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Entenda a guerra civil que devasta a Síria há quase uma década

Mais de 380 mil pessoas já morreram nesse conflito, que alterou o equilíbrio de forças no Oriente Médio e aumentou as tensões entre Rússia e Estados Unidos

RESUMO

O que é: Iniciada em 2011, durante a onda de protestos desencadeada pela Primavera Árabe, a Guerra Civil Síria opõe o governo sírio e seus aliados contra grupos rebeldes, em especial o Exército Livre da Síria (ELS), além de extremistas islâmicos e forças curdas, etnia que habita territórios de Síria, Turquia, Iraque, Irã, Armênia e Azerbaijão e reivindica a criação de um Estado próprio.

O que fez: O conflito provocou mais de 380 mil mortes, nas estimativas oficiais, e levou 6,6 milhões de pessoas a deixar o país. A Síria se tornou terra arrasada, com 90% da população vivendo abaixo da linha de pobreza.

Importância: A guerra levou milhares de refugiados a buscar abrigo principalmente em cinco países vizinhos, Egito, Iraque, Jordânia, Líbano e Turquia. Também reforçou as tensões entre Irã e Arábia Saudita e entre Estados Unidos e Rússia.

Março de 2011. Um grupo de crianças em Daraa, no sul da Síria, é preso pela polícia por pichar frases críticas ao governo. Inconformadas, centenas de pessoas saem às ruas da cidade para protestar contra as restrições à liberdade promovidas pelo governo do ditador Bashar Al-Assad. Com esse episódio, assim como em outros países do Oriente Médio e do norte da África, a Síria mergulhou na onda de manifestações conhecida como Primavera Árabe.

A manifestação pacífica em Daraa foi violentamente reprimida. As forças de segurança abriram fogo contra a multidão e mataram dezenas de pessoas. A reação desproporcional do governo estimulou novas revoltas. Algumas semanas depois, mais de 100 cidades na Síria foram palco de protestos regulares. As tropas do governo não cederam e responderam com violência, o que levou a oposição a se organizar em diversos grupos armados para lutar contra Assad. Foi o marco do início da guerra civil.

Corta para março de 2020. A guerra está entrando no décimo ano, a Síria é uma terra arrasada. O conflito foi considerado pela Organização das Nações Unidas (ONU) a maior crise humanitária deste século. Os números falam por si sós. Segundo o Observatório Sírio dos Direitos Humanos (OSDH), já foram mais de 380 mil mortes oficiais, de pessoas que foram identificadas. 

Entretanto, estima-se que este número ultrapasse os 500 mil se considerados os desaparecidos e não documentadas. Apesar de a conta ser devastadora, a ONG registrou a menor contagem de vítimas fatais da história do conflito no mês de março de 2020, com 103 mortos. As fatalidades vêm diminuindo – 2014 foi o ano mais mortífero, com 76 mil óbitos.

Entre os sobreviventes, 6,5 milhões de pessoas foram obrigadas a mudar para outras regiões do país, e outros 6,6 milhões abandonaram a Síria. Com a economia em frangalhos, mais de 90% dos sírios que permaneceram no país agora vivem abaixo da linha de pobreza. De acordo com organizações internacionais, cerca de 9,3 milhões de pessoas não possuem acesso adequado à alimentação na região em junho de 2020.

Refugiados em acampamento na fronteira entre a Síria e a Turquia
Refugiados em acampamento na fronteira entre a Síria e a Turquia ()

As forças no conflito

A população síria encontra-se no meio de um fogo cruzado que envolve diferentes grupos. Veja a seguir as principais forças envolvidas no conflito:

GOVERNO SÍRIO E ALIADOS De um lado do conflito está o regime sírio, liderado por Bashar Al-Assad. Desde 1970, a família Assad comanda no país um brutal regime de partido único. Apesar de serem alauítas (uma seita muçulmana do ramo xiita), os Assad mantinham um governo laico, que separava a religião do Estado. Com o início dos protestos, os sunitas tomaram a frente na oposição ao regime, o que deu ao conflito contornos sectários.

Quanto às alianças externas, Assad conta com o apoio do Irã e do grupo libanês Hezbollah, formando um “eixo xiita” no Oriente Médio. O termo se refere a uma aliança política que reúne países e organizações cujos líderes são adeptos dessa corrente do islamismo. O grupo se opõe a Israel e disputa a hegemonia no Oriente Médio com as monarquias sunitas, lideradas pela Arábia Saudita. O principal aliado fora da região é a Rússia, que mantém uma antiga parceria com a Síria, sustentada pela base naval que os russos controlam em Tartus, no litoral sírio. 

