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Questões Sociais – Cultura: a arte na mira da censura

Ataques a manifestações artísticas ganham fôlego com a onda conservadora que avança no Brasil e no mundo e colocam em foco questões como o papel da arte na sociedade atual

Ataques a manifestações artísticas ganham fôlego com a onda conservadora que avança no Brasil e no mundo e colocam em foco questões como o papel da arte na sociedade atual

No segundo semestre de 2017, diversas mostras e espetáculos no Brasil – como a exposição Queermuseu, em Porto Alegre (RS), e a performance La Bête, no Museu de Arte Moderna (MAM), em São Paulo – transformaram-se em manchetes de jornal e alvos de protestos populares. As manifestações partiram de pessoas comuns, foram capitalizadas por grupos organizados da sociedade civil e geraram uma grande polêmica. O principal mote: as mostras apresentavam obras que, segundo os queixosos, afrontavam a moral cristã e incentivavam a pedoflia. Os defensores das obras e seus autores reagiram – para eles, os protestos não passavam de censura, fruto da intolerância de grupos conservadores e fundamentalistas religiosos, comportamento incompatível com as artes numa sociedade democrática. A polêmica se desenrolou em um debate maior, em torno de questões flosófcas, como o que é arte e qual a sua função na sociedade contemporânea.

Queermuseu

A palavra da língua inglesa queer significa excêntrico, que foge às regras, e é comumente usada com referência a pessoas que não seguem as normas tradicionais de sexualidade, como os homossexuais, os bissexuais e os transexuais. Era exatamente esse o enfoque da exibição Queermuseu: Cartografas da Diferença na Arte Brasileira – incentivar a tolerância e combater o preconceito contra a diversidade na orientação sexual e a liberdade individual de identidade de gênero. A exibição na capital gaúcha trazia mais de 270 obras de 85 artistas – pinturas, gravuras, fotografas, vídeos, colagens, esculturas e cerâmicas de nomes consagrados da arte brasileira, como Alfredo Volpi, Adriana Varejão, Candido Portinari e Lygia Clark.

As reclamações concentraram-se em algumas obras. Uma delas, de Bia Leite, traz a imagem de um menino e uma menina com as frases “Criança viada travesti da lambada” e “Criança viada deusa das águas”. Em outra, “Cruzando Jesus Cristo Deusa Shiva”, o artista Fernando Baril representa a figura de Jesus Cristo com os múltiplos braços característicos do deus indiano.

As manifestações contrárias começaram nas redes sociais, capitaneadas pelo Movimento Brasil Livre (MBL), grupo que surgiu como um movimento anticorrupção e estendeu seus braços à defesa de políticos e convicções de direita. Hoje as ações do MBL focam, fundamentalmente, no combate a partidos e partidários da esquerda. Rapidamente os protestos saíram do mundo virtual para o real, com passeatas, ameaças aos funcionários da exposição e pichações na fachada de agências do Banco Santander, que promovia a exposição. Aderiram à indignação políticos ultraconservadores, como o deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) e representantes dos evangélicos, como Marcelo Crivella (PRB), prefeito do Rio de Janeiro.

Preocupada tanto com a imagem da empresa quanto com a integridade das obras e da equipe envolvida na exposição, a direção do Santander Cultural fechou a mostra um mês antes do programado e, em nota divulgada pela imprensa, pediu desculpas aos que “enxergaram desrespeito a símbolos e crenças”. Mas a interrupção da exibição só fez acirrar a polêmica, com intelectuais condenando a instituição por endossar como censura a pressão imposta por um grupo social.

O caso foi parar no Ministério Público Federal (MPF). Um promotor visitou a exposição e concluiu que não havia nada que fizesse apologia ao crime de pedofilia, tampouco que ofendesse crenças religiosas. O Santander se recusou a reabrir a exposição e, em janeiro de 2018, assinou com o MPF um termo de compromisso para realizar duas outras mostras sobre o tema diversidade.

A performance no MAM

Performance é uma palavra da língua inglesa que designa um tipo de espetáculo em que artistas se apresentam ao vivo para compor uma obra que inclui outros elementos, como pinturas e esculturas. Na performance no MAM, o coreógrafo Wagner Schwartz permanecia deitado no chão, nu, manipulando uma réplica em plástico de uma das esculturas da série “Bichos”, de Lygia Clark. A performance permitia que a plateia interagisse com o artista.

A polêmica começou com um vídeo divulgado nas redes sociais, que mostrava uma menina, acompanhada da mãe, tocando as mãos e os pés do artista. Novamente o MBL entrou em cena, condenando a obra como apologia à pedoflia e agressão aos direitos infantis. Uma manifestação diante do MAM terminou com a agressão a funcionários do museu. E no Congresso Nacional deputados da ala ultraconservadora propuseram surrar, e até torturar, o artista e quem o defendesse. A performance ocorreu uma única vez, na abertura da mostra, e o MAM manteve o calendário do evento.

