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Dossiê – Intolerância: do ódio à barbárie

No Brasil e no mundo, a crise econômica e política, a falta de perspectivas e as distâncias culturais e sociais abrem espaços para discursos extremistas e impulsionam manifestações de intolerância, como racismo, homofobia, xenofobia e preconceito religioso.

AS FACES DA INTOLERÂNCIA

Impulsionados pelas redes sociais, episódios de intolerância se multiplicam no Brasil e no mundo, revelando uma sociedade cada vez mais discriminatória e menos propensa ao diálogo.

“Tem que ir para a cadeira elétrica e exterminar toda a família por causa do gene ruim. Bandido bom é bandido morto.”

“Só conseguiu emprego no JN Por causa das cotas preta imunda”

“Esses nordestinos pardos, bugres, índios acham que  tem moral, cambada de feios.  Não é atoa que não gosto desse tipo de raça”

“ (…) Desejo do fundo do coração que sejam tomados pela desnutrição, que seus bebês nasçam acéfolos, que suas crianças tenham doenças que os médicos cubanos não consigam tratar, que o ebola chegue no Brasil pelo Nordeste e que mate a todos!”

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Os quatro posts acima, com conteúdo infamado de ódio e rancor, são exemplos reais de mensagens extraídas das redes sociais. Eles conservam seu texto e grafas originais, conforme foram publicados e, posteriormente, reproduzidos no Dossiê Intolerâncias Visíveis e Invisíveis no Mundo Digital, elaborado pela agência de comunicação nova/sb. Esse tipo de comentário, propagado com frequência pela internet, representa uma das facetas das manifestações de intolerância que têm crescido no Brasil e no mundo nos últimos anos. O agravante dessa situação é que os casos de intolerância não estão restritos à esfera virtual. Nos Estados Unidos (EUA), no episódio ocorrido em Charlottesville, na Virgínia, em agosto de 2017, mulheres e homens marcharam fazendo saudações nazistas e gritando palavras de ordem contra negros, imigrantes, homossexuais e judeus. Os confrontos deixaram uma pessoa morta e 19 feridos. Em São Paulo, em novembro de 2017, a presença da filósofa norte- americana Judith Butler, referência nos estudos da questão de gênero, mobilizou manifestantes progressistas (favoráveis à intelectual) e conservadores (contrários), que se enfrentaram com xingamentos mútuos. A esses acontecimentos juntam-se muitos outros que apontam para o recrudescimento das manifestações de intolerância, que assume formas diversas, como a discriminação contra negros, homossexuais, minorias étnicas, religiosas e, simplesmente, contra aqueles que pensam de um modo diferente.

O que é intolerância

A palavra “intolerância” vem do latim intolerantia, que significa impaciência, incapacidade de suportar, falta de condescendência e de compreensão. Também compreende o sentido de inflexível, rígido e que não admite opinião ou posição divergente. No sentido oposto, “tolerância” foi definida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) como “o respeito, a aceitação e o apreço da riqueza e da diversidade das culturas de nosso mundo, de nossos modos de expressão e de nossas maneiras de exprimir nossa qualidade de seres humanos”.

A origem do conceito de tolerância, como conhecemos hoje, está na Carta sobre a Tolerância, do filósofo inglês John Locke (1632-1704), publicada em 1689. Um dos principais precursores do liberalismo, Locke defendeu os direitos dos indivíduos e a liberdade religiosa, no contexto de defesa do fim do absolutismo: “ninguém, portanto, não importa o ofício eclesiástico que o dignifca, baseado na religião, pode destituir outro homem que não pertence à sua igreja ou à fé, de sua vida, liberdade ou de qualquer porção de seus bens terrenos”. No século XVIII, os autores iluministas – que afirmam o predomínio da razão sobre a fé, representando a visão de mundo da burguesia – também se dedicaram ao tema. Para eles, as ações intolerantes contrariavam os chamados direitos naturais dos homens, como o direito à vida, à liberdade e à propriedade. O pensamento iluminista influenciou a elaboração da Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948.