GRUPOS REBELDES Umas das primeiras forças a mergulhar na guerra foram os grupos sunitas que lutam para derrubar a ditadura de Assad. Entre os chamados “rebeldes moderados”, que recebem esse nome por não serem adeptos do radicalismo islâmico, a maior expressão é o Exército Livre da Síria (ELS). A organização conta com o respaldo das potências ocidentais, lideradas pela Europa e EUA. Também recebem apoio da Turquia e da Arábia Saudita, principais inimigos de Assad na região. É por isso que a guerra na Síria, além de ser uma disputa interna de poder, reflete a rivalidade entre dois países-chave no Oriente Médio: Irã e Arábia Saudita.

EXTREMISTAS ISLÂMICOS Entre os grupos que queriam derrubar Assad no começo da Guerra, além dos rebeldes moderados, havia facções extremistas islâmicas, fragmentadas em diversos grupos. Uma das que mais conquistou terreno nos primeiros anos do conflito foi a Frente Al-Nusra, antigo braço da rede extremista Al Qaeda na Síria. Posteriormente, a partir de 2013, o grupo terrorista Estado Islâmico (EI) aproveitou-se da situação de caos criada pela guerra civil e, vindo do Iraque, avançou de forma avassaladora, ocupando metade do território sírio. 

Com este avanço, o grupo extremista chegou a criar um califado. Mas esta zona de controle durou pouco e acabou em 2019. O balanço do Observatório Sírio de Direitos Humanos de 2019 afirmou que o EI controlava menos de 2% do território sírio no final daquele ano, representando um risco bem menor ao governo.

CURDOS Há, ainda, o que podemos chamar de uma quarta força envolvida no conflito. Trata-se dos curdos, etnia que habita territórios de Síria, Turquia, Iraque, Irã, Armênia e Azerbaijão e reivindica a criação de um Estado próprio para o seu povo – o Curdistão. Desde o início do conflito na Síria, a Unidade de Defesa Popular (YPG), uma milícia formada para defender as regiões habitadas pelos curdos no norte do país, se fortaleceu. Para o regime de Assad, a YPG foi um ator bastante útil, porque a milícia foi uma das principais forças de resistência tanto contra os extremistas do EI como os “moderados” do ELS.

Essa situação chegou a colocar EUA e Turquia, ambos membros da Otan, a aliança militar ocidental, em lados opostos. Isso porque o YPG recebia o apoio dos norte-americanos na luta contra o EI, mas é um dos principais inimigos da Turquia, que teme o fortalecimento dos curdos em seu próprio território. Contudo, o governo americano, sob o comando do presidente Donald Trump, terminou essa parceria de longa data com os curdos a fim de retomar relações diplomáticas com a Turquia. Este novo cenário levou a confrontos entre curdos e turcos, já que não existiam mais militares americanos na região.

A sobrevivência de Assad

Com tantas forças envolvidas no combate, nestes quase dez anos da guerra civil houve diversos momentos em que as tropas de Assad estiveram à beira da derrota. Os violentos combates travados entre regime e rebeldes foram marcados por avanços e retrocessos das forças oficiais em cidades estratégicas, como a capital Damasco, além de Homs e Aleppo – áreas que hoje são controladas por Assad.

Mas o momento mais delicado para o ditador foi em 2013, quando um ataque com armas químicas no subúrbio de Damasco foi atribuído ao regime sírio. Os EUA chegaram até a anunciar uma ofensiva militar punitiva, mas acabaram aceitando a solução diplomática oferecida pela Rússia: o ataque seria suspenso com o compromisso da Síria em destruir suas armas químicas. O plano deu certo, e Assad ganhou uma sobrevida no poder.

Diante de todas essas ameaças, é surpreendente o fato de Assad ainda sustentar o seu regime. Mas dois fatores centrais explicam a permanência do ditador sírio. Em primeiro lugar, o regime beneficiou-se, por trágica ironia, do crescimento do EI, que fez acender a luz de perigo para as grandes potências. Houve uma mudança de foco, e a estratégia da coalizão ocidental passou a privilegiar a contenção do grupo terrorista, deixando para uma etapa posterior a questão da retirada de Assad do poder.

