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Brasil: Índios resistem por seus direitos

Paralisação nas demarcações de terra, reestruturação da Funai e proposta de mudar legislação ameaçam as conquistas indígenas

ENFRENTAMENTO – Índio aponta flecha contra a polícia durante manifestação em Brasília, em abril de 2017 ()

Com trajes e adereços típicos, pinturas no rosto, cantando e dançando, mais de 4 mil índios marcharam em Brasília (DF), em 27 de abril de 2017, para protestar contra a redução de seus direitos, o que chamaram de “a mais grave e iminente ofensiva” das últimas três décadas.

Vindos de todas as regiões do país, eles estavam reunidos na capital federal para acompanhar a 14a edição do Acampamento Terra Livre (ATL), evento anual de articulação desses povos. O movimento ganhou o apoio de entidades da sociedade civil e de artistas, como Gilberto Gil, Chico César, Céu e Criolo, que participaram do videoclipe Demarcação Já.

Durante cinco dias, os índios realizaram protestos, debates, seminários e atividades culturais. Em alguns momentos houve repressão, como na ocasião em  que foram recebidos com gás lacrimogêneo e balas de borracha pela polícia na frente do Congresso Nacional.

AMEAÇAS AOS DIREITOS

Essa grande mobilização teve um significado especial por ser a maior dos últimos anos e por ocorrer em um momento de grande dificuldade para os índios. A demarcação de terras está praticamente parada no país. Desde que Michel Temer (PMDB) assumiu interinamente a Presidência, em maio de 2016, nenhum decreto de homologação foi assinado até meados de 2017. Ainda nos governos Dilma (2011-2016) e Lula (2003-2010), entidades ligadas aos índios já alertavam para a diminuição das demarcações.

Outra preocupação dos índios é a articulação do presidente Temer com deputados e senadores que compõem a bancada ruralista – uma frente parlamentar no Congresso Nacional composta de proprietários de terras e defensores dos interesses dos grandes proprietários rurais. Em janeiro de 2017, o Ministério da Justiça publicou uma portaria que alterava os procedimentos de demarcação de terras indígenas. Frente à forte reação, o governo acabou revogando o ato. Mas, dois dias depois, promulgou uma nova versão da portaria. A principal medida é a criação de um Grupo Técnico Especializado (GTE) para analisar e, eventualmente, rever as decisões de identificação e delimitação das terras indígenas, que são feitas pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Para os defensores da causa indígena, trata-se da instituição de uma nova instância com a finalidade de dificultar e deixar ainda mais lentas as demarcações de terras. Já o governo rebate o argumento e afirma o contrário: o GTE, ao fornecer subsídios para a decisão do ministro da Justiça (órgão que aprova os pedidos da Funai), vai tornar mais ágil o processo.

Outro fato que causou apreensão entre a comunidade indígena foi a nomeação do deputado federal Osmar Serraglio (PMDB-PR), membro ativo da bancada ruralista, para o Ministério da Justiça, pasta à qual se subordina a Funai.  Serraglio permaneceu no cargo apenas três meses, entre fevereiro e maio de 2017. Nesse período, nomeou um militar para presidente do órgão, o general Franklimberg Ribeiro de Freitas, o que foi duramente criticado por índios e organizações ligadas aos direitos dos povos indígenas, que consideraram o fato um retrocesso. Desde março de 2017, a própria Funai também sofre com uma reestruturação, que incluiu o corte de verbas e de funcionários. Os setores  mais atingidos são justamente os que cuidam da demarcação de terras e que avaliam as licenças ambientais para projetos de infraestrutura que afetam os povos indígenas.

MUDANÇAS NAS LEIS

Um dos resultados concretos do ATL foi a apresentação da versão final do documento produzido pela organização. O texto, que foi protocolado no Palácio do Planalto e em alguns ministérios, registra “repúdio” a medidas que têm tramitado na Câmara e no Senado sem consulta ou debate junto às instâncias representativas indígenas.

