Caderno de redações: UNESP 2016
A DISSEMINAÇÃO DO HORROR MIDIÁTICO!
A proposta da Universidade Estadual Paulista (Unesp) seguiu uma das diretrizes da prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), trazendo textos não verbais na coletânea, além de abordar o tema da violência, presente na última prova do Enem. Porém, o tema veio inserido em questões de implicações mais morais que sociais, e do papel das redes sociais. As análises da proposta e de redações bem avaliadas são do professor Alan Nicoliche.
PROPOSTA DE REDAÇÃO
Menina vietnamita atingida por napalm foge de aldeia bombardeada.
(Nick Ut. Vietnã, 1972.)
Menina sudanesa em região assolada pela
fome é observada por abutre.
(Kevin Carter. Sudão, 1993.)
Menino sírio é encontrado morto em praia
após naufrágio de barco com refugiados.
(Nilufer Demir. Turquia, 2015.)
TEXTO 1
Um dos traços característicos da vida moderna é oferecer inúmeras oportunidades de vermos (à distância, por meio de fotos e vídeos) horrores que acontecem no mundo inteiro. Mas o que a representação da crueldade provoca em nós? Nossa percepção do sofrimento humano terá sido desgastada pelo bombardeio diário dessas imagens?
Qual o sentido de se exibir essas fotos? Para despertar indignação? Para nos sentirmos “mal”, ou seja, para consternar e entristecer? Será mesmo necessário olhar para essas fotos? Tornamo-nos melhores por ver essas imagens? Será que elas, de fato, nos ensinam alguma coisa?
Muitos críticos argumentam que, em um mundo saturado de imagens, aquelas que deveriam ser importantes para nós têm seu efeito reduzido: tornamo-nos insensíveis. Inundados por imagens que, no passado, nos chocavam e causavam indignação, estamos perdendo a capacidade de nos sensibilizar. No fim, tais imagens apenas nos tornam um pouco menos capazes de sentir, de ter nossa consciência instigada.
Susan Sontag. Diante da Dor dos Outros, 2003. (adaptado).
TEXTO 2
Quantas imagens de crianças mortas você precisa ver antes de entender que matar crianças é errado? Eu pergunto isso porque as mídias sociais estão inundadas com o sangue de inocentes. Em algum momento, as mídias terão de pensar cuidadosamente sobre a decisão de se publicar imagens como essas. No momento, há, no Twitter particularmente, incontáveis fotos de crianças mortas. Tais fotos são tuitadas e retuitadas para expressar o horror do que está acontecendo em várias partes do mundo. Isto é obsceno. Nenhuma dessas imagens me persuadiu a pensar diferentemente do modo como eu já pensava. Eu não preciso ver mais imagens de crianças mortas para querer um acordo político. Eu não preciso que você as tuíte para me mostrar que você se importa. Um pequeno cadáver não é um símbolo de consumo público.
Suzanne Moore. Compartilhar Imagens de Cadáveres nas Mídias Sociais Não é o Modo de se Chegar a um Cessar-Fogo. https://www.theguardian.com, 21 jul. 2014. (adaptado).
TEXTO 3
A morbidez deve ser evitada a todo custo, mas imagens fotográficas chocantes que podem servir a propósitos humanitários e ajudar a manter vivos na memória coletiva horrores inomináveis (dificultando, com isso, a ocorrência de horrores similares) devem ser publicadas.
Carlos Eduardo Lins da Silva. Muito Além de Aylan Kurdi. https://observatoriodaimprensa.com.br, 08 set. 2015. (adaptado).
TEXTO 4
Diretor da ONG Human Rights Watch, Peter Bouckaert publicou em seu Twitter a foto do menino sírio de 3 anos que se afogou. Ele explicou sua decisão: “Alguns dizem que a imagem é muito ofensiva para ser divulgada. Mas ofensivo é aparecerem crianças afogadas em nossas praias quando muito mais pode ser feito para evitar suas mortes”.
Diretor de ONG Explica Publicação de Foto de Criança. Folha de S.Paulo, 3 set. 2015. (adaptado).
Com base nos textos apresentados e em seus próprios conhecimentos, escreva uma dissertação, empregando a norma-padrão da língua portuguesa, sobre o tema: Publicação de imagens trágicas: banalização do sofrimento ou forma de sensibilização?
ANÁLISE DA PROPOSTA
O IMPACTO DAS IMAGENS
A redação do vestibular da Unesp 2016 trouxe um tema polêmico. A publicação de imagens trágicas por veículos impressos e por mídias eletrônicas é algo cada vez mais comum, e que gera muitas discussões sobre sua pertinência, sua validade ética, moral e social, seus reflexos no público. Essa divergência de opiniões foi justamente o foco da proposta – os candidatos deveriam se posicionar sobre as consequências desse tipo de publicação.
Assim como nos anos anteriores, a proposta apresentou alguns textos de apoio, mas, além disso, expôs três imagens icônicas de tragédias: a menina queimada por napalm no Vietnã em 1972, a menina sudanesa faminta observada por um abutre que a espera morrer, e um dos mais recentes casos, o garoto sírio encontrado morto em uma praia na Turquia. Os retratos chocantes serviam como reforço aos candidatos na hora de julgar seus impactos.
