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Literatura: Modernismo – Prosa (2ª fase)

Um novo olhar para o país

Questões sociais e políticas denunciam os problemas nacionais na segunda fase do Modernismo (1930-1945)

Os romances regionalistas da segunda fase do Modernismo brasileiro procuram apresentar faces do Brasil que não costumavam figurar no conjunto dos romances brasileiros tradicionais – estes últimos marcados, geralmente, por uma ambientação urbana. Afastando-se dos grandes centros da Região Sudeste do país, os autores regionalistas priorizam o tratamento de realidades diversas e se voltam para os problemas sociais do país.

Jorge Amado

Um dos escritores brasileiros mais populares, Jorge Amado (1912-2001) retratou o cotidiano da população baiana – os marinheiros, as mães de santo, os menores abandonados das ruas de Salvador. O romance Capitães da Areia (1937) narra as aventuras de um grupo de garotos marginalizados, moradores de um velho trapiche e estigmatizados por sua condição social. A representação de tipos comuns e o heroísmo presente em episódios simples do dia a dia são marcas da literatura regionalista do Modernismo brasileiro.

Literatura: Modernismo – Prosa (2ª fase)

Quando o levaram para aquela sala Pedro Bala[1] calculava o que o esperava. Não veio nenhum guarda. Vieram dois soldados de polícia, um investigador, o diretor do reformatório. Fecharam a sala. O investigador disse numa voz risonha:
– Agora os jornalistas já foram, moleque. Tu agora vai dizer o que sabe queira ou não queira.
O diretor do reformatório riu:
– Ora, se diz…
O investigador perguntou:
– Onde é que vocês dormem?
Pedro Bala o olhou com ódio:
Se tá pensando que eu vou dizer[2]
– Se vai…
– Pode esperar deitado.
Virou as costas. O investigador fez um sinal para os soldados. Pedro Bala sentiu duas chicotadas de uma vez. E o pé do investigador na sua cara. Rolou no chão, xingando.
Ainda não vai dizer? – perguntou o diretor do reformatório. – Isso é só o começo.[3]
– Não – foi tudo o que Pedro Bala disse.
Agora davam-lhe de todos os lados.[4] Chibatadas, socos e pontapés. O diretor do reformatório levantou-se, sentou-lhe o pé, Pedro Bala caiu do outro lado da sala. Nem se levantou. Os soldados vibraram os chicotes. Ele via João Grande, Professor, Volta Seca, Sem-Pernas, o Gato. Todos dependiam dele. A segurança de todos dependia da coragem dele. Ele era o chefe, não podia trair.[5] Lembrou-se da cena da tarde. Conseguira dar fuga aos outros, apesar de estar preso também. O orgulho encheu seu peito. Não falaria, fugiria do reformatório, libertaria Dora. E se vingaria… Se vingaria…
Grita de dor. Mas não sai uma palavra dos seus lábios.[6] Vai te fazendo noite para ele. Agora já não sente dores, já não sente nada. No entanto, os soldados ainda o surram, o investigador o soqueia. Mas ele não sente mais nada.
– Desmaiou – diz o investigador.
– Deixe ele por minha conta – explica o diretor do reformatório. – Eu levo ele pro reformatório, lá ele abre a boca. Garanto. E eu dou o aviso a vocês.
(…)
O bedel Ranulfo (…) o levou à presença do diretor. Pedro Bala sentia o corpo todo doer das pancadas do dia anterior. Mas ia satisfeito, porque nada tinha dito, porque não revelara o lugar onde os Capitães da Areia viviam.
Lembram-se da canção que os presos cantavam na madrugada que nascia. Dizia que a liberdade é o bem maior do mundo. Que nas ruas havia sol e luz e nas células havia uma eterna escuridão porque ali a liberdade era desconhecida. (…)

Companhia das Letras, 2009.


Publicado em 1937, Capitães da Areia retrata o cotidiano de um grupo de meninos de rua, mostrando suas ações violentas, mas, também, as aspirações e os pensamentos ingênuos comuns a qualquer criança.


[1] PEDRO BALA: Líder dos Capitães da Areia, ele possui uma cicatriz de navalha no rosto, fruto da luta em que venceu o antigo chefe do bando. Seu pai era estivador e liderara uma greve no porto, onde foi assassinado.

[2] LINGUAGEM COLOQUIAL: Os diálogos literários do Modernismo regionalista tentam reproduzir a comunicação informal e, por meio da linguagem, reforçam as caracterizações dos membros de certos grupos sociais (veja no Saiba mais da pág. ao lado).

