Estante: 8 Dicas culturais: Filmes, HQs e fotografias sobre temas de atualidades
Sem perder a ternura
Samba aborda a situação dos migrantes na França com leveza e descontração

É possível abordar um tema tão grave quanto a situação dos imigrantes na Europa de forma leve e descontraída? O filme francês Samba mostra que sim. Dirigido por Oliver Nakache e Eric Toledano, os mesmos da comédia de sucesso Intocáveis, a obra tem a rara qualidade de equilibrar drama e comédia – além de generosas doses de romance – sem desviar o foco do tema principal: a vida de um migrante na França.
O protagonista do filme é Samba Cissé, um senegalês que mora ilegalmente em Paris há dez anos. Ele sobrevive de pequenos bicos e subempregos, enquanto tenta obter um visto de permanência legal no país. Ao ser preso pelo serviço migratório, Samba recebe a ajuda de uma ONG que auxilia os imigrantes ilegais na França. Uma das voluntárias é Alice, uma executiva afastada do trabalho por estresse. Quando Samba sai da prisão, recebe a ordem para deixar o país, mas ele decide ficar na França e é ajudado por Alice para permanecer em Paris.
Ao acompanhar as agruras de Samba na capital francesa, testemunhamos com um olhar privilegiado as complicadas situações às quais os imigrantes ilegais são submetidos para conseguir permanecer – e sobreviver – na Europa. Samba vive de favor com um tio, que conseguiu o principal objeto de desejo dos imigrantes – um visto de residência permanente. Sem isso, Samba se vira para conseguir documentos falsos e poder se candidatar a alguma vaga de trabalho. E mesmo quando arruma alguns bicos, são trabalhos precários, que vão desde separador de lixo a limpador de janelas nos arranha-céus parisienses.
O filme também não deixa de explorar o sentimento de exclusão pelo qual passam os imigrantes nas grandes cidades europeias. Ao seguir os passos de Samba pelas ruas parisienses acompanhamos a sua tensão ao dobrar cada esquina diante da possibilidade de ser pego novamente pela polícia. Já no vagão do metrô, Samba é alvo de olhares desconfiados dos franceses, o que denuncia algumas atitudes xenófobas,ainda que veladas. No entanto, na maior parte do filme, essa carga dramática passa por um filtro cômico e romântico que suaviza a tensão vivida pelo protagonista. Em boa medida, o mérito dessa fórmula está na forma como o roteiro conduz a interação de Samba com outros personagens. As situações compartilhadas entre Samba e Wilson, um imigrante “brasileiro”, rendem boas risadas. Já a atração mútua entre o protagonista e Alice, a voluntária da ONG, confere ao filme uma leveza, ainda que abuse um pouco do clichê romântico “os opostos se atraem”.
Ao tratar da complexa situação dos imigrantes na Europa e da difícil integração em uma sociedade pouco afeita à aceitação de estrangeiros vindos da África, o filme toca em uma ferida muito exposta no continente. Pelo tema, bastante atual, o filme já seria uma boa dica para quem vai prestar o vestibular. Ao conseguir fazer a crítica social sem soar excessivamente sisudo ou panfletário além da conta, o filme torna-se ainda mais atraente.
Samba
direção | Oliver Nakache e Eric Toledano ano | 2014
A realidade nua e crua dos refugiados
Em Dheepan – O Refúgio, um homem, uma mulher e uma criança do Sri Lanka tentam se adaptar à vida na França

A vida dos refugiados na Europa vem sendo explorada com muita frequência pela cinematografa francesa nos últimos anos. Além de Samba, outro filme recente que aborda o tema com bastante propriedade é Dheepan – O Refúgio. Mas se o primeiro aposta em uma narrativa mais leve e descontraída, o segundo prefere uma dramatização mais nua e crua da situação dos migrantes.
