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Literatura: Realismo

No Realismo (1881-1922), as idealizações dão lugar à observação objetiva e rigorosa da sociedade

Em contraste com o Romantismo, os escritores realistas concebem a realidade segundo uma visão objetiva e materialista. Defendem a produção de obras que retratem o real de modo documental, sem distorção nem idealização, e muitas vezes com uma linguagem próxima do rigor científico. Em geral, os textos servem como instrumentos de denúncia das desigualdades sociais. A burguesia é criticada por transformar as relações sociais e os próprios indivíduos em simples mercadorias. Ocorrem também ataques ao clero e à Igreja Católica.

O movimento se desenvolve durante a segunda fase da Revolução Industrial (a partir de 1870), e o capitalismo torna-se um dos alvos centrais das obras literárias do período. Os personagens ganham personalidades mais complexas, se comparadas aos personagens românticos. Em um mundo marcado por divisões econômicas, as fronteiras entre o social e o psicológico muitas vezes remetem ao jogo realista de “aparência versus essência”.

Machado de Assis

O maior ficcionista de sua época e um dos grandes escritores da literatura mundial, Machado de Assis (1839-1908) tornou-se famoso pelos contos e romances que publicou. Sua produção realista é marcada pela consciência das contradições de um Brasil dividido entre o desejo de modernização (segundo modelos capitalistas da burguesia liberal europeia) e a manutenção das estruturas conservadoras de poder (o sistema patriarcal e escravocrata que ainda vigorava no país). O olhar crítico e aguçado do Machado ficcionista explorará ao máximo essas oposições, desmascarando-as aos olhos do leitor. Para além das questões brasileiras, Machado de Assis utiliza a matéria histórica nacional para tratar de problemas e sentimentos comuns a todos os seres humanos, em qualquer parte do mundo.

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CAPÍTULO 1: ÓBITO DO AUTOR (TRECHO INICIAL)

Algum tempo hesitei se devia abrir estas me- mórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor[1], para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. (…)

CAPÍTULO 75: COMIGO

Podendo acontecer que algum dos meus leitores tenha pulado o capítulo anterior, observo que é preciso lê-lo para entender o que eu disse comigo, logo depois que Dona Plácida saiu da sala. O que eu disse foi isto: – Assim, pois, o sacristão da Sé, um dia, ajudando à missa, viu entrar a dama, que devia ser sua colaboradora na vida de Dona Plácida. Viu-a  outros dias, durante semanas inteiras, gostou, disse-lhe alguma graça, pisou-lhe o pé, ao acender os altares, nos dias de festa. Ela gostou dele, acercaram-se, amaram-se. Dessa conjunção de luxúrias vadias brotou Dona Plácida[2]. E de crer que Dona Plácida não falasse ainda quando nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores de seus dias: – Aqui estou. Para que me chamastes? E o sacristão e a sacristã naturalmente lhe responderiam: – Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na lama ou no hospital; foi para isso que te chamamos, num momento de simpatia.[2]

CAPÍTULO 160: DAS NEGATIVAS

Entre a morte do Quincas Borba e a minha, mediram os sucessos narrados na primeira parte do livro. O principal deles foi a invenção do emplasto Brás Cubas, que morreu comigo, por causa da moléstia que apanhei[3]. Divino emplasto, tu me darias o primeiro lugar entre os homens, acima da ciência e da riqueza, porque eras a genuína e direta inspiração do Céu. O caso determinou o contrário; e aí vos ficais eternamente hipocondríacos. Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento.[4] Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto[5]. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas cousas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguinte- mente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: – Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa[6] miséria.[7]

[1] NARRADOR-DEFUNTO :Brás Cubas narra, depois de morrer, as lembranças da vida. O lugar do qual o narrador fala é estratégico: morto, sua voz alcança maior distanciamento em relação aos fatos e aos seres humanos.
ANTI-HERÓI ROMANESCO Ao contrário dos heróis românticos idealizados, Brás Cubas é um indivíduo repleto de defeitos, egoísmos e ambiguidades. O romance moderno, gênero representativo do mundo burguês, privilegia protagonistas que não são modelos exemplares de conduta nem apresentam uma trajetória comum, com todos os problemas humanos. Nesse sentido, ele se aproxima do personagem Leonardo, de Memórias de um Sargento de Milícias.