[3] CONFLITOS: O conflito entre grupos oprimidos e autoridades é frequente na literatura regionalista. Em Vidas Secas, por exemplo, esse aspecto surge na oposição entre Fabiano e o Soldado Amarelo.

[4] INJUSTIÇA  E CRÍTICA SOCIAL: A mando do diretor do reformatório e do investigador de polícia, Pedro Bala é espancado. O autor descreve nesta cena uma relação de abuso. Um menor preso e torturado por aqueles que devem manter a ordem moral, a educação e a justiça.

[5] ORAÇÕES COORDENADAS ASSINDÉTICAS: Note como a sequência de períodos simples e orações coordenadas assindéticas (que não possuem conectivos, sendo ligadas por vírgulas) confere agilidade ao texto.

[6] LEALDADE: Pedro Bala aguenta as pancadas e não revela o local onde vive o grupo porque sabe que é o líder do bando e deve manter lealdade a ele.

Literatura: Modernismo – Prosa (2ª fase)

VARIAÇÃO LINGUÍSTICA

A língua não é uniforme ou homogênea. Ela apresenta variações condicionadas por diferentes fatores, como:

  •  Variação histórica: ocorre ao longo do tempo e pode ser verificada por meio da comparação entre textos de diferentes épocas ou pelo contato entre pessoas de diferentes gerações (por exemplo, o pronome você, correspondente à antiga forma de tratamento vossa mercê).
  • Variação geográfica ou regional: relacionada às palavras e construções específicas dos diferentes territórios em que uma mesma língua é falada (por exemplo, o vegetal mandioca é conhecido como aipim ou macaxeira, conforme a região do Brasil).
  • Variação sociocultural: influenciada por fatores como idade, sexo, profissão ou nível de escolaridade do falante (como as gírias de determinados grupos ou os jargões empregados por profissionais de diferentes áreas).
  •  Variação individual: presente na adequação realizada por um mesmo falante, de acordo com o grau de formalidade da situação em que se encontra (contextos formais exigem o uso da norma padrão da língua, enquanto contextos informais permitem a adoção de um estilo mais coloquial).

Literatura: Modernismo – Prosa (2ª fase)

DA INOCÊNCIA À MATURIDADE 

O Ateneu (1888) relata a vida de um pré-adolescente em um internato para garotos. Esta obra de Raul Pompeia e Capitães da Areia, de Jorge Amado, retratam meninos que são vítimas da exposição precoce à vida adulta, embora em contextos e classes sociais diferentes. Sérgio, estudante de classe média alta, descobre o mundo no colégio interno; o menor Pedro Bala, nas ruas de Salvador.

Literatura: Modernismo – Prosa (2ª fase)

“Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta.”[1]
Bastante experimentei depois a verdade deste aviso, que me despia, num gesto, das ilusões de criança educada exoticamente na estufa de carinho[2] que é o regímen do amor doméstico; diferente do que se encontra fora, tão diferente, que parece o poema dos cuidados maternos um artifício sentimental, com a vantagem única de fazer mais sensível a criatura à impressão rude do primeiro ensinamento, têmpera brusca da vitalidade na influência de um novo clima rigoroso.[3] Lembramo-nos, entretanto, com saudade hipócrita dos felizes tempos; como se a mesma incerteza de hoje, sob outro aspecto, não nos houvesse perseguido outrora, e não viesse de longe a enfada das decepções que nos ultrajam.
(…)
Eu tinha onze anos.
(…)
Um dia, meu pai tomou-me pela mão, minha mãe beijou-me a testa, molhando-me de lágrimas os cabelos e eu parti[4].

Ateliê, 1999

[1] ESPELHO: O colégio interno espelha o mundo exterior e a incerteza diante do desconhecido.

[2] METÁFORA: O narrador utiliza diversas imagens metafóricas (figura de linguagem que aproxima objetos pertencentes a universos diferentes, que apresentam características semelhantes) para fazer referência ao aconchego da vida doméstica.

[3] MEMÓRIA: Depois dessas idas e vindas temporais, o narrador adulto centra-se no pretérito imperfeito e no presente para repassar, na memória, os maus bocados de sua estada no colégio. Esse efeito só é possível graças à intersecção entre tempo cronológico  e psicológico. 