Proibição ou classificação

Proibição ou classificação Nos dois episódios, um dos agravantes apontados pelos que atacavam as exibições foi a entrada liberada para crianças e adolescentes – o que, segundo eles, fere princípios estabelecidos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O ECA é um conjunto de normas e princípios que orientam a criação e a aplicação de leis para proteção de crianças e adolescentes. Uma das disposições do estatuto proíbe a exposição do menor de idade a situações constrangedoras ou que possam comprometer seu desenvolvimento psicológico; outra regra obriga organizadores a avisar sobre o conteúdo dos espetáculos, indicando a idade mínima recomendada para o público (a chamada classificação etária indicativa). A classificação etária não proíbe a entrada de crianças em nenhum evento cultural, mas orienta os pais sobre o conteúdo exibido. Ainda que os pais considerem o conteúdo adequado a um menor de idade, o ECA estabelece que crianças de até 10 anos de idade só podem permanecer no recinto do espetáculo com a presença e supervisão de um responsável.

Nenhuma das exposições – nem do Santander, nem do MAM – trazia a classificação etária indicativa. Mas, no caso da performance La Bête, o MAM se defendeu dos ataques informando que havia na entrada da sala o aviso sobre a nudez. Além disso, a criança estava com a mãe. Com relação ao Queermuseu, o MPF concluiu que as informações dos catálogos de divulgação da mostra eram suficientes para que o público tivesse conhecimento da natureza das obras. O MPF considerou, também, que não existe legislação que exija classifcação etária para mostras iconográfcas (de pinturas e esculturas, por exemplo), e que a nudez de um adulto diante de menores de idade não constitui crime.

O que é arte

Os protestos contra as obras do MAM e do Santander Cultural levantaram o debate sobre o que é arte e o que não é. A questão não é fácil, pois os princípios que a defniem estão em mudança, acompanhando a evolução da sociedade.

A arte já foi considerada a representação do belo – outra ideia que está em constante transformação e que varia conforme o contexto histórico e social. A beleza ideal, harmônica dos gregos antigos, valorizada nos corpos humanos “sarados” das estátuas, por exemplo, não é a mesma beleza representada nas pinturas do Modernismo, do final do século XIX a meados do século XX. O cubismo, por exemplo, liberou as pinturas e esculturas dos padrões de beleza, no sentido clássico da palavra, em favor de uma representação de mundo em que as figuras tornam-se mais abstratas, deformadas. E a arte assumiu de maneira mais intensa a função de transmitir ideias que provocam o questionamento sobre a realidade e uma visão crítica da sociedade.

É nessa proposta da arte como questionamento dos valores sociais que imagens podem ser mais facilmente mal interpretadas. O que o artista pinta em uma tela não significa, necessariamente, uma posição a favor do objeto ou da cena representada. No mural Guernica, por exemplo, o espanhol Pablo Picasso retrata com imagens simbólicas o bombardeio da cidade basca, em 1937, durante a Guerra Civil Espanhola. No entanto, a obra não é uma celebração à guerra, mas um alerta sobre o absurdo do sofrimento humano causado por ela.

O mesmo pode ser considerado em relação às exibições recentes em Porto Alegre e São Paulo. Os defensores das obras afirmam que elas abordam os temas de sexualidade e religião como forma de chamar a atenção para algumas questões importantes da atualidade, como a liberdade na orientação sexual e a presença da religião na vida do cidadão. Ainda assim, imagens podem ser consideradas ofensivas e chocar o público.

Clique para ampliar. Foto: Atraves ()

Provocação e censura

Uma obra de arte exige alguma astúcia e algum conhecimento para decifrar a mensagem do artista e diferenciar o que é literal do que é metáfora, o que é concordância do que é crítica ou ironia. Seja como for, escandalizar com uma obra de arte é uma forma de chamar a atenção do público para questões importantes da sociedade. Já a censura limita a criatividade do artista e retira a oportunidade de a sociedade refletir sobre seus valores.

A capacidade de provocação e a censura acompanham a arte desde sempre. Em meados do século XVI, o afresco Juízo Final, pintado pelo italiano Michelangelo no teto da Capela Sistina, no Vaticano, foi censurada por parte do clero por representar figuras nuas. Três séculos depois, a mulher nua representada na pintura Olympia, do francês Édouard Manet, não sofreu censura, mas causou escândalo – o ar de realismo e sensualidade da obra sugeria se tratar de uma prostituta. A censura pode se estender também ao criador da obra. Em 2011, o chinês Ai Weiwei foi banido de exposições, ficou três meses preso e proibido por anos de deixar seu país pelas duras críticas que faz ao regime político da China.