[2] DOMÉSTICA E AGREGADA: Dona Plácida foi abandonada pela filha – também bastarda – e sustentou a mãe, até que esta morresse. Após ouvir a história da agregada, a ironia e o rancor saltam aos olhos de Brás Cubas: Dona Plácida serve de álibi para que ele e Virgília concretizem o amor adúltero. Os amores dos dois são conjunções de luxúrias vazias, origem de Dona Plácida, cujo destino é viver trabalhando, adoecendo e se curando, até que morra decrépita.

[3] FRUSTRAÇÃO: O projeto do emplasto Brás Cubas, medicamento revolucionário por meio do qual o narrador- personagem sonhava alcançar a glória pessoal, acabou por levar indiretamente seu idealizador à morte.

[4] ADVÉRBIO: O título do capítulo, Das negativas, repercute na série de frases declarativas negativas presentes no texto, nas quais o ADVÉRBIO não acentua o caráter de negatividade e frustração do narrador-protagonista.

[5] IRONIA: Brás Cubas se refere ironicamente às sucessivas ações fracassadas de sua vida, resultantes da fraqueza e da leviandade. A ironia é o recurso textual frequentemente usado pelo autor para tratar das questões humanas.

[6] PRONOME POSSESSIVO: O uso do pronome possessivo “nossa” tem o efeito de criar cumplicidade e ironia: a miséria não seria só de Brás Cubas, mas de toda a humanidade.

[7] PESSIMISMO: O desiludido narrador apresenta uma perspectiva pessimista da existência. Ele declara não haver deixado descendentes em vida e, portanto, não tem a quem transmitir o legado da existência humana (ironicamente constituído de misérias).

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CIÚME E ADULTÉRIO

A traição é tema recorrente nos romances realistas. Após trair o marido, a sonhadora Luisa, de O Primo Basílio, é acometida pela culpa, que a leva à morte. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, o narrador é o amante do triângulo amoroso, completado por Virgília e seu marido. Ao contrário de Luisa, Virgília é prática, tipicamente realista, e mantém um caso sem dramas com Brás Cubas. Nas duas obras, o adultério é incontestável. Já em Dom Casmurro, como a narração é em primeira pessoa, não há como dizer que Capitu traiu Bentinho. O suposto adultério pode ter sido invenção do ciumento narrador. Dúvida parecida paira no livro modernista São Bernardo, de Graciliano Ramos. A infidelidade de Madalena seria uma fantasia do narrador, seu marido, Paulo Honório?

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“Sentia então como um alívio doloroso, em ver o fim do seu longo martírio! Havia meses que ele durava. E pensando em tudo o que tinha feito e que tinha sofrido, as infâmias em que chafurdara e as humilhações a que descera, vinha-lhe um tédio de si mesma, um nojo imenso da vida. Parecia-lhe que a tinham sujado e espezinhado; que nela nem havia orgulho intacto, nem sentimento limpo; que tudo em si, no seu corpo e na sua alma, estava enxovalhado, como um trapo que foi pisado por uma multidão, sobre a lama[1]. Não valia a pena lutar por uma vida tão vil. O convento seria já uma purificação, a morte uma purificação maior… – E onde estava ele, o homem que a desgraçara? Em Paris, retorcendo a guia dos bigodes, chalaceando, governando os seus cavalos, dormindo com outras! E ela morreria ali, estupidamente! E quando lhe escrevera a pedir-lhe que a salvasse, nem uma palavra de resposta; nem a julgara digna do meio tostão da estampilha! (…) Oh, que estúpida que é a vida! Ainda bem que a deixava!”

Editora Ática, São Paulo, 1998

[1] HIPÉRBOLE E DISCURSO INDIRETO LIVRE: Por meio do discurso indireto livre, o narrador recupera os pensamentos de Luisa: a personagem, em seu sofrimento, exagera a percepção da realidade e carrega suas reflexões de contornos trágicos. A imagem da alma humilhada e pisada é construída de modo hiperbólico. A hipérbole é a figura dos exageros e da intensificação das ideias. Ela funciona também como um advérbio, um recurso de intensificação.

