ditadura endureceu a repressão, criando centros de inteligência do Exército no qual opositores eram interrogados, torturados e mortos.

Resistência cultural

Além da corajosa atuação de dom Paulo na denúncia aos abusos do regime, a resistência à ditadura se desenvolveu em outras frentes, especialmente em setores da cultura e da imprensa. Em 1970, os militares institucionalizaram a censura prévia no país. Segundo levantamento do jornalista e escritor Zuenir Ventura, durante os dez anos de AI-5 teriam sido vetados, total ou parcialmente, cerca de 500 filmes, 450 peças de teatro, 200 livros e mais de 500 letras musicais.

Mas os autores e os artistas procuraram encontrar formas de driblar a censura. Personagens da vida nacional, como o vaqueiro, o pescador, o cangaceiro, surgiam nas canções e peças como representações do brasileiro que luta contra as dificuldades e injustiças e tornaram-se frequentes nas canções apresentadas nos Festivais de Música Popular das emissoras de TV.

Peças e canções sobre revoltas da história do Brasil colonial, por exemplo, eram revisitadas como metáforas da luta contra a ditadura. Foi o que fez Chico Buarque na peça Calabar, O Elogio da Traição, na qual elogia o português Domingos Fernandes Calabar, que preferiu apoiar os holandeses durante a Insurreição Pernambucana (1645-1654). Não adiantou: a peça foi proibida. Já em Cálice, Chico Buarque e Gilberto Gil utilizam frase bíblica de Jesus para fazer dupla leitura com “Cale-se”, em uma crítica às restrições contra a liberdade de expressão.

Alguns autores questionaram mais abertamente a ditadura antes da instauração da censura, como Geraldo Vandré, em Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores (1968): “nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição, de viver pela pátria e morrer sem razão”. Já Caetano Veloso abria a canção Alegria, Alegria (1968) dizendo “Caminhando contra o vento, sem lenço sem documento (…) eu vou. Por que não?”, questionando as rotinas de batidas policiais. Estes são apenas alguns exemplos emblemáticos entre as diversas vozes que desafiaram a ditadura.

A imprensa alternativa

A face mais visível da repressão à imprensa foi a presença de censores atuando dentro das redações. Em reação ao regime, surgiram pequenos jornais e revistas calcados no humor, em entrevistas e debates. A chamada “imprensa nanica” teve, entre seus destaques, a Revista Civilização Brasileira (1965-1968), e os jornais Opinião (1972), Coojornal de Porto Alegre (1974) e Movimento (1975).

Entre os veículos da imprensa alternativa mais influentes do período estava O Pasquim. A publicação surgiu em 1969, no Rio de Janeiro, com uma fórmula que recorria à ironia para desafiar os limites da censura. A publicação reunia um time que contava com Millôr Fernandes, Jaguar, Henfil, Ziraldo, Tarso de Castro, Paulo Francis e Ivan Lessa.

IRREVERÊNCIA Equipe do jornal O Pasquim, que incluía nomes como Paulo Francis, Tarso de Castro e Sérgio Cabral (em pé, da esq. para a dir.): bom humor e ironia para driblar a censura

Apesar de abusar de metáforas e mensagens cifradas para driblar a censura, o aparelho repressivo não gostou de uma brincadeira feita com o famoso quadro Independência ou Morte de Pedro Américo e prendeu boa parte da redação em 1970. Depois de soltos, os membros de O Pasquim não tiveram mais sossego. Antes de ir para as bancas, o jornal tinha de passar pela leitura prévia dos censores. Mesmo com essas dificuldades, O Pasquim sobreviveu aos anos de chumbo e foi publicado até 1991.


Além de torturas e assassinatos, a ditadura agravou os problemas econômicos e sociais no Brasil


Operação Condor: o terror militar unificado

Durante as décadas de 1970 e 1980, militares e agentes brasileiros da ditadura participaram de uma articulação dos serviços de repressão das ditaduras da américa do sul, para perseguir conjuntamente os opositores. a chamada Operação Condor foi formalizada em uma reunião secreta em Santiago do Chile em outubro de 1975, entre Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai. Posteriormente, a Bolívia integrou o grupo. todos os países estavam sob ditadura militar.