O segundo motivo, mais determinante, foi a intervenção militar da Rússia em defesa de Assad. Em setembro de 2015, o governo russo iniciou ataques aéreos dirigidos ao território da Síria, oficialmente contra as posições do EI – mas não só. Os bombardeios russos tinham como alvo principal os rebeldes moderados anti-Assad, justamente aqueles que são apoiados pelos EUA e as potências ocidentais. Obviamente, essas ações militares foram condenadas pelo governo norte-americano, para quem o foco dos ataques deve ser o EI e não ajudar Assad.

Esses aliados continuam a apoiar o governo até os dias de hoje, sendo os grandes responsáveis pela retomada territorial de Assad nos últimos anos e também pela sobrevida política dele. Entretanto, estes movimentos tornaram o regime, mesmo que com maior controle de terras, refém de seus parceiros de batalha. Irã e Rússia não estão agindo a favor da Síria à toa. Eles têm interesses muito bem estabelecidos para o pós-Guerra, seja militar, diplomático ou territorial.

Bashar al-Assad em encontro com Vladimir Putin, em 2018, na Rússia
Bashar al-Assad em encontro com Vladimir Putin, em 2018, na Rússia (www.kremlin.ru/Wikimedia Commons)

Da relutância de Obama à ofensiva de Trump

Além das divergências com a Rússia, os EUA tiveram um problema adicional na era Obama: a avaliação segundo a qual o principal perigo era o Estado Islâmico não era compartilhada por alguns de seus principais parceiros. A começar pela já mencionada Turquia, cujos principais inimigos eram os guerrilheiros curdos do Partido dos Trabalhadores de Curdistão, o PKK. Já no entendimento de Arábia Saudita e Israel, a ação do Irã na Síria era mais perigosa que a do EI.

Outro problema era que parceiros estratégicos dos EUA, como França, Reino Unido, Alemanha, Turquia e Arábia Saudita, revelaram-se incomodados com o que acreditam ser uma postura omissa do governo de Barack Obama, que teria aberto espaço para a ofensiva russa. O país está destruído, mas as tropas de Assad, apoiadas por iranianos e pelo Hezbollah, e tendo como retaguarda os fortes bombardeios da Rússia, conquistou posições importantes.

Obama, porém, mostrou-se resistente ao envio de tropas para combates terrestres. Na verdade, o governo norte-americano temia que uma intervenção direta na Síria causasse o mesmo efeito produzido na invasão ao Iraque em 2003: uma rebelião de diversos grupos contra a ocupação estrangeira e a permanência prolongada das tropas dos EUA no país. 

Durante a administração Obama, os norte-americanos procuraram manter os bombardeios aéreos e engajar ao máximo possível os seus aliados europeus ou locais – principalmente os curdos – num compromisso mais direto de combates no terreno. No meio dessa falta de entendimento entre as potências estrangeiras, Assad estendeu sua longevidade à frente da ditadura síria.

O poder do presidente sírio só aumentou, potencializado pelo controle territorial que alcançou novamente, mas a atitude dos Estados Unidos teve algumas alterações à medida que o controle da Casa Branca passou a ser de Donald Trump. O republicano realizou dois bombardeios ao país do Oriente Médio como resposta a ataques químicos realizados na Síria, um em 2017 e outro em 2018, em conjunto com França e Reino Unido. Em setembro de 2019, um porta-voz americano voltou a acusar Assad pela utilização de gás cloro, considerado arsenal químico. 

Em uma outra acusação, em 2017, o governo liderado por Trump chegou a colocar certa responsabilidade de tais atos na conta de Obama, alegando que o ex-presidente foi negligente ao lidar com ataques químicos no passado. “O presidente Obama disse em 2012 que iria estabelecer uma ‘linha vermelha’ contra o uso de armas químicas e não fez nada”, disse Trump em comunicado à época. Os ataques utilizando armas químicas são condenados por grandes potências mundiais e vão contra acordos realizados pelo próprio Assad.

Vale lembrar que em 2013 o presidente assinou a Convenção de Armas Químicas, que consiste na proibição de produzir, armazenar e utilizar armas químicas. Além disso, a ONU e a Organização para Proibição de Armas Químicas (Opaq) destruíram muitas toneladas de armamentos deste tipo. 