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Na minissérie Capitu, exibida pela TV Globo em 2009 e dirigida por Luiz Fernando Carvalho, a adaptação combina elementos da ópera, do teatro e da cultura pop, o que resulta em figurinos, cenários e trilha sonora originais. Disponível em DVD e, alguns capítulos, pela internet. Veja mais em capitu.globo.com.

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CAPÍTULO 2: DO LIVRO

Vivo[1] só, com um criado. A casa em que moro[1] é própria; fi-la construir de propósito, levado de um desejo tão particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia, há bastantes anos, lembrou[1]– me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei[1] na antiga Rua de Matacavalos, dando- lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra, que desapareceu[1][2]. Construtor e pintor entenderam bem as indicações que lhes fiz: é o mesmo prédio assobradado, três janelas de frente, varanda ao fundo, as mesmas alcovas e salas. Na principal destas, a pintura do teto e das paredes é mais ou menos igual, umas grinaldas de fores miúdas e grandes pássaros que as tomam nos bicos, de espaço a espaço. Nos quatro cantos do teto as figuras das estações, e ao centro das paredes os medalhões de César, Augusto, Nero e Massinissa, com os nomes por baixo…[3] Não alcanço a razão de tais personagens. Quando fomos para a casa de Matacavalos, já ela estava assim decorada; vinha do decênio anterior. Naturalmente era gosto do tempo meter sabor clássico e figuras antigas em pinturas americanas. O mais é também análogo e parecido. Tenho chacarinha, fores, legume, uma casuarina, um poço e lavadouro. (…) Enfim, agora, como outrora, há aqui o mesmo contraste da vida interior, que[4] é pacata, com a exterior, que[4] é ruidosa.[5]

O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, se- nhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui[6]. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está é, mal comparando, semelhante à pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz nas autópsias; o interno não aguenta tinta. Uma certidão que me desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim. Os amigos que me restam são de data recente;  todos os antigos foram estudar a geologia dos campos-santos[7]. Quanto às amigas, algumas datam de quinze anos, outras de menos, e quase todas creem na mocidade. Duas ou três fariam crer nela aos outros, mas a língua que falam obriga muita vez a consultar os dicionários, e tal frequência é cansativa.

Entretanto, vida diferente não quer dizer vida pior; é outra coisa. A certos respeitos, aquela vida antiga aparece-me despida de muitos encantos que lhe achei; mas é também exato que perdeu muito espinho que a fez molesta (…) Quis variar, e lembrou-me escrever um livro[8].

CAPÍTULO 32: OLHOS DE RESSACA

Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira; eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas. A demora da contemplação creio que lhe deu outra ideia do meu intento; imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de perto, com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que…

Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca[9]. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me[10].

L&PM editores, 1997

[1] PRESENTE E PRETÉRITO: O autor usa no início verbos no presente, que destacam as condições de vida do narrador. Em seguida, os fatos são narrados no pretérito, a fim de evocar as lembranças do narrador.

[2] MARCADORES ESPACIAIS E TEMPORAIS: O ponto de partida da narração é a compra da residência atual, reformada para tornar-se igual à casa onde ele vivera na infância. A passagem do tempo é representada pela alteração do espaço físico, recurso estilístico importante na composição da narrativa.

[3] DESCRIÇÃO: O método descritivo é usado com frequência pelos realistas: para representar a realidade, detalham os traços constitutivos de espaços e pessoas. Mas não se trata mais de descrições idealizadas, como no período romântico: a realidade é retratada de modo objetivo e fiel.

[4] COMPARAÇÕES: O narrador faz duas comparações: entre os tempos passado e presente (mostrando que, para lidar com a passagem dos anos, quis reconstruir a casa em que vivia na infância) e entre as vidas no interior da residência e no mundo exterior (uma, pacata; outra, ruidosa).

[5] ORAÇÃO SUBORDINADA ADJETIVA: O pronome relativo “que” é empregado para construir orações subordinadas adjetivas explicativas (responsáveis por acrescentar uma informação complementar sobre os referentes – no caso, a vida interior e a vida exterior à casa de Bentinho). Mais acima, a construção “em que” foi empregada para construir orações subordinadas adjetivas restritivas (responsáveis por especificar que, entre todas as casas existentes, o narrador se refere à própria residência).

