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Drogas: A cracolândia ainda pulsa

Megaoperação do governo do estado de São Paulo e da prefeitura da capital contra usuários e traficantes reacende o debate sobre a internação compulsória no tratamento da dependência química

SEM SOLUÇÃO – Usuários de drogas caminham na região próxima à Cracolândia, no centro de São Paulo, em junho de 2017 ()

No dia 21 de maio de 2017, um domingo, o governo do estado de São Paulo e a prefeitura da capital lançaram uma megaoperação policial com o objetivo de acabar com a Cracolândia – como é conhecida a área na região da Luz, no centro, onde traficantes e usuários vendem e consomem drogas livremente, especialmente crack. A ação contou com 900 policiais, entre civis e militares.

Durante a dispersão, policiais invadiram hotéis e comércios no quadrilátero que compõe a Cracolândia, dispararam balas de borracha, bombas de efeito moral e gás de pimenta para expulsar os usuários. Escavadeiras e tratores foram utilizados para destruir os barracos em que a população de rua se abrigava. Uma pessoa ficou ferida e 53 foram presas.

Nos dias seguintes à megaoperação, a prefeitura demoliu imóveis – em sua maioria albergues, pensões e hotéis que abrigavam os dependentes – e fechou comércios nos entornos da área. Durante a demolição, três pessoas que ainda estavam no interior dos prédios, e em imóveis vizinhos que ruíram com o colapso, ficaram feridas. A Secretaria de Justiça da prefeitura disse que não tinha conhecimento de que ainda havia pessoas no local.

Ao fim da operação, o prefeito de São Paulo, João Dória (PSDB), afirmou que a Cracolândia tinha finalmente acabado. No entanto, como demais ações repressivas levadas a cabo desde 2012 na região, a megaoperação apenas espalhou os dependentes pelo centro da capital, formando 22 novas minicracolândias. A maior delas estava localizada a apenas 300 metros do quadrilátero onde ocorreu a operação, na Praça Princesa Isabel. Menos de um mês depois, os usuários retornaram para a antiga área da Cracolândia.

A Defensoria Pública e a Promotoria de Direitos Humanos e da Infância e Juventude do Ministério Público de São  Paulo condenaram a ação, qualifcada como uma “caçada humana”. Os órgãos questionam judicialmente o uso de aparato policial sem qualquer coordenação com agentes sociais e de saúde pública, a ineficiência e os custos – financeiros e sociais – da megaoperação. A Defensoria conseguiu ainda, por meio de uma liminar, proibir a prefeitura de seguir com as remoções compulsórias e demolições de imóveis.

INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA

A megaoperação é parte do novo programa de tratamento para usuários de crack patrocinado pela nova gestão municipal de João Dória, intitulado Redenção. Ele substitui o programa De Braços Abertos, da antiga administração petista de Fernando Haddad, que garantia aos usuários em torno de 15 reais ao dia por trabalhos de zeladoria, moradia em hotéis da região e direito a três refeições diariamente – todas as ações eram bancadas pela prefeitura. O foco era melhorar a qualidade de vida dos dependentes, dando a eles emprego, moradia e, sobretudo, evitando a internação.

O programa Redenção lançado por Dória tem métodos bastante diferentes. O primeiro é a parceria com o governo do Estado para acionar a Tropa de Choque da Polícia Militar na Cracolândia, a exemplo da megaoperação. O segundo é a concessão de empregos para os dependentes, em parceria com a iniciativa privada. O salário será em torno de 1.800 reais e estará condicionado à participação em programa de tratamento de dependência química. Ainda não está claro se o condicionamento exige a interrupção completa e imediata do uso de crack ou se permitirá a redução progressiva. O terceiro e mais polêmico ponto é a internação compulsória dos usuários de drogas na Cracolândia.

De modo geral, a internação de dependentes químicos para tratamento pode ser feita de três formas distintas:

• Voluntária: quando o próprio dependente a requisita;

• Involuntária: quando a internação é requisitada a pedido de terceiros, em geral dos familiares do dependente, autorizada por um médico psiquiatra e informada ao Ministério Público;

• Compulsória: utilizada em situações extremas e analisada caso a caso, efetuada a pedido do Ministério Público sem a necessidade da permissão da família ou do dependente.

