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Dossiê – Intolerância: atrocidades em nome de Deus

No Brasil, religiões de matriz africana constituem o principal alvo do ódio, enquanto no mundo grupos fundamentalistas buscam impor sua visão de fé, eliminando quem pensa diferente

No Brasil, religiões de matriz africana constituem o principal alvo do ódio, enquanto no mundo grupos fundamentalistas buscam impor sua visão de fé, eliminando quem pensa diferente

Em setembro de 2017, na Baixada Fluminense (RJ), uma mãe de santo, sob ameaça de morte, foi obrigada a destruir estátuas e objetos de sua religião. A cena chocante, infelizmente, não é uma exceção. Nos últimos anos, terreiros foram depredados e incendiados e praticantes, hostilizados e agredidos. Até mesmo na TV aberta não é incomum presenciar rituais de exorcismo e ouvir o termo “demoníaco” para entidades cultuadas pelo candomblé e pela umbanda. Apesar de a Constituição Federal garantir o direito à liberdade de credo e de manifestação religiosa no Brasil, os casos de intolerância crescem no país e têm nos seguidores das crenças de matriz africana seus principais alvos. Desde 2011, ano em que o serviço Disque 100, da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, passou a receber
denúncias específcas de discriminação religiosa, o número de ocorrências passou de 15 a 759, chegando à marca de uma denúncia a cada 15 horas em 2016.

Racismo e catolicismo

Não é por acaso que as religiões afro- brasileiras são as que mais sofrem intolerância religiosa no Brasil. Esse fenômeno tem ligação direta com outro tipo de preconceito – o racismo – e deve ser entendido no contexto mais amplo do nosso passado colonial e escravocrata. Não se trata apenas da discriminação contra uma religião específica, mas também contra um segmento da sociedade brasileira – os negros. Na raiz do preconceito contra as religiões de origem africana também está o poder e a influência que a Igreja Católica exerceu em toda a sociedade brasileira, desde a época da colonização. Trazido pelos portugueses, o catolicismo foi imposto como religião oficial. As religiões de matrizes africanas, que representavam uma forma de preservação da cultura dos negros africanos e um meio de resistência dos escravos à violência física e simbólica a que eram submetidos, passaram a ser reprimidas, inclusive com força policial. A Constituição de 1824 chegou a permitir, com restrições, o culto de outras religiões, mas foi só após a Proclamação da República (1889) que ocorreu a separação oficial entre Igreja e Estado. Ainda assim, as práticas religiosas africanas continuaram sendo duramente reprimidas pela polícia até a década de 1960. O racismo também está presente no preconceito contra a religião evangélica (denominação para as religiões protestantes), que tem grande penetração nos setores mais pobres e entre a população negra. Os evangélicos aparecem em segundo lugar entre os que mais sofrem denúncias de discriminação.

Legislação e ações de combate

A Constituição Federal de 1988 reforçou que o Estado brasileiro é laico, ou seja, que ele não possui uma religião oficial. Além da Constituição, o Código Penal também trata do assunto. Ele dispõe sobre os crimes contra o sentimento religioso, como impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto, zombar de alguém por motivo de crença religiosa e desrespeitar ato ou objeto religioso. Já a Lei 9.459, de 1997, estabelece que a prática de discriminação ou preconceito contra religiões é crime inafiançável (não prevê o pagamento de fiança para que o acusado possa responder em liberdade) e imprescritível (que não tem um prazo para prescrever, ou seja, o réu poderá responder por ele durante toda a vida). A pena prevista é multa de um a três anos de reclusão. Essas leis, no entanto, não têm sido suficientes para coibir os casos de intolerância religiosa no país e punir os criminosos. Ainda persiste a subnotificação e muitos casos não chegam ao conhecimento do poder público. Além disso, não há um órgão responsável por contabilizar os dados oficialmente. Quando as denúncias chegam às delegacias, muitas vezes o caso não é investigado por não ser considerado importante. Quando é investigado, não é difícil se tornar inconclusivo. A principal dificuldade está em tipificar esse tipo de crime. Como a motivação religiosa é subjetiva, muitos acabam sendo considerados crimes comuns, como roubos e furtos, praticados em ambientes religiosos.

Intolerância institucionalizada

Ainda que a intolerância religiosa seja uma triste realidade no Brasil, outros países apresentam situação ainda mais grave – quando as violações não são reconhecidas pelas autoridades e pelo Estado e as vítimas têm pouca ou nenhuma possibilidade de recorrer à Justiça. Dos 198 países do mundo, 79 apresentam níveis alto ou muito alto de restrições religiosas, segundo relatório divulgado em 2017 pelo Pew Research Center, instituto de pesquisa norte-americano. Nessas nações estão mais de 75% da população mundial. Em muitos casos, as restrições à liberdade religiosa partem do próprio governo. Ocorrem quando a intolerância está institucionalizada, ou seja, o Estado adota leis baseadas em princípios religiosos, com políticas, ações e, muitas vezes, com o emprego da força, contra determinado grupo ou comunidades que professam uma religião diferente da oficial. Esses grupos podem não ter acesso ou ter acesso dificultado a empregos, cargos públicos e serviços, além de sofrerem detenções e terem seus cultos e rituais de conversões proibidos. Exemplos dessa realidade ocorre em Mianmar, país de maioria budista no Sudeste Asiático, onde o Estado não reconhece e persegue a minoria islâmica rohingya. Como resultado, cerca de 700 mil rohingyas fugiram para Bangladesh e outros 6,7 mil morreram assassinados, em 2017, muitos deles vítimas de atos violentos, como decapitações, carbonizações e violência sexual. A Organização das Nações Unidas (ONU) afirmou haver indícios de “limpeza étnica”.