Entretanto, diversos estudos apontam que Assad continua ordenando investidas com elementos tóxicos na batalha para obter o controle de novas áreas. Um levantamento da empresa britânica BBC concluiu que já foram 106 ataques químicos desde o fechamento deste acordo. O líder da Síria nega qualquer tipo de envolvimento oficial do governo com tais práticas.

A participação americana na Guerra da Síria não para por aí. Donald Trump ordenou a retirada de suas tropas posicionadas ao norte da Síria, próxima à fronteira com a Turquia, no final de 2019. O exército dos Estados Unidos ficava posicionado em território ocupado por curdos e evitava o combate do povo da região com os turcos. Porém, em tentativa de reaproximação com a Turquia, o EUA deixaram seus postos e abriram espaço para mais um capítulo da Guerra da Síria.

Área de preparação do Exército Americano na Síria
Área de preparação do Exército Americano na Síria (Exército dos Estados Unidos foto por Spc. DeAndre Pierce/Wikimedia Commons)

Pouco tempo depois, a Turquia moveu suas forças para combater os curdos, considerados uma ameaça. Do outro lado, o povo que não tem um território para chamar de seu considerou a atitude como traição, já que as tropas armadas dos americanos eram parceiras na luta contra o Estado Islâmico, principalmente as Forças Democráticas da Síria (FDS).

Frágil cessar-fogo

Com a resistência de Assad e a prolongação de um sangrento conflito, os atores envolvidos na guerra passaram a se empenhar em uma solução diplomática. O Conselho de Segurança da ONU aprovou, em dezembro, uma resolução prevendo negociações no início de 2016 entre o governo sírio e os rebeldes, sem a participação de grupos e indivíduos considerados “terroristas”, caso do EI e da Frente Al-Nusra.

O processo de paz seria precedido de um cessar-fogo e conduziria, entre outros pontos, a um governo transitório e eleições no prazo de 18 meses. Foi a primeira vez que a Rússia aceitou um documento desse tipo. O país não concorda, porém, com a saída de Assad do poder como condição para as negociações, como defendem grupos rebeldes de oposição.

Mas as negociações nem chegaram a começar de fato. O aumento dos bombardeios russos, principalmente na cidade de Aleppo, levou à suspensão por três semanas das discussões, previstas inicialmente para o começo de fevereiro. Somente nos primeiros dez dias do mês, os ataques russos provocaram mais de 500 mortes em Aleppo.

Apesar das dificuldades, no fim de fevereiro entrou em vigor um cessar-fogo na Síria, em um acordo costurado por EUA e Rússia. A pausa nas hostilidades tem como principal objetivo a entrada de ajuda humanitária no país. Continuariam apenas as ações contra o EI e a Frente Al-Nusra. No entanto, poucas horas após o início do cessar-fogo, o governo sírio e os grupos rebeldes já trocavam acusações de que o outro lado havia violado a trégua.

O cenário não melhorou nos anos seguintes. As tentativas de acordos para o cessar-fogo aconteceram algumas vezes, seja entre a Rússia e a Turquia ou pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, mas não obtiveram sucesso. As tratativas diplomáticas buscam poupar vidas de civis e restaurar a paz em áreas devastadas pelos conflitos da Guerra da Síria. Duas das regiões mais afetadas e envolvidas nas negociações são Idlib e Ghouta.

O drama dos refugiados

Nestes quase dez anos de violência ininterrupta, mais da metade dos habitantes da Síria  abandonaram seus lares, tornando-se deslocados internos ou refugiados em diversos países. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) registrou 6,6 milhões de refugiados sírios pelo mundo, o maior número de uma única nação mundialmente. 

Apesar de a crise dos refugiados também ter atingido a Europa nos últimos anos, as pessoas que fugiram da guerra na Síria dirigiram-se principalmente para cinco países do Oriente Médio: Turquia, Líbano, Jordânia, Iraque e Egito, que abrigavam cerca de 5,5 milhões de pessoas no final de 2019, segundo o ACNUR. 

Essas nações concentram 83% dos refugiados sírios e demandam muito mais assistência dos serviços públicos do que ocorre atualmente na Europa. Os outros 17% estão distribuídos pelo mundo inteiro, em 121 países diferentes. A maioria são crianças e mulheres.

Nesses países que fazem fronteira com a Síria, há sérios problemas para garantir as necessidades básicas dos refugiados, como alimentação, abrigo e ensino para as crianças. Em muitos casos, os campos de refugiados estão superlotados. A gravidade da situação tem levado a uma mudança de posição dos governos dessas nações. 