O protagonista do filme é Dheepan, um membro do grupo Tigres de Libertação da Pátria Tâmil, uma milícia do Sri Lanka que, entre 1983 e 2009, enfrentou as tropas do governo em uma luta separatista no norte e no leste do país. Quando a guerra termina com a derrota de seu grupo, ele se une a uma mulher desconhecida e uma criança órfã, fingindo constituir uma família para tentar um visto de permanência na França.
Ao chegar em Paris, os três passam a viver juntos, como uma verdadeira família. Dheepan consegue um trabalho como zelador de um conjunto habitacional no subúrbio da capital francesa. O condomínio é barra-pesada, dominado por gangues de tráfico de drogas. A mulher passa a cuidar de um idoso doente, onde também vive um traficante que acaba de sair da prisão. Enquanto isso, a garota tenta se integrar entre os colegas na escola e aprender o novo idioma.
A trama se desenvolve em torno desse falso núcleo familiar. A tentativa dos dois adultos que mal se conhecem em se adaptar a uma difícil convivência e tentar ajudar na criação de uma garota órfã confere um desafio a mais na vida desses refugiados. Além disso, o fato de os três viverem na periferia em meio à violenta disputa entre traficantes torna a situação ainda mais extrema.
Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2015, Dheepan tem como principal mérito equilibrar a delicadeza do drama familiar desses refugiados com a crueza da guerra entre as gangues. Sob um registro que muitas vezes beira o documental, o filme é um ótimo complemento ao extrovertido Samba como estudo da crise migratória na Europa.
Dheepan – o Refúgio
direção | Jacques Audiard ano | 2015
A ditadura em traços críticos
Duas obras com fatos e horrores da ditadura militar, em charges e quadrinhos

As histórias reais de estudantes, militantes políticos, guerrilheiros e líderes rurais e indígenas presos, torturados e mortos por agentes e militares da ditadura (1964-1985) ganham no livro Notas de um Tempo Silenciado uma narrativa jornalística em quadrinhos, com texto e desenhos de Robson Vilalba.
São 13 histórias curtas, reconstruídas após um extenso trabalho do autor em entrevistas com sobreviventes, amigos e familiares das vítimas, autores de biografas, historiadores e pesquisas para conseguir, inclusive, fotos para desenhos realistas dessas pessoas. As primeiras oito histórias reportadas por Vilalba foram originalmente publicadas na série Pátria Armada Brasil, no jornal Gazeta do Povo, de Curitiba. Elas receberam o prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos 2014, organizado pelo Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo.
Para este livro, porém, o autor acrescentou outras cinco produções, com destaque para o avanço agressivo dos militares sobre as terras indígenas, a criação de um presídio para indígenas e de uma guarda rural indígena pela Fundação Nacional do Índio (Funai) treinada para torturar líderes dos índios. Um capítulo final (Salvadores da Pátria) resgata o histórico dos golpes como uma herança maldita dos militares, iniciada com a Proclamação da República até chegar ao golpe de 1964, e sua influência do positivismo. A obra é enriquecida com uma reportagem sobre a eclosão do movimento negro Black Music nos anos de 1970 no Rio de Janeiro e a repressão a alguns de seus expoentes, além de inúmeros depoimentos sobre cada história revelada, entre os quais o da psiquiatra Maria Rita Kehl, que integrou a Comissão Nacional da Verdade.
Já o arquiteto e artista plástico Luiz Gê aborda o tema com bastante ironia em seu livro Ah, Como Era Boa a Ditadura. A obra traz charges publicadas pelo no jornal Folha de S.Paulo a partir de 1981, sobre fatos políticos, econômicos e sociais do último governo militar, o do general João Baptista de Oliveira Figueiredo. Luiz Gê explora fatos como a explosão da dívida externa, a derrocada econômica e a chamada estagflação(estagnação econômica simultânea a desemprego com taxas de inflação estratosféricas) – resultado da submissão dos militares à imposição de políticas recessivas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) –, as armações políticas que impediram a volta de eleições diretas para a Presidência já em 1985 e os personagens políticos daqueles anos.
