Água: O fantasma da escassez
O fantasma da escassez
A crise no abastecimento de água no Brasil e em diversas regiões do mundo alerta sobre a urgência de melhorar a gestão dos recursos hídricos
por Guilherme Eler
O pronunciamento de Geraldo Alckmin em março de 2016 procurava tranquilizar a população acerca da falta d’água em São Paulo. Segundo o governador, a crise hídrica no estado tinha sido superada. O Sistema Cantareira, principal abastecedor da capital e da região metropolitana, se aproximava de níveis mais seguros e operava a 30% de sua capacidade. A captação do chamado volume morto, reserva técnica que fica abaixo das comportas das represas, já não era mais necessária. Com as chuvas voltando à normalidade, a questão era dada como resolvida.
O discurso do governo, no entanto, foi recebido com ressalvas por especialistas e rechaçado pela população. Isso porque bairros das zonas norte e leste de São Paulo continuavam com as torneiras vazias durante boa parte do dia mesmo após o anúncio de Alckmin. E entre os moradores que tiveram o abastecimento normalizado, a desconfiança é grande. Afinal, os problemas estruturais no sistema de distribuição de água e a possibilidade de novos períodos de estiagem não permitiam precisar se os 8,8 milhões de paulistanos que dependem do Cantareira não estariam, no verão seguinte, mais uma vez reféns da escassez hídrica.
A experiência da mais grave crise hídrica enfrentada em São Paulo ainda é bastante vívida. Torneiras vazias, filas para caminhões-pipa, água em baldes, caixas d’água ativas somente em raros momentos do dia e a diminuição forçada no consumo fizeram parte da rotina de milhões de habitantes da região metropolitana entre 2014 e 2015. As seis represas que formam o Sistema Cantareira chegaram a contar com menos de 4% do volume total, o menor já presenciado. Faltou água para muita gente.
A urbanização desordenada
O drama da falta d’água atingiu não só São Paulo, mas também os estados do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. A estiagem histórica – a mais severa dos últimos 80 anos – foi responsável direta pelo colapso de abastecimento do Sudeste, mas há outros fatores que podem ser apontados para explicá-lo. O rápido crescimento populacional nos centros urbanos da região mais habitada do país responde pelo aumento da pressão sobre as fontes de abastecimento, que não evoluíram na mesma proporção. Na década de 1960, quando o Cantareira foi projetado, São Paulo contava com 4,8 milhões de habitantes. Esse número hoje passa dos 12 milhões, sem contar a região metropolitana.
O desordenado processo de urbanização das cidades brasileiras também piora o acesso à água em quantidade e qualidade satisfatórias. O desmatamento e a impermeabilização do solo, demandas das construções em meio urbano, impedem que a água penetre em lençóis freáticos, prejudicando a recarga dos aquíferos e intensificando o processo de assoreamento de rios.
A ocupação irregular de regiões de mananciais e áreas de várzea pode causar a poluição dos corpos hídricos com esgoto e lixo doméstico. Os dejetos viabilizam a proliferação de espécies aquáticas como algas e aguapés, que prejudicam a oxigenação da água, elevando os gastos no tratamento.
O desafio da gestão
Mas a crise no abastecimento de água nas grandes metrópoles do Sudeste não pode ser creditada apenas a problemas estruturais de urbanização e uma estiagem prolongada. A falta de planejamento e investimentos no setor agravou ainda mais o cenário. Especialistas em recursos hídricos alertavam há pelo menos duas décadas para a necessidade de ampliar as obras para aumentar a capacitação, o tratamento e a distribuição de água nos grandes centros urbanos.
A Grande São Paulo, por exemplo, tem à disposição mananciais na parte norte (Cantareira) e no sul (Guarapiranga), além de reservatórios artificiais e a possibilidade de se abastecer de outras bacias mais distantes. O problema é que todo esse sistema não é interligado. Ou seja, em um cenário ideal, se uma bacia for afetada pela falta de chuvas, outro manancial deve repor a perda. Após a crise, deslancharam obras para a captação de água na represa Cachoeira do Franca, localizada a 83 quilômetros da capital, e a transposição das águas do Rio Paraíba do Sul para o Sistema Cantareira.
A gestão privada dos recursos hídricos estabelece a água como uma mercadoria voltada para o lucro.