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Na China, as organizações religiosas precisam ser aprovadas pelo Estado e os membros do Partido Comunista devem seguir compulsoriamente o ateísmo. Já a Índia é governada por uma agremiação hinduísta, o Partido Bharatiya Janata (BJP), que tem histórico de intolerância em relação aos cultos muçulmanos no país. Entre as nações islâmicas, as maiores restrições ocorrem em governos que adotam a sharia, um sistema de lei e código de conduta para os seguidores do islamismo, que diz respeito a vários aspectos da vida dos muçulmanos. É o caso do wahabismo na Arábia Saudita a da teocracia xiita no Irã.

Perseguições e ações extremistas

A intolerância religiosa apresenta sua face mais violenta a partir da atuação de organizações e grupos religiosos extremistas. Suas ações incluem violência contra minorias religiosas, expropriação de bens, destruição do patrimônio religioso e cultural, assassinatos e atos terroristas. O principal exemplo é o grupo extremista Estado Islâmico (EI), que tem protagonizado alguns dos mais brutais episódios de intolerância religiosa atualmente.

O EI é considerado o mais poderoso grupo fundamentalista islâmico da história. Os grupos fundamentalistas procuram reconduzir sua religião ao caminho “puro e verdadeiro” e defendem que interpretações literais dos textos sagrados devem ser a única orientação para os diversos aspectos da vida e do cotidiano. Por isso, entre os seus alvos estão os seguidores moderados ou não ortodoxos de sua própria crença.

O crescimento do EI foi impulsionado pela situação de caos no Iraque, arrasado pelos conflitos internos entre os muçulmanos xiitas, sunitas e os curdos após a ocupação norte-americana (2003-2011), e pela guerra civil na Síria. Em 2014, o grupo anunciou a criação de um califado na região e instaurou um governo próprio, com ministérios, cortes islâmicas e aparatos de segurança. Dessa forma, o EI faz uso da violência e do fanatismo religioso para colocar em prática sua estratégia de poder e de desafio às instituições e à ordem ocidental. Um traço marcante desses grupos extremistas são as ações sistemáticas para aniquilar ou afastar aqueles que não concordam com a sua interpretação fundamentalista da religião. Para isso, o grupo se utiliza de ataques suicidas, detenções, escravizações e assassinatos em massa, incluindo formas extremas de execução e torturas das vítimas. Outra característica é a propaganda global, com o uso de redes sociais para exibir os atos de crueldade extrema, intimidar opositores, recrutar seguidores e conquistar redes de apoio internacionais.

A partir do final de 2016, o EI perdeu grande parte dos territórios conquistados e passou a usar como estratégia a realização de atentados em regiões distantes de seu centro de atuação, e onde podem ganhar mais visibilidade, como a Europa. Em 2017, o grupo assumiu a autoria dos três atentados ocorridos no Reino Unido – entre eles o que matou 22 pessoas no show da cantora pop norte- americana Ariana Grande – e o atropelamento no centro de Barcelona, na Espanha, quando morreram 16 pessoas e mais de cem ficaram feridas.

Além do EI, outros grupos fundamentalistas destacam-se no cenário internacional. Aliado do EI, o Boko Haram atua na Nigéria, onde quer implementar a sharia. A Al-Qaeda, do saudita Osama bin Laden, é apontada como responsável pelo atentado de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, um dos mais graves da história, que causou a morte de cerca de 3 mil pessoas. Afiliado à Al-Qaeda, o Al-Shabab, tem forte presença na Somália, Quênia, Etiópia e Djibuti, e uma de suas mais cruéis ações ocorreu em Mogadício, capital da Somália, em outubro de 2017, quando dois caminhões-bomba deixaram mais de 350 vítimas.

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Refugiados e islamofobia

O extremismo religioso foi um fator determinante para a explosão do número de refugiados no mundo, sobretudo a partir de 2015, quando mais de 1 milhão de deslocados chegaram à Europa, dando origem à mais grave crise de refugiados desde a II Guerra Mundial. Embora aspectos econômicos tenham papel relevante, é significativo que mais da metade dos refugiados venha de países que estão no centro de conflitos onde o extremismo religioso é vigoroso, como Síria (onde atua o EI), Afeganistão (Talibã) e Somália (Al-Shabab).

Os muçulmanos que deixam seus lares para trás, fugindo das atrocidades do EI, acabam sendo vítimas de preconceito e intolerância nos países aonde chegam, devido a uma visão deturpada que associa o islamismo ao terrorismo. O islamismo é a segunda maior religião do mundo em número de seguidores, possui diversas linhas e tendências, e a imensa maioria do seu 1,8 bilhão de adeptos condena o fundamentalismo e prega a tolerância. Na Europa, muitas vezes, eles são alvo de discursos de ódio, ações violentas e ataques a locais de culto e mesquitas. São situações nas quais a intolerância religiosa se sobrepõe à xenofobia, que é a aversão aos estrangeiros e o tema do próximo bloco deste dossiê.

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Dossiê – Intolerância: atrocidades em nome de Deus
Dossiê – Intolerância: atrocidades em nome de Deus
No Brasil, religiões de matriz africana constituem o principal alvo do ódio, enquanto no mundo grupos fundamentalistas buscam impor sua visão de fé, eliminando quem pensa diferente

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