O QUE DIZ A LEI

Essas três formas de internação dos dependentes químicos já são contempladas por um programa de combate ao crack do governo do estado de São Paulo, chamado Recomeço, que funciona desde 2013. Já o programa Redenção, recém-lançado pelo prefeito João Dória, tem como foco somente a internação compulsória. Para concretizar o  projeto, a prefeitura de São Paulo travou uma batalha judicial para tentar liberar a internação a força de 400 dependentes químicos.

Pesquisa da Unifesp aponta que apenas 2% dos internados compulsoriamente têm sucesso no tratamento

O ponto mais polêmico do programa é que a ação requisitava internação compulsória em massa, sem a necessidade de verificação caso a caso. A princípio, a Justiça autorizou a medida, mas a liminar foi cassada a pedido do Ministério Público. Após novos recursos, em 30 de maio, a Justiça confirmou a proibição da internação compulsória fora dos parâmetros da Lei Federal 10.216/01.

A chamada Lei da Reforma Psiquiátrica, de 2001, humanizou o tratamento às pessoas com problemas psiquiátricos, entre elas dependentes químicos, estabelecendo que as internações – sejam elas voluntárias, involuntárias ou compulsórias – só podem ser feitas como último recurso e verificadas caso a caso. A lei também proíbe internação em instituições com características asilares, como hospícios e manicômios. Determina ainda que diagnóstico e terapia passem a depender de autorização do paciente ou de familiares, e estabelece a necessidade de permissão médica para internação, assim como notificação obrigatória ao Ministério Público, num prazo de até 72 horas, em caso de internação compulsória.

ENDEREÇO NOVO – Usuário de crack em local próximo à Cracolândia, dias após a operação policial na região, em maio de 2017 ()

O DEBATE

Entre os principais argumentos a favor das internações compulsórias está a possibilidade de afastar o dependente químico de locais ou pessoas de risco. Ele receberia alimentação e descanso adequados, além de cuidados médicos e acompanhamento intensivo de profissionais de saúde para superar as crises de abstinência, que são os momentos mais delicados do tratamento.

O argumento fundamental de quem é contra a internação compulsória diz respeito à eficiência desse método, tendo em vista a violência que ele exige. De acordo com pesquisa do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), apenas 2% dos internados  compulsoriamente têm sucesso no tratamento, enquanto 98% deles reincide no uso de drogas. Além disso, a internação compulsória esbarra nos direitos fundamentais estabelecidos na Constituição de 1988, particularmente no direito à vida e à liberdade e no direito de ir e vir.

A internação compulsória, contudo, parece contar com amplo respaldo popular. Segundo pesquisa do Datafolha, publicada em junho, 80% dos paulistanos são favoráveis à internação à força de um dependente de crack. A ação repressiva da polícia também obteve a aprovação de 59% dos entrevistados.

POLÍTICAS DE REDUÇÃO DE DANOS

Instituições internacionais, como o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC) e da Organização  Pan-Americana da Saúde/ Organização Mundial da Saúde (Opas/ OMS) são contra a abordagem da atual gestão  municipal em São Paulo. O órgão divulgou uma nota condenando as internações compulsórias, que só devem ser utilizadas em casos de extrema emergência, e recomendando a adoção de métodos que tenham respaldo científico. A nota vai ao encontro do documento da Organização das Nações Unidas (ONU), assinado em 2012, que pede formalmente o fechamento de todos os centros de internações compulsórias e o acolhimento de métodos ambulatoriais, de acompanhamento e redução gradativa da dependência.

O que essas organizações defendem são medidas norteadas pela chamada política de redução de danos, que trata a dependência química, e particularmente o crack, como um problema de saúde pública, e não como uma questão de segurança. A ideia é minimizar os danos sociais e à saúde associados ao uso de substâncias psicoativas através de medidas que diminuam a exclusão social, devolvam a dignidade aos dependentes, ajudem em sua ressocialização  intercedam nos fatores reais que causam sua vulnerabilidade, sejam eles psíquicos, como depressão e síndromes, ou sociais, como a miséria e o desemprego.

A ideia da política de redução de danos é dar autonomia ao dependente e ampliar seus direitos fundamentais, responsabilizando-o pelo avanço progressivo de seu próprio tratamento. A Pesquisa Nacional sobre o Uso de Crack, publicada em 2013 pela Fundação Oswaldo Cruz, mostra que 77% dos dependentes desejam se tratar voluntariamente, e que estratégias baseadas no acesso à saúde, trabalho, moradia e direitos sociais têm se mostrado eficazes na diminuição não só do consumo, mas também dos efeitos sociais das drogas. Entre as medidas aplicadas com sucesso estão o acompanhamento de agentes de saúde, a distribuição de seringas e cachimbos, para evitar a contaminação, e a oferta de oportunidade de emprego e moradia.