No Líbano, onde o total de sírios refugiados, superior a 1 milhão, equivale a 25% da população total, entraram em vigor em 2015 novas exigências para os estrangeiros que chegam, como o pagamento de uma taxa para a obtenção de uma autorização de permanência – válida por no máximo um ano. 

A Jordânia, segundo o rei Abdullah Ibn Al-Hussein, está “em ponto de ebulição”, já que os sírios refugiados equivalem a 20% da população jordaniana, e o país não tem condições de assegurar serviços públicos aos que chegam. Além disso, em 2019, várias ONGs denunciaram que estes dois países têm realizado ações para retirar milhares de refugiados de forma forçada, como destruição das moradias. 

A pressão é grande também na Turquia, país que se tornou o principal destino dos refugiados – mais de 3,6 milhões de sírios cruzaram a fronteira entre os dois países. A Turquia disponibiliza mais de 20 campos de refugiados, mas os abrigos são insuficientes para atender a todos os migrantes sírios, e muitos deles estão sem nenhuma assistência. A situação preocupa a União Europeia (UE), pois a maioria dos refugiados que chega à Turquia tem como destino final nações europeias como Alemanha e Áustria.

Por isso, os líderes da UE fecharam um acordo com a Turquia em 2015, ano da crise migratória, a fim de evitar a onda de refugiados em direção aos países do bloco econômico. Os turcos receberiam ajuda financeira, mas em troca precisariam cuidar das fronteiras, já que eram a porta de entrada ao continente. Naquele ano, mais de 1,5 milhão de pedidos de asilo foram apresentados à nações europeias.

Entretanto, no começo de 2020, a Turquia abriu mão da proteção e permitiu a entrada livre de refugiados à Europa. Esta atitude aconteceu após o país sofrer perdas na Guerra da Síria, o que levou a uma alegação de falta de apoio vindo da União Europeia. Do outro lado, a Grécia trabalhou para conter a invasão, assim como outros países. O governo grego chegou a apresentar um projeto de barreiras flutuantes para impedir o acesso clandestino pelo mar. O ACNUR contabilizou 6,5 milhões de refugiados de todo o mundo na Europa no final de 2019.

Refugiados sírios e iraquianos em tentativa de entrar na Grécia através do oceano
Refugiados sírios e iraquianos em tentativa de entrar na Grécia através do oceano (Ggia/Wikimedia Commons)

A Turquia, embora abrigue milhões de refugiados, também se incomoda com a situação dessas pessoas, majoritariamente sírias. Tanto que um dos planos turcos era combater e expulsar os curdos da região onde vivem ao norte da Síria para poder mandar milhares de sírios de volta ao seu país de origem. 

Há um questionamento sobre se este procedimento não violaria a lei humanitária que impede a devolução involuntária de refugiados a locais onde correm risco, porém a intenção é que ocorra uma pacificação da área e que o caminho de volta seja feito voluntariamente. Apesar de todo o caos que paira sobre o país nos últimos 10 anos, uma pesquisa de 2018 apontou que 76% dos sírios pretendem voltar à terra natal.

Irã x Arábia Saudita

No tabuleiro complexo que é o Oriente Médio, a guerra na Síria afeta o equilíbrio de poder entre dois países-chave da região. A Arábia Saudita e o Irã estão em lados opostos no conflito sírio e também alimentam divergências no que se refere à disputa pelo poder regional e à religião muçulmana. Os sauditas são guardiões das tradições sunitas, e seu regime apoia-se numa forma de fundamentalismo (o wahabismo), considerado inspirador de grupos terroristas como Al Qaeda e EI.

O Irã é uma república islâmica também aferrada a fortes tradições conservadoras, mas no âmbito dos xiitas. Há também razões econômicas que dão sustentação a essa rivalidade entre sauditas e iranianos: ambos os países estão entre os grandes produtores mundiais de petróleo. Por isso mesmo, o acordo histórico que as potências fecharam com o Irã em 2015, pelo qual o governo iraniano concordou em limitar drasticamente seu programa nuclear, em troca da suspensão das sanções econômicas que pesavam contra si, foi mal recebido pelo regime saudita. 