[6] PERSONAGENS COMPLEXOS: O desejo do narrador é articular o início e o fim da existência. A construção da casa busca conectar épocas diferentes. No entanto, a aparente recuperação da infância por meio da casa não foi bem-sucedida: a essência da juventude não pode ser recuperada. Na estética realista, os personagens são mais complexos do que os do período romântico.

[7] EUFEMISMO: O narrador usa um eufemismo para fazer referência à morte dos amigos (“foram estudar a geologia dos campos- santos”).

[8] SENTIDO DA EXISTÊNCIA: Para tentar atribuir sentido à existência, o narrador opta por escrever uma obra autobiográfica e retomar passagens da própria vida

[9] METÁFORA: A bela e estonteante metáfora dos “olhos de ressaca”, presente no título deste capítulo, ressalta o poder sedutor de Capitu, que traga Bentinho como areia movediça.

[10] METONÍMIA: Os olhos dão também a ideia metonímica (a parte substituindo o todo) do que Capitu vai representar para o narrador: o poder avassalador que ela terá sobre ele.

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capitu

De um lado vem você
com seu jeitinho[1]
Hábil, hábil, hábil
E pronto!
Me conquista com seu dom
De outro esse seu site
petulante[1]
WWW ponto poderosa
ponto com

É esse o seu modo de ser
ambíguo sábio, sábio[2]
E todo encanto
Canto, canto
Raposa e sereia
Da terra e do mar
Na tela e no ar

Você é virtualmente
amada amante [3]
Você real é ainda mais
tocante
Não há quem
não se encante
Um método de agir que é
tão astuto
Com jeitinho alcança
tudo, tudo, tudo
É só se entregar, é não
resistir, é capitular
Capitu
A ressaca dos mares
A sereia do sul[4]
Captando os olhares
Nosso totem tabu
A mulher em milhares
Capitu
(…)

A canção Capitu retoma os principais traços da protagonista de Dom Casmurro. O narrador Bento Santiago rompe o casamento após suspeitar de uma possível traição da mulher com o amigo Escobar. Como a narrativa é construída em primeira pessoa, o leitor não tem certeza sobre o adultério. Com base na intriga romanesca, Luiz Tatit compôs esta canção sobre Capitu.

[1] PARALELISMO: A repetição intencional de uma estrutura gramatical mostra os diferentes aspectos da personalidade de Capitu e revela sua complexidade. O autor a traz para a contemporaneidade e sugere um site que  se liga ao seu poder, indicando quanto ela permanece atual.

[2] DÚVIDA: O principal elemento que enriquece a leitura de Dom Casmurro é a ambiguidade de Capitu. Não se sabe se ela é culpada ou inocente

[3] AMBIGUIDADE: A referência à informática segue por meio da ambiguidade. Capitu é caracterizada como amante virtual (em oposição à realidade concreta), sugestão ao adultério não comprovado.

[4] COMPLEXIDADE FEMININA: Há referência aos “olhos de ressaca” de Capitu, capazes de tragar os corações vulneráveis. Seus traços representam a complexidade feminina e a tornam universal.

Eça de Queirós

Um dos marcos do movimento realista em Portugal é a publicação, em 1874, do primeiro conto ligado à nova estética escrito em língua portuguesa: Singularidades de uma Rapariga Loura, de Eça de Queirós (1845-1900). O autor, um dos principais nomes da literatura de Portugal, fixa importantes referências estéticas para o período.

O romance A Cidade e as Serras, uma de suas principais obras, trata da onda de cientificismo e modernização que influenciou a cultura europeia na segunda metade do século XIX. No caso específico de Portugal, havia uma expectativa de equiparação do país em relação ao desenvolvimento tecnológico observado nas demais nações do continente europeu.

Eça de Queirós, por meio dos projetos inovadores do protagonista, Jacinto (defensor da civilização), e das intervenções do narrador-personagem, José Fernandes (oriundo do campo), explicita o contraste entre o progresso urbano e a tradição rural.

