Caderno de redações: UNICAMP 2016
CAPACIDADES DE INTERLOCUÇÃO
Demonstrar domínio de ferramentas da dissertação (síntese e conclusão), da narração (detalhar elementos
e contar uma história), em diferentes situações, e de interlocução (traduzir conteúdos para um público
específco, com objetivos defnidos). As propostas de redação da prova da Universidade de Campinas
(Unicamp) novamente desafam os candidatos e procuram avaliar um domínio mais completo do letramento
do que a dissertação argumentativa clássica. A análise da proposta e das redações bem avaliadas e das abaixo
da média são da professora Nathália Macri Nahas
TEXTO 1
Você é um estudante universitário que participará de um concurso de resenhas, promovido pelo Centro de Apoio ao Estudante (CAE), órgão que desenvolve atividades culturais em sua Faculdade. Esse concurso tem o objetivo de estimular a leitura de obras literárias e ampliar o horizonte cultural dos estudantes. A resenha será lida por uma comissão julgadora que deverá selecionar os dez melhores textos, a serem publicados.
Você escolheu resenhar a fábula de La Fontaine transcrita ao lado. Em seu texto, você deverá incluir:
a) uma síntese da fábula, indicando os seus elementos constitutivos;
b) a construção de uma situação social análoga aos fatos narrados, que envolva um problema coletivo;
c) um fechamento, estabelecendo relações com a temática do texto original.
Seu texto deverá ser escrito em linguagem formal, deverá indicar o título da obra e ser assinado com um pseudônimo.
A Deliberação Tomada pelos Ratos
Rodilardo, gato voraz,
aprontou entre os ratos tal matança,
que deu cabo de sua paz,
de tantos que matava e guardava na pança.
Os poucos que sobraram não se
Aventuravam
a sair dos buracos: mal se alimentavam.
Para eles, Rodilardo era mais que um gato:
era o próprio Satã, de fato.
Um dia em que, pelos telhados,
foi o galante namorar,
aproveitando a trégua, os ratos, assustados,
resolveram confabular
e discutir um modo de solucionar
esse grave problema. O decano, prudente,
definiu a questão: simples falta de aviso,
já que o gato chegava, solerte. Era urgente
amarrar-lhe ao pescoço um guizo,
concluiu o decano, rato de juízo.
Acharam a ideia excelente,
e aplaudiram seu autor. Restava, todavia,
um pequeno detalhe a ser solucionado:
quem prenderia o guizo – e qual se atreveria?
Um se esquivou, dizendo estar muito
ocupado;
Outro alegou que andava um tanto
Destreinado
em dar laços e nós. E a bela idéia
teve triste final. Muita assembleia, ao fim
nada decide – mesmo sendo de frades ou
de veneráveis abades…
Deliberar, deliberar …
conselheiros, existem vários;
mas quando é para executar,
Onde estarão os voluntários?
Fábulas de La Fontaine. Tradução de Milton Amado e Eugênia Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 2003, p. 134-136.
GLOSSÁRIO
Abade: superior de ordem religiosa que dirige uma abadia.
Frade: indivíduo pertencente a ordem religiosa cujos membros seguem uma regra de vida e vivem separados do mundo secular.
Decano: o membro mais velho ou mais antigo de uma classe, assembleia, corporação, etc.
Guizo: pequena esfera de metal com bolinhas em seu interior que, quando sacudida, produz um som tilintante.
Solerte: engenhoso, esperto, sagaz, ardiloso, arguto, astucioso.
TEXTO 2
Você está participando de um curso sobre o livro O Sentimento de Si: Corpo, Emoção e Consciência, de autoria do neurocientista António Damásio. Uma das avaliações do curso consiste na produção de um texto de divulgação científica a ser publicado em um blog do curso. O objetivo do seu texto será o de divulgar as ideias do autor para um público mais amplo, especialmente para alunos do Ensino Médio. Você deverá escrever o seu texto sobre o tema da indução das emoções, baseado no excerto abaixo, incluindo:
a) uma explicação sobre indutores de emoção com exemplos do próprio texto;
b) uma breve narrativa que exemplifique processos de indução de emoções;
c) uma finalização baseada no fechamento do texto original.
Lembre-se de que o texto de divulgação científica deverá ter um título adequado aos conteúdos tratados.
O INDUZIR DAS EMOÇÕES
As emoções acontecem em dois tipos de circunstâncias. O primeiro tipo de circunstâncias tem lugar quando o organismo processa determinados objetos ou situações através de um dos seus dispositivos sensoriais, por exemplo, quando o organismo avista um rosto ou um local familiar. O segundo tipo de circunstâncias tem lugar quando a mente de um organismo recorda certos objetos e situações e os representa, como imagens, no processo do pensamento, por exemplo, a recordação do rosto de uma amiga ou o fato de esta ter acabado de falecer.