O Irã é considerado um pária na comunidade internacional desde a Revolução Islâmica de 1979, por supostamente apoiar grupos terroristas e buscar a fabricação de armas nucleares (o que o regime sempre negou). Após assinar o acordo com outras potências mundiais, incluindo o Estados Unidos de Barack Obama, o país foi reintegrado ao sistema global e teve acesso a cerca de 100 bilhões de dólares que estavam congelados no exterior. 

Esta manobra permitiria um crescimento dos iranianos, o que preocupou os sauditas. Entretanto, em 2018, o presidente Donald Trump retirou os EUA do acordo, por achar ele pouco efetivo, chegando até a classificá-lo como “o pior negócio de todos os tempos”. Desde então, o Irã vem quebrando regras estabelecidas no pacto e, consequentemente, sofrendo com sanções impostas pelos americanos.

o regime saudita é um dos mais autoritários e fechados do mundo. Seu sistema judiciário prevê, entre as penalidades, chibatadas e decapitação. Em janeiro de 2016, a execução de 47 pessoas acusadas de terrorismo, entre as quais o respeitado clérigo xiita Nimr Baqir al-Nimr, motivou fortes protestos no Irã. Manifestantes invadiram a embaixada saudita na capital iraniana, Teerã, e incendiaram o edifício. O episódio foi a gota d’água para que a Arábia Saudita rompesse relações diplomáticas com o Irã.

As execuções realizadas pelos sauditas receberam dos EUA e das potências uma condenação em termos brandos. O fato de os sauditas serem grandes produtores de petróleo, aliados dos ocidentais e com enormes investimentos no mercado financeiro mundial explica, segundo analistas, essa posição. Tradicionalmente, os governos norte- americanos mantêm relações estreitas com o regime saudita.

Dois anos depois, em 2018, o jornalista Jamal Khashoggi foi morto dentro do consulado da Arábia Saudita. Investigações indicam que o atentado foi premeditado, mas o governo nega, apesar de o príncipe Mohammed bin Salman assumir responsabilidade. O país até chegou a sofrer algumas retaliações internacionais, como a interrupção do comércio de armamento por parte da Alemanha e Finlândia, mas os Estados Unidos pouco fizeram. 

Outro episódio violento aconteceu em abril de 2019, quando 37 pessoas foram executadas pelo país acusadas de terrorismo. Além disso, a nação também foi atacada pelo rival em setembro. O Irã foi acusado de ordenar ataques a drone em uma refinaria e um campo de petróleo da Arábia Saudita. Como resposta, os Estados Unidos aplicaram mais sanções contra os iranianos. 

Vale ressaltar que o petróleo é um dos principais pontos de interesse do conflito. Os sauditas, maiores produtores de petróleo do mundo e parceiros dos EUA, normalmente mantém uma grande produção do mesmo para afetar os iranianos, já que a economia deles têm uma dependência maior deste recurso. O evento de 2019 diminui a produção da Arábia Saudita em 50% e elevou o custo do barril em 20%.

Em 2020, a Arábia Saudita está indo no caminho de adotar leis mais brandas se comparadas às anteriores, a fim de combater crimes de acordo com a política de direitos humanos, ainda que continue existindo uma série de repressões e punições. Do outro lado, o Irã segue sofrendo com ações americanas. Em janeiro, Trump assumiu a autoria de um bombardeio que matou Qassem Soleimani, principal general iraniano.

Além do envolvimento dos EUA, o confronto também marca a disputa por influência no Oriente Médio. Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Egito e Jordânia apoiam estão do lado saudita, enquanto a Síria de Bashar al-Assad, o Iraque e os libaneses do Hezbollah apoiam os iranianos. Ainda existe uma enfrentamento em um conflito no Iêmen. A Primavera Árabe e a Guerra da Síria, por serem períodos de instabilidade, serviram para ambos os países rivais tentarem aumentar o seu poder na região.

O conflito na Síria também não deixa de ser uma guerra indireta entre sauditas e iranianos. Também é possível analisar a guerra sob o prisma da disputa entre Rússia e EUA, que tentam manter seus interesses estratégicos no Oriente Médio. 

Ou, ainda, como uma luta interna entre o regime de Assad contra as milícias sunitas e as organizações terroristas. Por causa de toda essa rede de interesses, é muito difícil encontrar uma solução rápida e duradoura. Enquanto isso o conflito na Síria continua matando milhares de pessoas e é foco do maior desafio à segurança mundial nos últimos anos.