Outra crítica de especialistas à administração dos recursos hídricos em São Paulo diz respeito ao modelo de gestão público-privada. A Sabesp é uma empresa de capital misto (51% sob controle do Estado e o restante pertence a investidores privados). Uma empresa com esse perfil estaria mais focada a buscar resultados financeiros positivos, o que estabeleceria a concepção da água como mercadoria voltada para a obtenção de lucro, e não como um bem universal e direito de todos.
A seca no Nordeste
Mesmo tendo 12% das reservas mundiais de água doce e grande número de rios e aquíferos, o Brasil não está imune à escassez hídrica. O problema pode ser explicado pela distribuição desigual do recurso em nosso território. A Região Norte, que concentra apenas 8% da população, conta com 62,1% das reservas. O Nordeste, em contrapartida possui apenas 3% da água para atender a 28% da população nacional.
O clima semiárido e a presença de massas de ar quente estacionadas na região explicam a menor ocorrência de chuvas no Nordeste. Fenômenos climáticos sazonais, como o El Niño, que promove o aquecimento das águas oceânicas, também contribuem para a intensificação dos períodos de estiagem na região.
Medidas que visam a controlar o problema da seca são associadas a entraves políticos, que afastam a população mais pobre do acesso a água. Historicamente a execução de projetos de irrigação, que permitem aumentar o regime de rios temporários, e a construção de açudes por exemplo, privilegiam essencialmente as regiões controladas por latifundiários em detrimento da população mais castigada pela estiagem. Esse fenômeno conhecido como “indústria da seca”, é responsável por perpetuar os problemas decorrentes da escassez hídrica.
A transposição do Rio São Francisco
A principal obra do governo federal visando o combate dos efeitos da seca no Nordeste é a transposição do Rio São Francisco, mais importante corpo hídrico do Nordeste, que atravessa os estados da Bahia, Minas Gerais, Alagoas, Sergipe, Pernambuco, além de parte de Goiás e do Distrito Federal. A área coberta pela bacia do Rio São Francisco corresponde a cerca de 8% do território nacional. Compreende 504 municípios, atingindo uma população de 14 milhões de habitantes.
Iniciada em 2007, a obra tem o objetivo de desviar uma pequena parcela do volume do rio, por meio de dutos e canais, para o abastecimento de leitos menores e açudes que secam durante o período de estiagem no semiárido nordestino. Em meio a atrasos em licitações e prazos, o projeto está em sua fase final, com cerca de 80% das obras concluídas.
Questionam-se, no entanto, os impactos ambientais decorrentes da obra, como o desmatamento, e, por conseguinte, os prejuízos à biodiversidade. Para minimizar as consequências negativas, são necessárias ações para monitorar a vazão do rio e os processos erosivos ao longo das regiões contempladas pelas obras. Paralelamente, a construção de cisternas e poços para captação de água da chuva precisam continuar sendo incentivadas como medida de combate à seca.
O mundo que tem sede
O volume total da água no planeta é da ordem de 1,4 bilhão de quilômetros cúbicos. E essa quantia praticamente não diminui, por causa do ciclo hidrológico. O processo promove a renovação da água, por meio de sua circulação entre a superfície e a atmosfera. A energia solar provoca a evaporação da água, que passa para o estado gasoso ao atingir a atmosfera. O vapor de água se transforma em nuvem, que se condensa, dando origem às chuvas. Estas são distribuídas pelos territórios, escoando para rios, lagos, oceanos e se infiltrando no solo.
No entanto, diversas regiões do mundo sofrem com a falta d’água, fruto do esgotamento das reservas hídricas. O aumento populacional, o consumo crescente, o desperdício, a contaminação dos mananciais e as alterações climáticas exercem grande pressão sobre as fontes de abastecimento de água.
A população mundial saltou de 2,5 bilhões de pessoas em 1950 para os mais de 7 bilhões atuais. Isso não implica somente mais torneiras abertas ou chuveiros ligados por mais tempo. Tarefas cotidianas são responsáveis por apenas 10% do consumo total da água pelo homem. Um número maior de pessoas significa uma demanda maior pela produção de alimentos e na indústria, para a geração de bens manufaturados. Essas tarefas representam os outros 90% da conta e são as maiores responsáveis pelo esgotamento das reservas.