Um fato que se torna óbvio ao considerarmos as emoções é que certas espécies de objetos ou acontecimentos tendem a estar mais sistematicamente ligadas a determinado tipo de emoção que a outros. As classes de estímulos que provocam alegria, medo ou tristeza tendem a fazê-lo de forma consistente no mesmo indivíduo e em indivíduos que compartilham os mesmos antecedentes culturais. Apesar de todas as possíveis variações na expressão de uma emoção, e apesar do fato de podermos ter emoções mistas, existe uma correspondência aproximada entre classes de indutores de emoção e o resultante estado emocional. Ao longo da evolução, os organismos adquiriram os meios para responder a determinados estímulos – sobretudo aos que são potencialmente úteis ou perigosos sob o ponto de vista da sobrevivência – através de um conjunto de respostas a que chamamos emoção.
Também é importante notar que enquanto o mecanismo biológico das emoções é largamente predeterminado, os indutores de emoção são externos e não fazem parte desse mecanismo. Os estímulos que causam a emoção não se encontram, de modo algum, confinados aos que ajudaram a formar nosso cérebro emocional ao longo da evolução e que podem induzir emoção desde os primeiros dias de vida. À medida que se desenvolvem e interagem, os organismos ganham experiência factual e emocional com diversos objetos e situações do ambiente, tendo assim uma oportunidade de associar muitos objetos e situações que poderiam ter permanecido emocionalmente neutros, com os objetos e as situações que causam emoções naturalmente. A forma de aprendizagem conhecida por condicionamento é uma das maneiras de obter esta associação. Uma casa parecida com a que o leitor viveu uma infância feliz pode fazê-lo sentir-se feliz, embora nada de especialmente bom ainda se tenha passado na casa. Do mesmo modo, o rosto de uma belíssima desconhecida, que se assemelha ao de uma pessoa ligada a um acontecimento terrível, pode causar-lhe desconforto ou irritação. Pode até nunca chegar a perceber por quê.
A consequência de concedermos um valor emocional aos objetos que não estavam biologicamente destinados a receber essa carga emocional é tornar infinita a lista de estímulos que, potencialmente, podem induzir emoções. De uma forma ou de outra, a maior parte dos objetos e das situações conduzem a alguma reação emocional, embora uns em maior escala que outros. A reação emocional pode ser fraca ou forte – e, felizmente para nós, é fraca na maior parte das vezes –, mas, mesmo assim, está sempre presente. A emoção e o mecanismo biológico que lhe é subjacente são os companheiros obrigatórios do comportamento, consciente ou não. Um certo grau de emoção acompanha, forçosamente, o pensamento sobre nós mesmos ou sobre o que nos rodeia.
Adaptado de António Damásio, O Sentimento de Si: Corpo, Emoção e Consciência. Lisboa: Círculo de Leitores, 2013, p.79-81.
ANÁLISE DA PROPOSTA
DIVERSIDADE DE GÊNEROS E DE CANAIS
As propostas de redação dessa prova cobravam o conhecimento de dois gêneros textuais diferentes (uma resenha e um texto de divulgação científica), que por sua vez exigiam do candidato que interpretasse as outras duas formas de expressão da coletânea, a fábula-poema e o texto dissertativo acadêmico, além de desafiá-lo com novos canais de interlocução.
Para se sair bem em um exame como esse, é fundamental que o candidato tenha atenção às orientações oferecidas em relação a cada tipo de produção solicitada, pois elas demandam diferentes abordagens, a saber: o papel que o candidato deve assumir como emissor da mensagem, de acordo com a situação socialmente determinada; o conteúdo que cada redação deve contemplar; a forma de seu texto (tipo e gênero); seu interlocutor (o destinatário da mensagem) e, finalmente, o canal pelo qual os textos chegarão ao interlocutor. Ademais, o candidato deve também atentar-se ao tipo de linguagem demandada em cada canal da redação.
Na primeira proposta, o emissor é um estudante universitário, a situação socialmente determinada é um concurso da universidade, os interlocutores são a comissão julgadora e, a seguir, os demais estudantes, a forma e canal do texto é uma resenha com exemplo e síntese que será impressa. Para ter êxito nessa proposta, o candidato precisaria, primeiramente, fazer uma leitura atenta da fábula de La Fontaine para compreender o que ela busca retratar – a maneira como o ser humano lida com problemas coletivos –, para fazer a síntese da narrativa e selecionar uma situação real análoga a ela. Entre as ideias de analogia, são possíveis situações resultantes de relações desiguais de poder, levando o grupo subjugado a se reunir e discutir alternativas de ações e soluções. O candidato também poderia trazer algum problema coletivo atual para os quais a população delibere sobre soluções sem conseguir colocá-las em prática. É importante considerar que a resenha esperada não era uma simples descrição do texto-base, e sim uma reflexão do tema proposto, na qual o candidato deveria expor seu senso crítico por meio da analogia com a sociedade contemporânea.