Uma dessas medidas é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215/2000, que visa a transferir do Executivo para o Legislativo o poder de aprovar a demarcação de terras indígenas e quilombolas e ratificar ou até revisar demarcações já homologadas, além de vetar ampliação de terra indígena já demarcada. Em outubro de 2015, uma comissão especial da Câmara dos Deputados aprovou o texto da PEC 215, que para entrar de fato em vigor deverá ainda ser votada no plenário da Câmara e no Senado.

Os deputados que a defendem alegam que a forma como a demarcação e a regularização definitiva de terras indígenas acontecem atualmente ameaça a produção e a expansão do agronegócio. As lideranças indígenas argumentam que a PEC 215 transformaria o que hoje é o reconhecimento de seu direito constitucional a terra em um processo à mercê de negociação de interesses econômicos e políticos para votações no Congresso, onde a bancada ruralista tem muita força.

OUTRAS PROPOSTAS

Além da PEC 215, há outras leis em andamento que são criticadas pelos índios por ameaçarem seus direitos, como:

• a PEC 187/2016, por permitir atividades agropecuárias em áreas indígenas;

• o Projeto de Lei Complementar (PLP) 227/2012, que indica exceções para o uso exclusivo de terras indígenas no caso de haver relevante interesse público do Estado brasileiro (como a construção de obras públicas);

• o Projeto de Lei (PL) 1.610/1996, que trata da exploração de recursos minerais em terras das comunidades.

Para lideranças da causa indígena, ao considerar atividades econômicas não realizadas por índios e a possibilidade de controle dos territórios por empresas privadas ou mesmo pelo poder público, esses textos se tornariam inconstitucionais. Isso porque eles desrespeitariam o artigo da Constituição de 1988 que define o usufruto exclusivo dos indígenas e seu direito originário à terra demarcada.

PRIMEIROS HABITANTES

Quando os portugueses chegaram  ao Brasil, em 1500, havia cerca de 3 milhões de índios no país. O processo de colonização levou a uma diminuição drástica dessa população, como resultado do extermínio armado, doenças trazidas da Europa (para as quais eles não tinham defesa imunológica), perda de terras e escravização. Por volta de 1650, restavam 700 mil índios no país, dos quais apenas 5% dos que viviam próximo ao litoral. Os grupos que sobreviveram ficaram abrigados no interior do território, como a Região Amazônica.

No século XX, áreas nas quais viviam eram frequentemente consideradas como terras públicas pelos governos e distribuídas ou vendidas a fazendeiros. Foi o que aconteceu em Mato Grosso do Sul, estado de maior foco de conflitos atualmente. O quadro só começou a mudar na década de 1960, com a criação da primeira reserva indígena, a do Xingu, e da Funai. Até essa década, a população indígena já havia diminuído para cerca de 70 mil pessoas.

CRESCIMENTO POPULACIONAL

Passo importante no reconhecimento dos direitos indígenas foi dado pela Constituição de 1988. Ela estabeleceu o direito dos índios a terras em tamanho e condições adequados às suas necessidades econômicas e culturais.

Como resultado da institucionalização do seu direito a terra e estruturas para atendimento em saúde e educação, a população indígena passou a crescer. Em 1991, o IBGE incluiu os indígenas no censo demográfico. Nessa época, o  ritmo de crescimento da população indígena foi quase seis vezes maior que o da população em geral. Entre 2000 e 2010, data do último Censo, esse aumento também foi expressivo e se deveu ao incremento do número de pessoas que se reconhecem como indígenas. O total de índios autodeclarados passou de 306.245 em 1991 para 896.917 em 2010, o que equivale a 0,4% dos habitantes do país. São 305 povos que falam 274 línguas.

CONDIÇÕES DE VIDA

A lentidão do governo na homologação de terras indígenas impacta diretamente nos conflitos que opõem indígenas a ruralistas e grandes proprietários. Segundo o relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil 2015, publicado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), permanece a situação de constante invasão e devastação de terras demarcadas, além de agressões, incluindo a prática de torturas. O estudo chama a atenção para o agravamento do número de ataques perversos a comunidades, como Guarani e Kaiowá, em Mato Grosso do Sul. Um caso recente que ganhou repercussão nacional foi o ataque que deixou mais de dez indígenas do povo Gamela feridos em Viana (MA), no final de abril de 2017. Um dos índios teve fratura exposta nas mãos devido a golpes de facão.