Primavera Árabe, quase dez anos depois

No início de 2011, uma onda de revoltas varreu vários países do Oriente Médio e do norte da África. Milhares de pessoas, sobretudo jovens, foram às ruas apresentando reivindicações muito concretas, como democracia, liberdade de expressão e justiça social. Estava deflagrada a Primavera Árabe.

Essas revoltas encheram de esperança a população árabe num primeiro momento. Em poucos meses, longevos ditadores foram derrubados. Entre janeiro e outubro caíram os presidentes da Tunísia, do Egito, do Iêmen e da Líbia – neste último, o ditador Muammar Kadafi foi morto por um cerco popular. As revoltas também atingiram países como Barein, Arábia Saudita, Marrocos e a própria Síria.

Pessoas protestando em Áden, no Iêmen, durante a Primavera Árabe, em 2011
Pessoas protestando em Áden, no Iêmen, durante a Primavera Árabe, em 2011 (AlMahra/Wikimedia Commons)

Mas, passados quase dez anos, o que se vê é um quadro de desagregação nesses países. Na Síria, o regime de Assad já ficou prestes a ser derrubado, mas recebeu ajuda de alguns aliados e se manteve no poder. As dezenas de países envolvidos e interesses em jogo, além das forças terroristas, fizeram com que o controle do país estivesse em questão durante muito tempo. 

Entretanto, as tropas de Bashar al-Assad terminaram o ano de 2019 com o controle de 72% do território sírio. Já no início 2020, o governo retomou a autoestrada M5 e dos arredores de Aleppo, uma das cidades mais importantes do país. Ao final do ano, eles pretendem ter assumido também a região de Idlib, noroeste do país, para ter ainda mais estabilidade.

No Egito, um governo eleito, dirigido pelos islâmicos vinculados à organização Irmandade Muçulmana, foi derrubado pelos militares em 2013. O atual presidente é o ex-marechal Abdel Fatah Al-Sisi, que dirige um regime dominado pelo Exército e considerado tão ou mais autoritário que o de antes da Primavera Árabe, comandado por Hosni Mubarak. 

Um referendo em 2019 determinou que o Al-Sisi poderá ficar no poder até 2030. Com 88,8% dos votos, o resultado estabeleceu um mandato de seis anos ao invés de quatro e candidatura por três eleições seguidas. Antes, a mesma pessoa só poderia se manter na presidência por dois períodos de quatro anos. Existem diversos casos de prisão de adversários políticos e pessoas que se manifestaram contra o regime vigente.

Após Ali Abdullah Saleh sair do poder depois de 32 anos, o Iêmen não conseguiu concluir o processo de transição política para Abd Rabbo Mansur Hadi. Em 2014, o país começou a ter conflitos entre sunitas e xiitas, de oposição ao presidente. Este confronto se estendeu por alguns anos, levando à batalhas armados, luta por território, mudança temporária da capital, envolvimento de diversas nações e até à morte do antigo chefe de Estado. A guerra no país deixou muitos mortos e feridos, mas, principalmente, pessoas necessitando de ajuda humanitária. No final de 2019, o governo e o separatistas do sul assinaram um acordo para dividir o controle desta região, em busca de frear a violência no país. 

Na Líbia, a situação é ainda pior. A queda e morte de Muamar Khadafi gerou um vácuo de poder, fomentando a disputa entre diversas milícias. Essa desagregação levou à formação de dois governos após as eleições de 2014, que disputam a legitimidade de falar em nome do país. Em 2016, o Governo de União Nacional (GNA) foi formado para liderar a capital, com apoio da Organização das Nações Unidas (ONU). 

A oposição, comandada pelo militar Khalifa Haftar não reconhece a legitimidade deste governo e já indicou, em abril de 2020,  que irá assumir o poder interinamente. As forças militares já controlam a maior faixa territorial da Líbia.

Pelo menos na Tunísia a transição democrática foi bem-sucedida. O país é visto como um caso exemplar ao promover eleições diretas, aprovar a Constituição mais progressista do mundo árabe e ter um governo eleito. Apesar disso, a nação continuou enfrentando muitas dificuldades, como o elevado desemprego entre os jovens, enfraquecimento da economia e corrupção. 

No final de 2019, o país passou pela segunda eleição por sufrágio universal desde a Primavera Árabe, que elegeu Kais Saied para o posto mais alto do governo. Ele não tinha experiência política prévia e foi eleito com a força do jovens, que buscam melhores condições e uma quebra no estilo político tunisiano.

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