No Brasil, o Estado se utilizou da censura em algumas ocasiões, como forma de impedir a divulgação de ideias contrárias ao seu interesse. Foi o que aconteceu durante o Estado Novo (1937-1945) de Getúlio Vargas. Mas o auge da repressão às artes ocorreu na ditadura militar, entre 1964 e 1985, quando o Estado exigia alterações em roteiros, proibia a exibição de peças teatrais e filmes e vetava canções populares cujas letras pudessem representar qualquer crítica ao regime. Compositores, como Gilberto Gil e Caetano Veloso, foram presos, proibidos de executar suas músicas e forçados a partir para o exílio. Outros, como Chico Buarque de Hollanda e Tom Jobim, adotaram metáforas para denunciar o autoritarismo, pelas letras das canções. Hoje, há quem diga que essa função de censura foi transferida a grupos conservadores da sociedade civil apegados a aspectos morais e aos chamados bons costumes.

Espelho da sociedade

A arte também sofre as influências das mazelas de seu tempo. A polarização política que divide a sociedade brasileira desde o processo de impeachment da presidente Dilma Roussef, em 2015 e 2016, leva ao acirramento dos ânimos de pessoas que se consideram de direita e de esquerda. Essa divisão contamina com questões partidárias e ideológicas outras questões, como a interpretação das obras de arte de Porto Alegre e São Paulo. Neste caso, os protestos foram mobilizados por grupos de direita, e a defesa, por intelectuais e populares alinhados com a esquerda.

Outro exemplo, desta vez protagonizado por manifestantes de esquerda, foi o que aconteceu em outubro de 2017, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em Recife. Durante evento organizado por alunos para a exibição do documentário O Jardim das Aflições, que retrata as ideias do filósofo conservador Olavo de Carvalho, estudantes identificados com a esquerda e contrários ao pensamento do filósofo tentaram impedir a exibição do filme e gritaram palavras de ordem como “recua, direita, recua” e “fascistas”. O episódio terminou em pancadaria, com feridos de ambos os lados.

A censura a obras de arte e a artistas não ocorre só no Brasil, apesar de a Constituição de 1988 garantir a livre expressão artística e intelectual. A organização internacional Freemuse (literalmente, musa livre) defende a liberdade artística e acompanha as violações a esse direito no mundo todo. Segundo a instituição, em 2016 foram registrados mais de mil ataques, em quase 80 países. As violações vêm na forma de ações na Justiça, proibições do governo, ameaças, atentados e, em casos extremos, assassinatos de artistas. O número é o dobro do registrado no ano anterior, e grande parte da censura se dá por parte dos governos. O relatório aponta como uma das causas desse aumento a onda global de políticas populistas e nacionalistas, que reforçam valores culturais conservadores.

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RESUMO

CULTURA

POLÊMICA Mostras de arte realizadas em 2017 – como a exposição Queermuseu, em Porto Alegre, e uma performance no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) – levaram grupos da sociedade civil a protestar por julgarem que elas feriam a moral cristã e incentivavam a pedofilia. Defensores das obras e de seus autores consideraram as críticas uma forma de censura, fruto da intolerância de grupos conservadores e fundamentalistas religiosos.

CRÍTICAS Um dos questionamentos centrais foi a presença de crianças nas exposições, o que contrariaria as normas do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O estatuto proíbe a exposição de crianças e adolescentes a situações constrangedoras ou que possam comprometer seu desenvolvimento psicológico. E obriga organizadores a alertar sobre o conteúdo dos espetáculos, com a classificação etária indicativa (indicação da idade mínima recomendada).

O QUE É ARTE A repercussão dos protestos jogou luz no debate sobre o que é ou não arte. O conceito de arte está em constante mudança, acompanhando a evolução da sociedade. A arte já foi considerada a representação do belo – noção que também se altera ao longo do tempo. Outra questão é que nem sempre o que um artista pinta significa que ele seja a favor do objeto ou da cena representada. Muitas vezes, é crítica ou ironia.

PROVOCAÇÃO OU CENSURA A arte costuma ser provocadora, na medida em que pode questionar valores sociais. Por isso, muitas obras geram polêmica e escândalos. Censura é uma maneira de limitar a criatividade do artista e retirar da sociedade a oportunidade de refletir sobre determinados temas.

INFLUÊNCIAS A polarização política que divide a sociedade brasileira, não raro, extrapola para outros temas. Questões partidárias e ideológicas também estavam em jogo na polêmica das obras de arte – os protestos foram mobilizados por grupos de direita, e a defesa, por intelectuais e populares alinhados com a esquerda.

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Questões Sociais – Cultura: a arte na mira da censura
Questões Sociais – Cultura: a arte na mira da censura
Ataques a manifestações artísticas ganham fôlego com a onda conservadora que avança no Brasil e no mundo e colocam em foco questões como o papel da arte na sociedade atual

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