[4] PRIMEIRA PESSOA: Ainda que o livro possua vários aspectos naturalistas, como a descrição rica em detalhes e quase científica do colégio, a obra afasta-se do modelo clássico do movimento, já que o foco em primeira pessoa subverte os preceitos naturalistas de isenção e distanciamento.

Literatura: Modernismo – Prosa (2ª fase)

O filme Capitães da Areia (2011) é dirigido por Cecília Amado, neta de Jorge Amado. Ela buscou o mesmo olhar crítico do livro. O elenco é todo formado por não atores, a fim de se criar uma Bahia verossímil e atual.

Graciliano Ramos

A obra do autor alagoano apresenta cenários e personagens pertencentes à Região Nordeste do Brasil. Em Vidas Secas (1938), por exemplo, Graciliano Ramos (1892-1953) narra a trajetória de uma família de retirantes que procura sobreviver às condições adversas impostas pelo meio natural, como a seca e a caatinga, e pela realidade social, como o latifúndio e o drama dos retirantes. Como o título do livro indica, a seca que assola o sertão nordestino é responsável por enfraquecer as perspectivas de vida e submeter a existência humana à escassez de recursos, à  fome e à miséria.

Segundo críticos literários, a primeira fase modernista se concentrou na “revolução na literatura”, ao defender a liberdade de composição e o verso livre; já a segunda fase, voltada para o regionalismo e para a denúncia de problemas sociais, teria incorporado “a literatura na revolução”.

Caatinga –  O QUE ISSO TEM A VER COM A GEOGRAFIA ?

A caatinga é um bioma exclusivamente brasileiro. Apesar do clima semiárido, possui “ilhas de umidade”, de solo extremamente fértil. A vegetação é adaptada ao clima seco e à pouca quantidade de água. Além da caatinga, os outros biomas brasileiros são a Amazônia, o cerrado, a Mata Atlântica, o pampa e o Pantanal. Para saber mais, veja o GUIA DO ESTUDANTE GEOGRAFIA.

Literatura: Modernismo – Prosa (2ª fase)

Entrava dia e saía dia. As noites cobriam a terra de chofre. A tampa anilada baixava, escurecia, quebrada apenas pelas vermelhidões do poente

Miudinhos, perdidos no deserto queimado[1], os fugitivos agarraram-se, somaram as suas desgraças e os seus pavores.[2] O coração de Fabiano bateu junto do coração de Sinhá Vitória, um abraço cansado aproximou os farrapos que os cobriam. Resistiram à fraqueza, afastaram-se envergonhados, sem ânimo de afrontar de novo a luz dura, receosos de perder a esperança que os alentava.[3]

Iam-se amodorrando e foram despertados por Baleia, que trazia nos dentes um preá. Levantaram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de sonho. Sinhá Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensanguentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo.[4][5]

Aquilo era caça bem mesquinha, mas adiaria a morte do grupo. E Fabiano queria viver. Olhou o céu com resolução. A nuvem tinha crescido, agora cobria o morro inteiro. Fabiano pisou com segurança, esquecendo as rachaduras que lhe estragavam os dedos e os calcanhares.

Fabiano tomou a cuia, desceu a ladeira, encaminhou-se ao rio seco, achou no bebedouro dos animais um pouco de lama. Cavou a areia com as unhas, esperou que a água marejasse e, debruçando-se no chão, bebeu muito. Saciado, caiu de papo para cima, olhando as estrelas, que vinham nascendo. (…) O poente cobria-se de cirros – e uma alegria doida enchia o coração de Fabiano. Pensou na família, sentiu fome. Caminhando, movia-se como uma coisa, para bem dizer não se diferençava muito da bolandeira de seu Tomás.[6] Agora, deitado, apertava a barriga e batia os dentes. Que fim teria levado a bolandeira de seu Tomás?

Olhou o céu de novo. Os cirros acumulavam-se, a lua surgiu, grande e branca. Certamente ia chover.[7] Seu Tomás fugira também, com a seca, a bolandeira estava parada. E ele, Fabiano, era como a bolandeira. Não sabia por quê, mas era. Uma, duas, três, havia mais de cinco estrelas no céu. A lua estava cercada de um halo cor de leite. Ia chover. Bem. A catinga ressuscitaria[8], a semente do gado voltaria[8] ao curral, ele, Fabiano, seria[8] o vaqueiro daquela fazenda morta. Chocalhos de badalos de ossos animariam[8] a solidão. Os meninos, gordos, vermelhos, brincariam[8] no chiqueiro das cabras, Sinhá Vitória vestiria[8] saias de ramagens vistosas. As vacas povoariam o curral. E a catinga ficaria toda verde.