A operação consistia em atuar ilegalmente na vigilância de opositores, sequestro, interrogatório, tortura, assassinato e “desaparecimento” de seus
corpos. um país podia solicitar a eliminação de seus opositores pelos agentes do outro país. algumas estimativas apontam que a Operação Condor teria sido responsável por 50 mil mortes, 30 mil desaparecimentos e 400 mil prisões em toda a América do Sul.


Legado de problemas

O AI-5 foi revogado em 1978, e a ditadura militar perdeu força no fim dos anos 1970, desgastada com a retomada da pressão dos movimentos sindicais e estudantis e o fracasso das políticas econômicas. O fim do regime, em março de 1985, com a posse de José Sarney na presidência, deixou evidente os graves problemas econômicos e sociais, que atrasaram o desenvolvimento do país.

No plano econômico, a dívida externa e a inflação tornaram-se problemas crônicos, que impediram o crescimento do país nos anos 1980 e 1990. Paralelamente, a renda piorou, com a deterioração do poder de compra do salário mínimo, e a desigualdade disparou.

No campo social, a falta de uma ampla reforma agrária aumentou a migração da população do campo e agravou os problemas urbanos, com o inchaço das cidades e o aumento da violência.

Na segurança pública, o fato de o regime militar ter criado as polícias militares, com uma atuação mais repressiva do que preventiva, é apontado como uma das principais causas da violência policial existente hoje no Brasil.

Comissão Nacional da Verdade

Apesar de a ditadura ter sido encerrada em 1985, os abusos cometidos pelo regime militar só começaram a ser apurados a partir de 2011, com a instalação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que investigou as violações de direitos humanos ocorridas no período. Pelo relatório final, divulgado em dezembro de 2014, o Estado brasileiro reconheceu oficialmente que as práticas de torturas, execuções e desaparecimentos forçados foram sistemáticas, adotadas pelo aparato repressivo durante o regime militar.

O relatório revela que a repressão atingiu cerca de 20 mil pessoas, das quais 191 foram assassinadas e 243 desapareceram. Além disso, identificou 377 responsáveis por violações dos direitos humanos. A CNV defende que os 196 que ainda estavam vivos naquele ano deveriam ser levados à Justiça. Porém, há uma controvérsia jurídica. O Supremo Tribunal Federal julgou que a Lei de Anistia, aprovada em 1979, livra de processo os que cometeram crimes como funcionários do Estado. A CNV defende que os crimes foram contra a humanidade e, portanto, seriam imprescritíveis. A Corte Internacional de Direitos Humanos também pressiona para que os responsáveis sejam punidos.


PARA IR ALÉM O documentário O Dia Que Durou 21 Anos (2012, de Camilo Galli Tavares), revela a participação do governo norte-americano na preparação do golpe militar. O livro Ah, Como Era Boa a Ditadura… (2015, de Luiz Gê) traz charges do autor satirizando os últimos anos da ditadura militar no Brasil.

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(sc/iStock)

 

 

 

 

Ditadura Militar

DOM PAULO EVARISTO ARNS, cardeal- arcebispo emérito de São Paulo da Igreja Católica, destacou-se durante a ditadura militar como defensor dos direitos humanos e dos presos políticos. Denunciou a tortura e desafiou a cúpula militar. Aposentado, morreu em 2016, aos 95 anos de idade.

DITADURA MILITAR  Período de 21 anos em que o país foi governado por uma junta militar, marcado pela ausência de democracia e por graves violações aos direitos humanos. Teve início em 31 de março de 1964, com um golpe militar que depôs o presidente João Goulart, e terminou em março de 1985, com a posse de José Sarney na Presidência. Os governos militares governaram com atos de exceção chamados Atos Institucionais
(AI). Com o AI-5, decretado em dezembro de 1968, os militares assumem poder absoluto e eliminam os direitos civis e políticos. Ele inicia a fase de maior repressão do regime, chamada “anos de chumbo”.

RESISTÊNCIA O endurecimento da repressão gerou diferentes formas de resistência. No plano político, opositores civis e militares iniciaram a luta armada, realizando assaltos e sequestros. Na cultura, escritores e artistas buscam metáforas históricas para driblar a censura, enquanto jornais e revistas independentes recorriam à ironia.

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