A CRACOLÂNDIA TEM SOLUÇÃO?

Há mais de 20 anos o poder público vem adotando diferentes medidas para tentar acabar com o problema da Cracolândia. Nenhuma, contudo, obteve grande sucesso. Em geral, as ações dos governos municipal e estadual conciliam repressão policial, na expectativa de prender traficantes e intimidar usuários, e reforma dos entornos. Mais recentemente, associou-se a isso a oferta de tratamento médico e psiquiátrico aos dependentes químicos.

Porém, pesquisadores reiteram que o centro do problema é social. Daí decorre a dificuldade em solucioná-lo. O crack é apenas um sintoma, dos mais graves, de um mal maior: a exclusão social, a miséria e a falta de perspectiva profissional e pessoal. Pessoas vulneráveis social e financeiramente passam a usar crack por causa de seu preço acessível, e como se trata de uma droga de alto e rápido poder de dependência, ela acaba por agravar dramaticamente a situação.

Essa perspectiva é embasada pela análise do perfil dos frequentadores do “fluxo”, como é chamado o mercado aberto de venda de drogas na região. Segundo levantamento da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social de São Paulo, feito em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), 44% das pessoas que vivem na Cracolândia afirmam que conflitos familiares, violência e abandono foram os principais motivos que os levaram para lá. Isso é ainda mais evidente entre as mulheres, que compõem 34,5% do “fluxo”: 44% delas sofreram algum tipo de violência sexual na infância, 70% sofreu violência física na Cracolândia e 40% faz uso de drogas injetáveis. Por todas essas razões, a Cracolândia permanece como um desafio permanente ao poder público.

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RESUMO – DROGAS

CRACOLÂNDIA: A Cracolândia é uma área na região da Luz, no centro de São Paulo, onde traficantes e usuários vendem e consomem livremente drogas, especialmente crack. Em maio de 2017, o governo do estado de São Paulo e a prefeitura da capital realizaram uma ação no local com efetivo de 900 policiais para prender traficantes, expulsar usuários e demolir imóveis que abrigavam os dependentes químicos. A ação espalhou essas pessoas pela região. Menos de um mês depois eles retornaram para a antiga zona.

PROGRAMA DE REDENÇÃO: A megaoperação na Cracolândia foi anunciada como parte do Programa Redenção, da nova administração municipal de João Doria (PSDB). Ele aproveita algumas ideias do programa da gestão anterior, de Fernando Haddad (PT), como a oferta de emprego aos dependentes. Mas o ponto mais polêmico é o foco na internação compulsória.

INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA: A prefeitura de São Paulo requisitou a internação a força e em massa de usuários de crack que vagavam pela Cracolândia, mas foi impedida pela Justiça. A internação compulsória, regulamentada pela Lei Reforma Psiquiátrica, é feita à revelia da vontade do dependente e da família, e só pode ser usada como medida de exceção, autorizada por um médico e um juiz, e deve ser notificada ao Ministério Público em até 72 horas. A legislação proíbe a internação compulsória de usuários em massa, sem a verificação caso a caso.

POLÍTICA DE REDUÇÃO DE DANOS: Conjunto de medidas que prioriza a abordagem do problema das drogas mais como uma questão de saúde pública do que de segurança. Dentro dessa ótica, o uso de drogas como o crack é visto como um sintoma da exclusão social: pessoas vulneráveis passam a utilizar a droga, que é barata e tem efeito de dependência devastador. As políticas de redução de danos não têm como objetivo acabar com o uso imediato de drogas e aposta na redução gradativa por meio da ampliação do acesso à saúde, trabalho, moradia e direitos sociais.

Drogas: A cracolândia ainda pulsa
Drogas: A cracolândia ainda pulsa
Megaoperação do governo do estado de São Paulo e da prefeitura da capital contra usuários e traficantes reacende o debate sobre a internação compulsória no tratamento da dependência química No dia 21 de maio de 2017, um domingo, o governo do estado de São Paulo e a prefeitura da capital lançaram uma megaoperação policial com o objetivo de acabar com a Cracolândia – como […]

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