(…)

Lembrou-se dos filhos, da mulher e da cachorra, que estavam lá em cima, debaixo de um juazeiro, com sede. Lembrou-se do preá morto. Encheu a cuia, ergueu-se, afastou-se, lento, para não derramar a água salobra. Subiu a ladeira.

(…)

Baleia agitava o rabo, olhando as brasas. E como não podia ocupar-se daquelas coisas, esperava com paciência a hora de mastigar os ossos.[9]

Depois iria dormir.[9]

Record, 1979.

[1] ANTAGONISTA: O espaço desempenha um papel fundamental na configuração do romance. O sertão é apresentado como o antagonista central, na medida em que dele provém o sofrimento dos personagens.
FRAQUEZAS

[2] PERSONAGENS: Refletem uma situação social que os escritores regionalistas procuraram explicitar: o sentimento de desamparo dos segmentos marginalizados da sociedade (no caso,  a família de retirantes capitaneada por Fabiano).

[3] FRAQUEZAS E CONFLITOS: Os personagens não são descritos de modo idealizado. A força e a resistência advêm da superação dos obstáculos, mas as fraquezas e os conflitos são apresentados de modo cru e direto.

[4] DESUMANIZAÇÃO: O solo árido e o rio seco não oferecem possibilidades de sustento nem de sobrevivência, fazendo com que a família sinta fome e sede em meio ao cenário de natureza morta. A dureza da vida vai aos poucos realizando um processo de desumanização dos personagens.

[5] PROSOPOPEIA: A prosopopeia, figura de linguagem que realiza a personificação de animais e seres inanimados, é empregada para atribuir gestos e emoções à cachorra Baleia. Por outro lado, a família de retirantes apresenta comportamentos que se aproximam da animalização. O mesmo pode ser observado em O Cortiço, de Aluísio Azevedo. Já em Iracema, de José de Alencar, a prosopopeia tem a função de idealizar a índia.

[6] VARIAÇÃO LINGUÍSTICA: A bolandeira e a forma popular de tratamento “seu” (em vez de “senhor”) são recursos linguísticos que procuram trazer, para o universo do romance, aspectos da fala popular do sertão

[7] CÓDIGO NÃO VERBAL: Apesar de analfabeto, o sertanejo Fabiano consegue compreender o código não verbal dos elementos naturais.

[8] FUTURO DO PRETÉRITO: Fabiano dá início a uma idealização do espaço sertanejo, imaginando o fim da seca. Note o emprego de verbos no futuro do pretérito para indicar as esperanças e os sonhos de Fabiano.

[9] FUGA PARA A CIDADE: No entanto, a realidade é outra, e a seca permanece. A única alternativa para a família de retirantes nordestinos será a fuga imediata para a cidade.

Literatura: Modernismo – Prosa (2ª fase)

OS RETIRANTES

Na peça Morte e Vida Severina, João Cabral de Melo Neto (1920-1999), da terceira fase modernista, apresenta a trajetória de Severino, obrigado a migrar para a cidade para fugir da seca. A dor do personagem o aproxima dos retirantes retratados por Graciliano Ramos, em Vidas Secas, e por Cândido Portinari, no quadro Retirantes. Por outro lado, a vida dos nordestinos que tentam escapar da miséria sem sair do sertão faz parte da temática de Os Sertões, de Euclides da Cunha.

Literatura: Modernismo – Prosa (2ª fase)

O meu nome é Severino,[1]
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mais isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.[2]
(…)
E se somos Severinos[3]
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina[3]:
que é a morte[4] de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(…)
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.[5]

Alfaguara, 2007.

[1] HOMEM COMUM: O protagonista se apresenta em primeira pessoa. O nome popular indica uma história semelhante à de outros que vivem  na miséria e em condições precárias.

[2] CONFLITOS SOCIAIS: Os conflitos sociais são explicitados por meio da menção das relações de poder.

[3] ADJETIVO: Em toda a peça, o vocábulo “severino” passa por mudanças de classe gramatical: de substantivo para adjetivo.

[4] DETERMINISMO: A morte severina é resultado do meio  onde se vive.

[5] TEMAS: A fuga dos retirantes, a fome e a miséria montam um retrato não idealizado da vida no Nordeste do país e são temáticas comuns da segunda fase modernista.

 

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