Textos introdutórios no livro, e na abertura de cada ano, situam o leitor mais jovem sobre fatos e aspectos do período para ajudar a entender a ironia das charges. Além de um texto conclusivo, Luiz Gê agrega uma galeria dos principais personagens, em que revela seu talento para fazer caricaturas.
notas de um tempo silenciado
autor: Robson Vilalba
Editora BesouroBox, 103 páginas
ah, como era boa a ditadura
autor: Luiz Gê
Editora: Quadrinhos na Cia. (Companhia das Letras), 288 páginas
O polêmico Irã em foco
HQs belas e emocionantes abordam a opressão sofrida pelo povo iraniano

O Irã é um dos protagonistas do cenário global, sobretudo desde a Revolução Islâmica de 1979. Sua importância econômica vem do fato de que possui uma das maiores reservas mundiais de petróleo. Politicamente, o país é um dos líderes do mundo islâmico, em tensão com os Estados Unidos e os países ocidentais há mais de três décadas. Em anos recentes, vive em constante tensão interna e externa. Esse cenário convulsionado é o pano de fundo de duas excelentes histórias em quadrinhos feitas por iranianos que ganharam destaque mundial.
Persépolis, a autobiografia em quadrinhos de Marjane Satrapi, narra a história do país dos anos 1970 até a década de 1990, passando pela Revolução de 1979 – que derrubou a ditadura pró EUA do xá Reza Pahlevi e implantou a atual república islâmica. Na narrativa de Satrapi, publicada no Brasil em 2007, é como se o povo iraniano tivesse pulado da frigideira para o fogo.
Marjane tinha 10 anos quando se viu obrigada a usar véu e a estudar em uma sala de aula só de meninas. Era o resultado do Estado religioso erguido no país, com sua atmosfera sufocante e autoritária. Persépolis aborda, com humor leve e irônico, o dia a dia opressivo dos iranianos, convivendo com torturas, assassinatos, pressão nas escolas e a guerra contra o Iraque (1980-1988).
O impacto da obra lhe conferiu repercussão mundial e muitas premiações. Persépolis foi escolhida a melhor história em quadrinhos de 2004 na Feira de Frankfurt. Sua versão cinematográfica venceu o prêmio do júri no Festival de Cannes de 2007.
Mais recentemente, os leitores brasileiros puderam ver O Paraíso de Zahra, publicado em 2011, cujos autores são anônimos, com pseudônimos de Amir e Khalil. Trata-se de um retrato candente da sociedade iraniana, em um momento recente: o Movimento Verde, em 2009, em que milhares de pessoas tomaram a Praça da Liberdade, em Teerã, acusando de fraude as eleições que reconduziram o então presidente Mahmoud Ahmadinejad ao cargo. Mais de 70 pessoas foram mortas pela polícia e 4 mil foram presas.
A história começa com o desaparecimento do estudante Mehdi Alavi, de 19 anos, nos protestos. Sua mãe, Zahra, e seu irmão, Hassan, vão à praça e ficam sabendo da violenta repressão. Começam então uma angustiante busca, que se estende por semanas, pelos labirintos de hospitais, repartições públicas e prisões – em busca de Mehdi. É uma viagem pelas entranhas do regime chefiado pelos aiatolás.
O Paraíso de Zahra é uma obra em quadrinhos prodigiosa, magnificamente desenhada, que fala muito da realidade do Irã, complementando a história de turbulências e instabilidades retratada em Persépolis. Juntas, as publicações atuam como registro da luta permanente pela liberdade em um país marcado pela opressão.