As Cidades e as Serras apresenta também traços do romance de tese, aquele que, por meio da história narrada, defende uma ideia. Neste caso, a narrativa concretiza as oposições entre campo e cidade, simplicidade e tecnologia

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Eu murmurei, das profundidades do meu assombrado ser:
– Eis a[1] civilização!
Jacinto empurrou uma porta, penetramos numa nave cheia de majestade e sombra, onde reconheci a biblioteca por tropeçar numa pilha monstruosa de livros novos. O meu amigo roçou de leve o dedo na parede; e uma coroa de lumes elétricos, refulgindo entre os lavores do teto, alumiou as estantes monumentais, todas de ébano. (…)
Ele erguera uma tapeçaria – entramos no seu gabinete de trabalho, que me inquietou. […] Sedas verdes envolviam as luzes elétricas, dispersas em lâmpadas tão baixas que lembravam estrelas caídas por cima das mesas, acabando de arrefecer e morrer (…)[2] E entre aqueles verdes reluzia, por sobre peanhas e pedestais, toda uma mecânica suntuosa, aparelhos, lâminas, rodas, tubos, engrenagens, hastes, friezas, rigidez de metais…[3]
(…)
– E acumulaste civilização, Jacinto! Santo Deus…
Está tremendo, o 202![4]
Ele espalhou em torno um olhar onde já não faiscava a antiga vivacidade:
– Sim, há confortos… Mas falta muito! A humanidade ainda está mal apetrechada, Zé Fernandes… E a vida conserva resistências.
Subitamente, a um canto, repicou a campainha do telefone. (…) Jacinto acudiu, com a face no telefone: 
– Vê aí o telégrafo!… Ao pé do divã. Uma tira de papel que deve estar a correr[5].
– E, com efeito, duma redoma de vidro posta numa coluna, e contendo um aparelho esperto e diligente, escorria para o tapete como uma tênia, (…)

Uma noite no meu quarto, descalçando as botas, consultei o Grilo:
– Jacinto anda tão murcho, tão corcunda…
Que será, Grilo? O venerando preto declarou com uma certeza imensa:
– Sua Excelência sofre de fartura

Era fartura! O meu Príncipe sentia abafada- mente a fartura de Paris[6]; e na Cidade, na simbólica Cidade, fora de cuja vida culta e forte (como ele outrora gritava, iluminado) o homem do século XIX nunca poderia saborear plenamente a “delícia de viver”, ele não encontrava agora forma de vida, espiritual ou social, que o interessasse (…) Pobre Jacinto! Um jornal velho (…) não enfastiaria mais o solitário, que só possuísse na sua solidão esse alimento intelectual, do que o parisianismo enfastiava o meu doce camarada! Se eu nesse verão capciosamente o arrastava a um café-concerto (…), o meu bom Jacinto, cola- do pesadamente à cadeira, com um maravilhoso ramo de orquídeas na casaca, as finas mãos aba- tidas sobre o castão da bengala, conservava toda a noite uma gravidade tão estafada, que eu, com- padecido, me erguia, o libertava, gozando a[7] sua pressa em abalar, a[7] sua fuga de ave solta… (…) Não se ocupara mais das suas sociedades e companhias, nem dos telefones de Constantinopla, nem das religiões esotéricas, nem do bazar espiritualista, cujas cartas fechadas se amontoavam sobre a mesa de ébano, de onde o Grilo as varria tristemente como o lixo de uma vida finda. Também lentamente se despegava de todas as suas convivências. As páginas da agenda cor-de-rosa murcha andavam desafogadas e brancas. E se ainda cediam a um passeio de mail-coach, ou a um convite para algum castelo amigos dos arre- dores de Paris, era tão arrastadamente, com um esforço saturado (…)[8]
Jazer, jazer em casa, na segurança das portas bem cerradas e bem fendidas contra toda a intrusão do mundo, seria uma doçura para o meu Príncipe se o seu próprio 202, com todo aquele tremendo recheio de Civilização, não lhe desse uma sensação dolorosa de abafamento, de atulhamento! (…)[9]

Neste último livro de Eça de Queirós (1901), publicado um ano após sua morte, a temática do campo versus cidade é o cerne da história. O autor mostra a futilidade reinante na cidade e satiriza as ideias positivistas que predominavam na época.