Na segunda proposta, o emissor é estudante de um curso específico, a situação é de avaliação, o canal final será a divulgação em um blog, a forma é um texto de divulgação científica, e seus interlocutores finais são os alunos do Ensino Médio. Novamente, para o êxito da elaboração, o candidato precisaria ler atentamente o texto apresentado para conseguir sintetizá-lo a seus interlocutores com uma linguagem adequada a eles.
O canal de publicação, o blog, permite elaborar diversos tipos de texto, porém, como o blog em questão seria do curso do livro, considera-se um contexto um pouco mais formal de interlocução. O texto se manteria próximo a uma dissertação expositiva, no qual a estrutura permitiria ao autor expor o conceito do excerto (solicitado em A) e relacioná-lo com uma narrativa de exemplificação (solicitada em B). A proposta não oferece orientações quanto a esse exemplo, então o candidato poderia utilizar exemplos do cotidiano ou aspectos pessoais.
A estrutura dissertativo-expositiva permitiria ao candidato finalizar o texto sem muitas dificuldades, pois bastaria retomar as principais ideias da parte final do texto da coletânea. A seguir, sintetizar a importância das emoções no que tange ao nosso comportamento e à maneira como nós enxergamos a sociedade e a nós mesmos.
REDAÇÕES ACIMA DA MÉDIA
REDAÇÃO 1
Sem título
A fábula “A Deliberação Tomada pelos Ratos”, escrita por La Fontaine, apresenta uma situação-problema desencadeada por um gato de nome Rodilardo que caça inúmeros ratos, matando-os e comendo-os. Os ratos, preocupados com sua situação, decidem se reunir para discutir e encontrar alguma solução. Assim, concluem que se houvesse um sinal para alertá-los da presença do felino, poderiam ter tempo para se esconder e salvar suas vidas, o que foi proposto pelo rato mais velho e experiente. Os demais concordaram, inclusive com a ideia de pendurar-lhe uma esfera de metal barulhenta no pescoço. Porém, nenhum dos ratos se comprometeu a fazê-lo, tornando a ideia infrutífera.
La Fontaine, com esta fábula, transmite a moral de que, embora seja importante deliberar os assuntos, é imprescindível executá-los. Situação semelhante ocorre quando uma comunidade enfrenta problemas com a segurança pública. Em um determinado bairro com alto índice de violência, pouco adianta lastimar-se dos crimes ocorridos ou discutir soluções em uma rede social. Caso este alto índice de violência ocorra em razão da ausência de escolas ou atividades culturais, essa comunidade deverá se organizar e levar os fatos às autoridades competentes para que providenciem o necessário e, com a participação de todos, seja resolvido concretamente o problema.
O receio de eventuais retaliações pode levar essa comunidade a amedrontar-se, assim como os ratos da fábula. Para colocar o guizo no gato, ou seja, para efetivar uma transformação nesse bairro, é preciso sair da toca, enfrentar a questão e exigir os próprios direitos. No caso, um serviço de segurança e educação prestados adequadamente pelo Estado.
Érico de Assis
ANÁLISE
ADEQUAÇÃO E PERTINÊNCIA DAS IDEAIS CENTRAIS
O texto mostra uma boa adequação à proposta, trazendo de forma eficaz logo na introdução a síntese da fábula, como era esperado pela banca examinadora. O candidato ressalta adequadamente as ações principais do felino Rodilardo, a preocupação dos ratos e a reunião em que discutem uma possível solução para o problema. Notamos que, na conclusão do parágrafo, o autor indica que o debate entre os roedores não permitiu a execução da solução. Dessa maneira, ele deixa “um gancho” para iniciar sua análise.
Em seguida, o candidato já expressa, no segundo parágrafo, a ideia central da fábula de La Fontaine de forma eficiente. Para aprofundar sua análise, o autor opta por outra estratégia eficaz: relacionar a moral do texto-base a uma questão de temática análoga, exatamente como orientava a proposta. A situação exemplo trabalhada é bem pertinente, uma vez que envolve um problema cuja solução incita o debate de uma comunidade. O candidato indica, coerentemente, que pouco adianta o debate se as ações práticas não forem executadas. Nesse sentido, ele estabelece uma clara relação entre a moral de La Fontaine e a questão contemporânea ilustrativa.
Na conclusão, o candidato explicita eficazmente a relação entre a ideia central de seu exemplo e a da fábula, enfatizando a moral trabalhada por La Fontaine. Notamos ainda que é feita uma metáfora interessante entre a expressão “sair da toca” e tomar providências, o que valoriza o fechamento do texto. É importante ressaltar a assinatura do texto sob um pseudônimo, algo requisitado pela proposta. Aqui, o candidato pode ter feito uma brincadeira com dois grandes nomes da nossa literatura: Érico Veríssimo e Machado de Assis.