PerséPolis
AUTOR:Marjane Satrapi
EDITORA: Companhia das Letras, 352 páginas
o Paraíso de Zahra
AUTOR: Amir & Khalil
EDITORA: Leya, 272 páginas
Imagens que revelam o lado humano dos problemas globais
Fotos premiadas no World Press Photo de 2016 mostram o sofrimento de quem é obrigado a fugir de guerras e perseguições
Em 2015, mais de 1 milhão de migrantes e refugiados chegaram à Europa cruzando as águas do Mar Mediterrâneo. Outros 3,5 mil não conseguiram fazer a travessia e morreram afogados na tentativa de chegar ao Velho Continente. Mais da metade dos migrantes vêm da Síria, fugindo da brutal guerra civil que devasta o país desde 2011.
Mas esses números, ainda que importantes e alarmantes, são incapazes de revelar o drama particular dessas pessoas que deixam tudo para trás e se arriscam em viagens perigosas para tentar reconstruir suas vidas. Em contraposição, as imagens, muito mais que indicadores e estatísticas, conseguem revelar o lado humano da crise dos refugiados e tentam nos aproximar da dura realidade vivida por eles.
Desde 1955, a Fundação World Press Photo (WPP) realiza uma premiação internacional para escolher as melhores fotos jornalísticas do ano. A imagem que você vê acima é a grande vencedora deste ano na premiação da WPP. Ela mostra um homem passando um bebê para outra pessoa por baixo de uma cerca de arame farpado.
A imagem foi registrada pelo fotógrafo australiano Warren Richardson no dia 28 de agosto de 2015, na fronteira entre a Sérvia e a Hungria. Os dois países fazem parte da rota que milhares de migrantes vindos do Oriente Médio tentaram cruzar, cujo destino final era a Alemanha. Segundo Richardson, que acampou com os refugiados, essas pessoas tentavam chegar à Hungria antes que a cerca de segurança estivesse concluída.
O que mais impressiona na foto é a força que a imagem em preto e branco transmite, mesmo com poucos elementos. No rosto do homem é possível perceber a tensão e a ansiedade do momento. O bebê nos remete ao sofrimento das crianças que são obrigadas a deixar seus lares sem entender direito por quê. Por fim, a cerca de arame farpado tem o poder de simbolizar as restrições a que os refugiados são submetidos e as barreiras que precisam superar.
Imagens de desespero
A imigração é um assunto que tem aparecido com frequência nos vestibulares, e a leitura e a interpretação de fotos como a vencedora do concurso da WPP podem ajudar bastante no estudo de atualidades.
Na premiação de 2016, tiveram bastante destaque as imagens da guerra civil na Síria e a fuga dos refugiados das áreas de conflito. A foto acima, do fotógrafo sírio Abd Doumany, mostra uma garota ferida em um bombardeio realizado pelo governo da Síria. Ao lado, a imagem captada pelo russo Sergey Ponomarev revela a situação dos migrantes que se amontoam em pequenas embarcações para chegar à Grécia.
A ROTA ATÉ A EUROPA: Na guerra entre o regime sírio, rebeldes e extremistas, a população fica no meio de um violento fogo cruzado. Acima, a imagem mostra uma garota síria ferida em bombardeio das forças do governo, em tratamento em um hospital improvisado na cidade de Douma. Muitas pessoas não suportam a situação e decidem abandonar o país, como mostra a imagem abaixo de uma pequena embarcação chegando à vila de Skala, na Ilha de Lesbos, na Grécia. Já a foto premiada, na página ao lado, revela os obstáculos que os refugiados recém-chegados à Europa são submetidos para conseguir recomeçar suas vidas. Divulgação: Word Press Photo 2016
Mas a premiação da WPP não ficou restrita ao tema dos refugiados. Outras imagens vencedoras abordam grandes desafos do mundo contemporâneo, como o aquecimento global, a epidemia de ebola, a violência contra a mulher e a exploração do trabalho infantil.
No site da WPP, você pode conferir todos os premiados desta edição: https://www.worldpressphoto.org/collection/photo/2016.