Sem água, extingue-se a possibilidade de qualquer atividade humana. A dinâmica das grandes cidades, centros de produção e lar de grande número de pessoas, torna-se inviável. Nos meses mais secos, a região de Nova Délhi, capital da Índia, possui disponibilidade de 26 litros de água per capita por dia. A Cidade do México, outra grande metrópole mundial, é também exemplo da intensa escassez nos meses de estiagem, chegando a dispor de apenas 2 litros por habitante. O recomendado para as atividades diárias de uma pessoa, no entanto, são 100 litros. A conta, então, se torna insustentável: em algum momento a demanda gigantesca conduzirá a um colapso. Estima-se que, até 2050, 3 bilhões de pessoas enfrentarão algum tipo de privação relacionada à água nas cidades.
Disputas por água
A menor oferta de água provoca o surgimento de conflitos decorrentes de disputas pelo controle dos recursos hídricos. No Oriente Médio, a Turquia, que controla as nascentes dos rios Tigre e Eufrates, vem realizando uma série de obras hidrelétricas na bacia desses rios. Uma das barragens em construção no Rio Tigre é a Ilisu. Ela é fortemente criticada pelas autoridades da Síria e do Iraque, que temem uma redução na vazão dos rios, o que pode afetar o abastecimento à população e o desenvolvimento da agricultura. Dessa forma, a escassez hídrica se torna um foco a mais de tensão nessa já conturbada região.
Na África, a bacia do Rio Nilo enfrenta problema semelhante. O projeto da hidrelétrica Grande Renascença, iniciado pela Etiópia em 2011 e com previsão de conclusão para 2017, pretende ser a maior barragem do continente. O Sudão e o Egito, no entanto, se posicionaram contra o projeto. Os países são abastecidos pelo Nilo Azul, afluente envolvido na construção, e temem que a diminuição na oferta de água afete a população.
Uma das principais desavenças entre Israel e Síria é a disputa por territórios. Ambas as nações reivindicam o direito pelas Colinas de Golã, região que abriga o Rio Jordão, de onde provém um terço da água consumida por Israel. O represamento e os desvios nas águas de Golã por Israel afetam o abastecimento de Síria e de Jordânia que também dependem dessa fonte hídrica.
Água
CRISE HÍDRICA NO SUDESTE A mais grave estiagem da Região Sudeste aconteceu no verão de 2013 e 2014. As seis represas que formam o Sistema Cantareira, responsável pelo abastecimento de 55% da população da região metropolitana de São Paulo, chegaram a contar com menos de 4% do volume total. Em 2015, alguns municípios paulistas e regiões da capital tiveram que conviver com cortes no abastecimento.
SECA NO NORDESTE A Região Nordeste dispõe de apenas 3% do total de recursos hídricos disponíveis do país, apesar de contar com 28% da população. O clima semiárido e a presença de massas de ar quente estacionadas na região explicam a menor ocorrência de chuvas. Esses fatores fazem com que a região sofra com longos períodos de estiagem. O polêmico projeto de transposição do Rio São Francisco propõe o desvio de uma pequena parcela do volume do rio para o abastecimento de leitos menores e açudes que secam durante o período de seca.
ÁGUA NO BRASIL Mesmo com 12% das reservas mundiais de água doce e grande número de rios e aquíferos, o Brasil não está imune à escassez hídrica. O rápido crescimento populacional nos centros urbanos exerce forte pressão sobre as fontes de abastecimento, que não evoluíram na mesma proporção. O desmatamento e a impermeabilização do solo impedem que a água penetre em lençóis freáticos, prejudicando a recarga dos aquíferos e intensificando o processo de assoreamento de rios. A gestão errática dos recursos hídricos também afeta o abastecimento de água nos grandes centros.
DISPUTAS PELO MUNDO Diversas regiões do planeta sofrem com a falta d’água, fruto do esgotamento das reservas hídricas. O crescente consumo torna a relação com a água insustentável, prejudicando as atividades humanas, principalmente nas grandes cidades. A menor oferta de água inflaciona os preços, aumenta o número de irregularidades de distribuição e promove o surgimento de tensões e conflitos por causa do acesso aos recursos hídricos