REDAÇÃO 2
Como as emoções podem ser despertadas?
Todas as nossas emoções são provocadas por classes de circunstâncias conhecidas como indutores de emoções. É o que revela o livro “O sentimento de si: corpo, emoção e consciência” do neurocientista António Damásio. Segundo o pesquisador, os indutores são toda sorte de objetos e acontecimentos que estão ligados a um determinado sentimento. Este, por sua vez, é formado de duas formas: quando experimentamos objetos e situações por meio dos nossos sentidos – por exemplo, ao vermos um rosto de uma pessoa familiar –, ou quando, em nosso pensamento, lembramos desses objetos e situações e os visualizamos internamente como imagens – a exemplo, a lembrança do semblante de um amigo ou a ocasião de seu falecimento.
O autor ainda evidencia que esses indutores são externos aos seres humanos. Sendo assim, cada um pode, mesmo sem ter plena consciência disso, associar emoções a certas ocorrências e coisas que, normalmente, não induziriam sentimentos. Suponhamos que, ao caminhar pela rua, você encontra uma praça muito semelhante àquela em que passou e ainda passa uma juventude muito feliz. Essa associação certamente lhe despertará felicidade. Por outro lado, se, em uma multidão, você, por acaso, vê uma pessoa parecida com um (a) antigo (a) namorado (a), cujo relacionamento lhe trouxe muitas mágoas, pode ser que você se sinta tomado pela angústia que caracterizava sua relação, embora, talvez, você não perceba o porquê disso. Assim, os indutores manifestam-se de diversas maneiras na vida cotidiana.
O impacto desse contínuo processo, que atribui valor sentimental a vários objetos, é a multiplicidade e a multiplicação imensa da quantidade de indutores, que despertam emoções. Os sentimentos são, explica o autor, uma resposta evolutiva a situações que nos foram impostas para a sobrevivência nas mais variadas formas. Dessa maneira, faz todo sentido concluir que alguns indutores podem atuar em maior grau que outros. Fato é que, assim como constatam as descobertas sobre os processos de indução, o ato de sentir é um mecanismo biológico que está sempre presente no comportamento humano, seja de forma consciente, seja de forma inconsciente.
ANÁLISE
ESTRATEGIAS E ESCOLHAS PERFEITAS
Neste texto, observamos desde a introdução a adequação ao gênero solicitado e à situação esperada.
Aproximando-se da estrutura de um texto dissertativo-expositivo, o autor inicia seu texto trazendo a apresentação do tema do livro sobre a indução das emoções, de António Damásio. O candidato opta por oferecer, nesse trecho, uma definição dos indutores, uma estratégia muito eficaz. Para ilustrar sua explicação, ele dialoga com alguns exemplos, assim elucidando a concepção da ideia principal.
O segundo parágrafo mantém a elucidação sobre a temática, trazendo uma explicação sobre termos ou não consciência da indução de emoções. Seguindo uma estrutura eficaz, o autor apresenta a ideia central na proposição do neurocientista, e, em seguida, articula dois exemplos ilustrativos, a partir dos quais reforça a noção sobre a indução não ser necessariamente consciente. O fechamento do parágrafo, indicado pela conjunção “assim”, é também eficiente, concluindo o raciocínio principal.
Um ponto alto do texto é a quantidade de exemplos de situações reais que o candidato traz, o que ilustra as ideias centrais do tema, garantindo uma leitura mais completa e elucidativa. Notamos também que o autor mantém uma adequação eficaz no que tange à linguagem esperada: há certa formalidade – coerente ao gênero da dissertação expositiva –, porém ela está suavizada pelo uso mais pessoal da 1ª pessoa do plural, aproximando o emissor do texto do leitor, um mecanismo muito pertinente se pensarmos que o canal da produção seria um blog. O autor da redação, mais uma vez, acertou na estratégia de escrita.
Para concluir, a opção do candidato – em vez de resumir as principais ideias – foi finalizar o raciocínio exposto pelo autor do livro sobre o efeito das induções no nosso cotidiano e sua associação com os sentimentos. Tal estratégia é coerente ao gênero dissertativo-argumentativo, no qual a conclusão reúne as considerações finais sobre o argumento central. Nesse sentido, o candidato oferece ao “leitor do blog” uma noção sobre a temática do livro de Damásio, informando e incitando-o a pesquisar mais sobre o assunto.
Percebemos que o candidato preocupou- -se em mostrar que a emoção que sentimos relaciona-se a uma reflexão sobre o que somos e o que pensamos.