Os textos 1 e 2 mostravam posicionamentos contrários à publicação das imagens. Elas banalizariam a violência e tornariam as pessoas insensíveis, seriam também sensacionalistas, desnecessárias, quase obscenas. Ambos os textos trazem posições consistentes, que poderiam apoiar o candidato que optasse por criticar as imagens. Já os textos 3 e 4 argumentavam pelo outro lado: as publicações serviriam para lembrar as pessoas das atrocidades, despertar nelas sentimento de revolta e vontade de mudança na postura diante de grandes atrocidades. Nesse caso, aqueles que defendessem o uso desses retratos como sensibilização teriam um ponto de partida para sua tese.
Independentemente de sua posição, esperava- se que os candidatos soubessem desenvolver um texto que demonstrasse o convívio com essa realidade estampada na mídia e soubessem opinar sobre seus efeitos. Além de evidenciar uma postura clara, a redação poderia discutir o propósito dos veículos de comunicação, a postura da sociedade diante das grandes tragédias e os limites do profissionalismo, do sensacionalismo e do bom gosto nas diferentes mídias disponíveis na atualidade. De qualquer modo, a reflexão deve ter extrapolado o momento de prova e colocado à prova as convicções dos futuros universitários.
REDAÇÃO 1
(Sem título)
Em seu livro “Modernidade Líquida”, o sociólogo Zygmunt Bauman disserta acerca dos efeitos da excessiva velocidade de propagação de informações, logrado pelo advento das mídias sociais, nas diversas sociedades. Para ele, tal conjuntura torna os sentimentos humanos cada vez mais “líquidos”: todas as emoções, incluindo aquelas oriundas de profunda indignação perante as mazelas do mundo, são efêmeras e passíveis de substituição assim que novas sensações forem despertadas mediante novas notícias.
Tais assertivas são facilmente comprovadas por meio de uma análise da conjuntura atual: a imagem de Aylan Kurdi, menino refugiado vitimado por um naufrágio, foi intensamente veiculada na internet, sensibilizando milhares de indivíduos. Após alguns meses, todavia, devido ao ataque terrorista na França, no qual 130 pessoas foram assassinadas, houve um profundo recrudescimento do discurso de extrema direita em solo europeu. Não obstante a comoção inicial que promoveu, a imagem foi tragada por um processo que pode ser denominado “banalização do sofrimento alheio”.
O ano de 2015 foi permeado por vídeos de decapitações orquestradas pelo Estado Islâmico, por imagens de naufrágios no Mar Mediterrâneo e, no contexto nacional, por inúmeras notícias sobre crimes hediondos, miséria e assassinatos sumários. Constantemente bombardeados pelos itens elencados os usuários do mundo online gradativamente perdem a capacidade de se consternar, ratificando a seguinte afirmação de Cícero, célebre orador romano: “O hábito converte o repugnante em cotidiano”.
Segundo Liev Tolstoi, o principal indicador de uma sociedade corrompida seria a apatia de seus membros perante as injustiças do mundo. No caso específico das sociedades ocidentais, no entanto, a banalização das imagens trágicas atuaria de forma mais eficiente, pois não somente evidencia o caráter breve da sensibilização coletiva, como também os efeitos nefastos de nosso individualismo. Enquanto o sofrimento alheio constituir apenas material de compartilhamento nas redes sociais, sem consubstanciar debates ou insurgências populares, é evidente que permaneceremos uma sociedade moral e essencialmente transviada.
ANÁLISE
IDEIAS BEM REFERENCIADAS
Um dos pontos verificados em uma redação de vestibular é a capacidade de o redator selecionar informações pertinentes ao tema e à sua linha argumentativa. Os exemplos, a intertextualidade e a contextualização com diversos campos do conhecimento são importantes para enriquecer e redação e mostrar ao corretor um pouco da bagagem do candidato. Essa redação feita para o vestibular da Unesp tem essas características como ponto principal.
Uma dissertação não é feita apenas de opinião. A contextualização é muito importante, sobretudo em temas que se relacionam com os problemas da sociedade. Dessa forma, dialogar com pensadores e cientistas sociais que estudaram ou se debruçaram sobre o mesmo tema é bastante interessante, e pode render boas análises.
A redação que ora analisamos traz diversas referências, e baseia-se nelas para expor seu ponto de vista sobre o tema proposto e construir sua argumentação. A ideia de que o convívio com as imagens trágicas faz com que a sociedade as banalize e, por consequência, torne-se apática diante dos próprios fatos retratados não nasce de pura conjectura. Todo o raciocínio usa como pilares discurso de pensadores renomados – assim são citados Bauman, Cícero e Tolstoi.
É importante ressaltar que nem só de referências vive uma redação, de nada adianta uma colcha de retalhos feita com citações jogadas a esmo. Felizmente, neste caso, o candidato soube trabalhar a intertextualidade e desenvolver bons raciocínios em cima dessas referências – o que acabou compensando um pouco o tom expositivo do texto. Também o bom conhecimento sobre os acontecimentos atuais, e sua contextualização com a proposta, enriqueceram os exemplos e a pertinência dos argumentos. A estratégia fez o texto ser bem recebido pela banca examinadora, que o avaliou com uma boa nota.