Infográfico 27A – Pesquisa sobre a percepção da intolerância no mundo (clique para ver maior) (Guia do Estudante/Divulgação)

Raízes do ódio

Embora tenha ganhado maior visibilidade e repercussão nos últimos tempos por causa da internet, a intolerância sempre acompanhou a história da humanidade. Já na Antiguidade Clássica, os romanos subjugavam os outros povos por meio da imposição de sua cultura e civilização, consideradas superiores. Na Idade Média, os tribunais do Santo Ofício da Igreja Católica, ou Inquisição, capturavam, julgavam e puniam aqueles que defendiam doutrinas ou práticas contrárias às da Igreja. No Brasil, temos a perseguição aos índios, a escravidão dos negros africanos, durante mais de três séculos (XVI a XIX), e a tortura de opositores do regime militar (1964-1985).

Mas foi nos regimes totalitários, no qual o Estado domina todos os aspectos da vida social, que a intolerância encontrou um de seus campos mais férteis para se propagar. Arrasados financeiramente após a I Guerra Mundial (1914-1918), países como Itália e Alemanha passaram a ser comandados por uma liderança opressora, que prometia recuperar a economia.

Outro exemplo foi o que ocorreu na antiga União Soviética, quando Stalin assume o poder e implanta um novo regime, a partir de 1928, conhecido mais tarde como stalinismo. Em nome do socialismo, ele passa a controlar o Estado com poderes ditatoriais, persegue inimigos políticos, restringe liberdades individuais e promove a coletivização das terras. Durante seu governo, milhões de pessoas são presas, executadas ou enviadas a campos de trabalho forçado.

A palavra “fascismo”, hoje utilizada para designar uma pessoa ou governo autoritário e repressor, surgiu em 1919, quando o italiano Benito Mussolini fundou o Partido Fascista, de caráter ultranacionalista. Em 1922, ele foi nomeado primeiro-ministro e assumiu o cargo com plenos poderes, passando a ser chamado de duce (incontestável, em italiano). No anos seguintes, o Partido Fascista passou a ser o único permitido, e adversários políticos foram perseguidos e mortos.

Outros regimes totalitários – principalmente o nazismo na Alemanha, e em menor escala o franquismo na Espanha e o salazarismo em Portugal – acabaram sendo identificados com o fascismo, por compartilharem suas principais características: o cerceamento das liberdades individuais, a centralização do poder na mão de um único partido ou grupo, o nacionalismo, o militarismo e o expansionismo. A fim de garantir a obediência ao governo, foram empregadas a violência física, as prisões arbitrárias, a censura e o exílio. Na Alemanha nazista de Hitler, essas manifestações deram origem ao mais brutal episódio de ódio da História: o Holocausto, massacre que vitimou mais de 6 milhões de judeus durante a II Guerra Mundial (1939-1945).

Infográfico 27A – Manifestação de ódio nas redes sociais (Clique para ver maior) (Guia do Estudante/Divulgação)

O que gera a intolerância

Um interessante entendimento das razões da intolerância é o da antropóloga francesa Françoise Héritier (19332017). Segundo ela, a intolerância está associada à dificuldade de reconhecer a expressão da condição humana no que nos é absolutamente diverso. Ser intolerante seria “restringir a definição de humano aos membros do grupo; os outros, sendo não humanos, podem ser tratados como tais”. Está aí uma das chaves para a compreensão das causas do aumento da intolerância nos últimos tempos. A ela se juntam outras:

  • Isolamento e cultura do medo

As desigualdades sociais e culturais reforçam o isolamento dos indivíduos em grupos que não reconhecem no outro um semelhante, mas sim uma ameaça. Esse sentimento costuma ser materializado contra aqueles excluídos historicamente, como negros e índios. O temor do desconhecido torna-se mais real e ameaçador com a inclusão social e econômica desses grupos, como ocorreu no Brasil a partir de meados dos anos 2000. Nos países desenvolvidos, a chegada de refugiados da África e do Oriente Médio gera um sentimento de deslocamento social e econômico e de perda de laços identitários, que também leva a considerar o estrangeiro como inimigo.

  • Individualismo e imediatismo

A substituição da ideia de coletividade e de solidariedade pelo individualismo, em que falta a experiência do lugar comum e do convívio social, leva o indivíduo a não considerar mais o outro e pensar apenas na satisfação imediata de seus desejos e interesses pessoais. Esse imediatismo também tomou o lugar da reflexão: a falta de interesse em ouvir argumentos contrários às ideias preconcebidas favorece a proliferação de atos e comentários intolerantes.