No final do  trecho acima do mesmo livro, Zé Fernandes, preocupado, consulta seu fiel criado Grilo sobre o desânimo de Jacinto. Ele diz que o patrão (Jacinto) sofria de “fartura”. Esse fastio vai desencadear no personagem mudança de rumo e de ares. Trocará o tédio da cidade por uma vida nova no campo.

[1] ARTIGO: O artigo “a” define civilização: trata-se desta civilização, e não de outra.

[2] DESCRIÇÃO: O procedimento descritivo, muito empregado pelos realistas, é usado para evidenciar a ânsia de modernidade de Jacinto (representativa de boa parte da elite portuguesa da época). Por meio da apresentação da casa do protagonista, Eça realiza uma sátira dos costumes burgueses.

[3] SUBSTANTIVOS: Após enumerar uma série de componentes dos aparelhos (designados por substantivos concretos), o narrador explicita, por meio de substantivos abstratos (“frieza” e “rigidez”), o caráter impessoal e artificial das máquinas. Em todo o romance, ocorre a decepção de Jacinto com o “mundo moderno”.

[4] DISCURSO DIRETO: As exclamações de Zé Fernandes, reproduzidas por meio de discurso direto, visam a quebrar o longo trecho descritivo e inserem no texto aspectos ligados ao dinamismo e à ação. O leitor tem a impressão de ver os personagens conversando no gabinete de Jacinto.

[5] ANSIEDADE E CONSUMISMO: Jacinto encarna a ansiedade do indivíduo moderno, sedento de velocidade e simultaneidade. Ao mesmo tempo que fala ao telefone, pede a Jacinto que verifique a chegada de uma nova mensagem no telégrafo. Na prosperidade material e nas posses de Jacinto, nota-se o apego ao consumismo, estimulado pelo capitalismo burguês e industrial.

[6] NARRADOR EXCÊNTRICO: Zé Fernandes não é somente um típico narrador. É um observador da trajetória do protagonista. O tédio proporcionado pela “fartura” aborrecera o “Príncipe”– nome carinhoso e irônico usado para designar o mimado Jacinto.

[7] ARTIGO ENFÁTICO: O artigo definido  (o, a) empregado em conjunto com o pronome possessivo assume valor semântico de ênfase, uma vez que a particularidade expressa pelo possessivo dispensaria o artigo. Seu emprego, porém, torna mais clara a ideia de que o protagonista é descrito aos olhos do narrador.

[8] PERSONAGEM ENFASTIADA: Eça descreve Jacinto como um típico burguês enfastiado com a vida social. O autor busca caracterizar no personagem um arquétipo da elite portuguesa, a qual criticava.

[9] PONTUAÇÃO: O ponto de exclamação enfatiza o retrato de tédio que o narrador busca fazer de Jacinto. Dessa forma, ele ironiza o que o protagonista outrora chamava de civilização.

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Os contrastes entre o progresso urbano e o sossego do campo, apontados em A Cidade e as Serras, mantêm-se nos dias de hoje. No romance, a mudança de Jacinto, da agitada Paris para o agrário Portugal, mostra, primeiramente, a superioridade da vida rural e, no fim da obra, uma síntese dos dois ambientes. O anúncio acima é um exemplo de como a sociedade moderna também tem buscado unir o melhor dos dois: a praticidade das cidades e a tranquilidade do campo. Essa tendência é expressa na multiplicação de condomínios residenciais, cuja publicidade emprega termos bucólicos, como “natureza” e “área verde”. Delineia-se a promessa de viver num espaço ao mesmo tempo verde e urbano, atraente para quem acredita ser possível ter a calmaria de um refúgio rural sem perder o conforto da cidade.

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O ARTIGO: É a palavra que costuma preceder o substantivo, indicando-lhe o gênero (masculino ou feminino) e o número (singular ou plural). Pode ser definido (o, a, os, as) ou indefinido (um, uma, uns, umas). Do ponto de vista da semântica, os artigos podem expressar diversos significados, como:

•  Adjetivo: Fernanda Montenegro é a atriz! (= excelente)
•  Ideia de aproximação: Sharon Stone tem uns 50 anos.  (= aproximadamente)
•  Ênfase: Estou com uma fome! (= muito intensa)
•  Generalização: O homem é um animal racional…  (= todos os homens)
•  Indicação de posse: Rober to Carlos rapou a cabeça novamente. (= dele)

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