Os conflitos armados entre ruralistas e povos indígenas acontecem em todas as regiões do país, mas Mato Grosso do Sul é a região mais instável. O estado tem forte vocação econômica para o agronegócio, mas a expansão da atividade esbarra em limites de territórios indígenas. Ainda de acordo com o relatório do Cimi, houve 137 assassinatos de indígenas em todo o país em 2015, sendo 36 deles no estado. Esse quadro de enfrentamento e ameaças leva, muitas vezes, à expulsão dos índios de suas terras e ao aumento de casos de alcoolismo e uso de outras drogas, exploração sexual e suicídios. O Censo de 2010 mostrou que cerca de 35% dos índios brasileiros moram em cidades. Muitos  vivem em situação de pobreza, habitam áreas de risco, encontram dificuldade para conseguir trabalho e ainda sofrem preconceito e discriminação.

COMO AS DEMARCAÇÕES SÃO FEITAS

Segundo a Constituição de 1988, compete à união demarcar e proteger terras tradicionalmente ocupadas por índios. O atual processo de demarcação segue o decreto 1.775/1996. Ele é composto de sete etapas:

• Estudos de identificação: a Funai nomeia antropólogo para elaborar estudo da terra indígena em questão.

• Aprovação: relatório tem de ser aprovado pelo presidente da Funai.

• Contestação: todo interessado, inclusive estados e municípios, pode manifestar-se. A Funai encaminha o procedimento ao ministro da Justiça.

• Declaração dos limites: o ministro da Justiça declara os limites da área e determina a sua demarcação (ou abre diligência ou desaprova o processo).

• Demarcação: a Funai promove a demarcação física.

• Homologação: a demarcação é submetida ao presidente da República para homologação por decreto.

• Registro: a terra demarcada e homologada é registrada em cartório e na Secretaria
de Patrimônio da União.

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RESUMO – ÍNDIOS

PERFIL DO ÍNDIO: Havia cerca de 3 milhões de índios na época do descobrimento do Brasil, em 1500. Com a colonização, eles viveram um processo de extermínio, escravização e perda de terras e direitos. Na década de 1950, eram apenas 70 mil. Mas, nas últimas décadas, a população indígena voltou a crescer. Segundo o Censo de 2010, 897 mil índios vivem no país, a maior parte deles na Região Norte.

CRESCIMENTO POPULACIONAL: Deve-se a alguns fatores, como a promulgação da Constituição de 1988, que reconhece o seu direito originário sobre as terras que habitavam, e o aumento nas demarcações a partir dos anos 90. Também contaram para isso o maior acesso à saúde e mais autodeclarações no Censo.

TERRAS: Atualmente, há 704 terras indígenas reconhecidas ou em reconhecimento. O processo de regularização é conflituoso, pois enfrenta a resistência dos grandes proprietários rurais, que alegam prejuízo à expansão do agronegócio. Nos governos Lula e Dilma a quantidade de demarcações entrou em queda e nenhuma foi homologada pelo presidente Temer até meados de 2017.

AMEAÇAS: Além da paralisação das demarcações, outras questões preocupam os índios: a criação de um Grupo Técnico Especializado (GTE), que pode rever decisões da Fundação Nacional do Índio (Funai) em relação à identificação e à delimitação das terras indígenas, a crise enfrentada pela Funai e as disputas com ruralistas, que, muitas vezes, terminam em episódios de violência.

LEGISLAÇÃO: Indígenas lutam contra medidas que põem em risco direitos já conquistados. Uma delas é a PEC 215, que prevê que a demarcação de terras indígenas seja feita pelo Congresso e não pelo Poder Executivo, como acontece atualmente. Outras propostas em andamento criticadas pelos índios dizem respeito à permissão de atividades agropecuárias e mineração em suas terras. Há ainda a PL 227, que determina exceções (como obras
de interesse público) para o uso exclusivo dos indígenas em terras demarcadas.

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