  • Crise política e econômica

A falta de perspectivas de ascensão social abre espaço para a adesão a discursos extremistas e xenófobos, como os dos partidos de extrema direita. A crise fomenta o ódio e a discriminação a determinados grupos, identificados como os culpados pela crise. Ao mesmo tempo surge um terreno fértil para “salvadores da pátria”, candidatos, grupos e partidos com discurso autoritário – segundo eles, a única maneira de colocar ordem no caos.

Manifestantes favoráveis e contrários ao impeachment de Dilma Roussef discutem em 2015 (clique para ampliar). Foto: Sergio Moraes ()

O papel das redes sociais

Se episódios de intolerância no Brasil e no mundo sempre ocorreram, é certo que a internet e, sobretudo, as mídias sociais impulsionaram a visibilidade, o alcance e a repercussão desses fatos. Com a internet, as discussões e as opiniões ganharam exposição pública e alcançaram um novo patamar. Um post intolerante, por exemplo, pode ser replicado para milhares de pessoas, em diferentes lugares do mundo, de forma ultraveloz e em tempo real. O anonimato ou a sensação de impunidade, propiciada pela mediação tecnológica e pelo distanciamento físico, leva pessoas que normalmente teriam certo pudor em expor pensamentos preconceituosos a manifestar suas opiniões livremente, sem qualquer limite ético. A forte polarização política e a necessidade de se impor uma determinada visão de mundo favoreceram o surgimento de outros fenômenos na rede. Um deles são as chamadas bolhas virtuais. Por meio de seu histórico de navegação, as redes sociais fazem chegar a cada usuário conteúdos e opiniões que mais lhe agradam ou interessam, deixando de mostrar ideias divergentes. Pesquisas mostram que, quanto mais a pessoa está inserida nesse ambiente restrito, mais predisposta está em compartilhar conteúdos que confirmem suas crenças, sem se preocupar com a veracidade das informações – daí a disseminação das fake news (ou notícias falsas), que, por sua vez, retroalimentam o ciclo da intolerância.

A intolerância política

Se vivemos em uma sociedade cada vez mais intolerante, é natural que o discurso de ódio também contamine o debate político. No processo de polarização política, o crescimento da extrema direita tende a levar ao crescimento da extrema esquerda – e vice-versa. E esses dois extremos, que parecem tão distantes, acabam por se aproximar, unidos pelo fio da intolerância. Segundo o cientista político francês Jean-Pierre Faye, a distância entre a extrema esquerda e a extrema direita é menor do que entre elas e o centro do espectro político. Um exemplo dessa percepção ocorreu no Brexit, o referendo de 2016 que decidiu pela saída do Reino Unido da União Europeia. Partidários das extremas esquerda e direita do país votaram em favor do Brexit e mantiveram o discurso unificado na crítica à globalização e no fortalecimento da soberania dos britânicos diante dos europeus.

No Brasil, o processo de impeachment da presidente Dilma Roussef (PT), em agosto de 2016, expôs a forte polarização ideológica que já vinha tomando conta do país. De um lado estavam os que viram o afastamento da presidente como um “golpe”, com o objetivo de deter o que avaliam como as conquistas sociais dos governos petistas, e que hoje criticam o governo de Michel Temer (MDB), pelos retrocessos nas questões sociais e ambientais, entre outras. De outro, os favoráveis ao impeachment, que responsabilizam o Partido dos Trabalhadores (PT) pela corrupção generalizada que levou o país a sua maior crise econômica e política das últimas décadas.

Como resultado, uma sucessão de ataques violentos e manifestações de ira – brigas entre familiares por divergência política, exclusão de amigos nas redes sociais e políticos vaiados em lugares públicos. A polarização ideológica que vem pautando a política nacional agora ameaça contaminar o debate que antecede as eleições de 2018, quando serão eleitos o presidente da República, governadores, senadores e deputados.

Com o crescimento dos extremos, sobra pouco espaço para a negociação e o consenso. A impossibilidade do diálogo coloca em risco o próprio sistema político e a democracia, que pressupõem a convivência de ideias diferentes e a aceitação do outro. No limite, a intolerância representa a perda do que nos caracteriza como humanos e civilizados – a racionalidade, a empatia, a capacidade de se comunicar e resolver conflitos – e o retorno à barbárie.

Dossiê – Intolerância: do ódio à barbárie
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No Brasil e no mundo, a crise econômica e política, a falta de perspectivas e as distâncias culturais e sociais abrem espaços para discursos extremistas e impulsionam manifestações de intolerância, como racismo, homofobia, xenofobia e preconceito religioso.

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