Quanto à ausência de título, a regra para seu uso ou não nas redações de vestibular é simples: apenas se for pedido é obrigatório. Quando não há a obrigação, vale o bom senso: se você precisa de uma linha a mais de texto, pode usá-la e ignorar o título, mas se tiver as linhas necessárias, vale a pena mantê-lo e caprichar, pois pode contar pontos com a banca.
REDAÇÃO 2
Na pós-modernidade, os fluxos de informação tornaram-se progressivamente mais intensos e velozes, permitindo que, em poucos segundos, imagens de qualquer parte do mundo circulem com uma rapidez irrefreável. Nesse contexto, uma quantidade avassaladora de imagens que revelam desastres, guerras, miséria, sofrimento e morte circulam pelas redes de telecomunicação, promovendo reflexão e indignação. Assim, essas fotos são o registro objetivo e direto da realidade, que precisa ser publicada, discutida e repensada.
A imagem do menino sírio encontrado morto em uma praia na Turquia, após o naufrágio de um barco com refugiados, percorreu o mundo e provocou choque. A polêmica questão dos refugiados estava, então, estampada em todos os jornais, mostrando a sua face cruel, mesmo para aqueles que a desconheciam ou insistiam em negar sua importância e urgência. Logo, o mundo teve de encarar a realidade, em sua forma mais cruel, para promover a reflexão a respeito de uma questão ainda negligenciada. Isso revela a importância das imagens na sensibilização e mobilização dos indivíduos mundialmente, promovendo conscientização e possibilidade de mudança.
Ademais, mister se faz destacar o potencial das imagens em transmitir mensagens pelo mundo, uma vez que independem da língua. As fotos são retratos que representam simbolicamente um determinado momento, capazes de defender ideologias sem o uso de palavras. Assim, a imagem tem a especial capacidade de de transcender barreiras, como a nacionalidade e o momento histórico. A imagem do assassinato de Herzog, por exemplo, é, ainda hoje, símbolo da violência e autoritarismo do período ditatorial brasileiro.
Portanto, a divulgação de imagens trágicas tem a função de promover o incômodo e levar ao questionamento pela sensibilização da população. É inconsistente acreditar que essas publicações banalizam o sofrimento, pois a existência delas nos recorda diariamente os horrores produzidos pelo homem. São as imagens do espetáculo da tragédia que impedem que os indivíduos permaneçam indiferentes, uma vez que estampam a realidade para o conhecimento de todos, a fim de levar à reflexão. Logo, uma foto é uma metonímia da realidade, que precisa ser exposta para o mundo, a fim de que, quando gravadas nas memórias coletivas, esses horrores possam ser superados e mantidos no passado.
ANÁLISE
OPINIÃO CLARA
É importante que o ponto de vista do candidato fique bem claro em sua redação. Elaborar uma tese e defender suas ideias abertamente facilitará o entendimento do leitor – o que pode auxiliar na nota. O exemplo que temos aqui segue corretamente esta cartilha: sua posição quanto ao efeito positivo da publicação de imagens trágicas aparece na tese e é o fio condutor de todo o texto.
O redator começa o texto contextualizando as imagens chocantes presentes na contemporaneidade e a facilidade com que chegam ao público, emendando com seu posicionamento. É interessante como tal posicionamento vem de tal forma amalgamado no contexto, que parece uma decorrência lógica, não deixando espaço para outras possibilidades – a não publicação, no caso. A estratégia é positiva, pois a leitura passa a ser pautada na tese de que a publicação dessas imagens tem o claro objetivo de levar as pessoas à reflexão sobre as situações retratadas.
Na sequência, no segundo parágrafo, o autor passa à argumentação, desenvolve e exemplifica sua abordagem inicial, apenas confirmando sua tese. A redação dialoga duplamente com a proposta do vestibular, o candidato se apoia no texto 4 e em uma das imagens expostas. Essa é usada como pano de fundo para sustentar sua visão da importância das publicações como um meio de promover a conscientização, que poderá trazer mudanças à realidade.
No parágrafo seguinte, o raciocínio é reiterado, destacando o caráter universal e imediato das imagens, além de sua permanência na memória coletiva – bem exemplificada no caso do assassinato do jornalista Vladimir Herzog. Dessa forma, os argumentos reforçam a linha de raciocínio apresentada no início da redação e facilmente conseguem apoio no leitor.
A conclusão apenas reitera tudo o que foi exposto, mas o faz com um texto tão bem amarrado, que não deixa brechas – o que, aliás, é marca ao longo de toda a escrita. Assim, até a figura de linguagem um tanto exagerada que encerra o texto (a metonímia) não causa estranheza no leitor.
É assim que um texto claro, que expõe suas opiniões de forma precisa e busca argumentos para sustentá-las, consegue uma boa avaliação da banca examinadora. Além de exemplo de coesão textual, essa redação demonstra como é importante posicionar-se quando a proposta assim o pede. Sem medo.