Escravidão moderna expõe precarização no mundo do trabalho
De janeiro a agosto de 2023, foram resgatadas mais de 2.500 pessoas de condições análogas à escravidão em todo o Brasil
por Cadu Bazilevski
Causou impacto em todo o país, em fevereiro de 2023, uma notícia que remete às relações de trabalho do século 19, mesmo vinda de um dos setores econômicos que combinam a moderna tecnologia com a alta sofisticação: foram libertadas mais de 200 pessoas em condições análogas à escravidão trabalhando em vinícolas no Rio Grande do Sul.
Fiscais do trabalho desmontaram, na noite de 22 de fevereiro de 2023, um esquema de trabalho forçado na colheita de uvas em Bento Gonçalves (RS). Os trabalhadores haviam sido contratados pela empresa Fênix Serviços Administrativos para prestar serviços para as vinícolas Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton – que estão entre as principais produtoras de vinhos do Brasil.
As denúncias chegaram ao Ministério do Trabalho e Emprego por meio de pessoas que conseguiram fugir do local, ultrapassando a vigilância dos seguranças, e foram confirmadas pelas investigações. Os trabalhadores eram obrigados a cumprir jornadas de até 16 horas diárias, viviam em alojamentos precários, eram levados a contrair dívidas que os empregadores utilizavam para retê-los, e chegaram a receber choques elétricos.
As vinícolas negaram conhecer as condições abusivas dos trabalhadores e responsabilizaram a empresa prestadora do serviço. O responsável pela empresa terceirizada, Pedro Augusto Santana, chegou a ser preso, mas foi liberado em seguida após pagar fiança. Em abril, o Ministério Público do Trabalho assinou um termo de ajuste de conduta (TAC) com as três vinícolas. Pelo acordo, elas pagarão uma indenização de R$ 5 milhões por danos morais coletivos e de R$ 2 milhões por danos individuais aos trabalhadores. Além disso, comprometem-se a seguir regras para garantir condições dignas de trabalho em suas dependências.
Escravidão moderna
Infelizmente, o flagrante na serra gaúcha não é um caso isolado: 135 anos depois da abolição da escravidão no país (realizada em 13 de maio de 1888), a chamada “escravidão moderna” ainda se mantém como uma chaga persistente em nosso país. De janeiro a agosto de 2023, foram resgatados mais de 2.500 trabalhadores em condições análogas à escravidão em todo o Brasil.
A escravidão moderna está descrita no artigo 149 do Código Penal (“reduzir alguém à condição análoga à de escravo”) e se caracteriza por uma das seguintes características: trabalho forçado – com restrição ao direito de ir e vir –, condições degradantes de trabalho (como fornecimento de alojamentos imundos, às vezes sem banheiro, e alimentação estragada) e jornada exaustiva. A imposição de condições de cárcere pode ser feita com a sujeição do trabalhador a dívidas. Por exemplo, no caso das vinícolas, os trabalhadores foram recrutados na Bahia e vieram de ônibus até o Rio Grande do Sul. Quando chegam, sem saber, já estão em dívida com o contratante. Aí, como a comida oferecida é de péssima qualidade, são obrigados a comprar fiado na venda do contratante, que cobra preços abusivos, com o objetivo de criar uma “servidão por dívida”. Com frequência, os documentos dos trabalhadores são retidos, de modo a mantê-los presos, submetidos a jornadas exaustivas, com tempo de sobra apenas para comer e dormir.
Em 2023, talvez pela mudança política operada no Brasil, o resgate de pessoas em situação análoga à escravidão subiu e voltou ao patamar de mais de dez anos antes. Aumentou o número de denúncias, e cresceram as operações articuladas entre diversos órgãos, como o Ministério do Trabalho, o Ministério Público, a Defensoria Pública da União, a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal. Os estados com maior número de trabalhadores libertados em 2023 foram Goiás, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e São Paulo. Em sua maior parte, os casos ocorreram na zona rural.
Em 2022, haviam sido libertados 2.575 trabalhadores: o perfil majoritário é de homens (mais de 90%), pretos ou pardos (mais de 80%), oriundos do Nordeste (mais de 50%). Entre eles, havia 148 estrangeiros (na maioria paraguaios) e 35 crianças ou adolescentes.
Nos últimos anos, houve uma discrepância entre o número de denúncias, que aumentaram, e a quantidade de resgates de trabalhadores, que diminuíram. Em entrevista a respeito do assunto ao portal UOL (7/3/2023), o procurador do trabalho Italvar Medina afirmou que houve “redução de fiscalizações de rotina” por falta de fiscais do trabalho, pois “não é feito concurso público desde 2013, e há mais de 1.500 cargos vagos, o que representa quase 50% do total de cargos”. Em junho de 2023, o governo federal anunciou que abrirá concurso para ocupar 900 cargos para fiscais no próximo período, visando recompor parcialmente o quadro de fiscalização.
Cenário internacional
O trabalho análogo à escravidão não é um mal só do Brasil, mas presente em várias partes do globo, e que vem se agravando nos tempos recentes. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), 50 milhões de pessoas no mundo são vítimas da escravidão moderna. Relatório da OIT de setembro de 2022 registra que o número de seres humanos submetidos à escravidão moderna “aumentou consideravelmente nos últimos cinco anos”. A estimativa é que, em 2021, havia um acréscimo de 10 milhões de pessoas “em situação de escravidão moderna em comparação com as estimativas de 2016”, sendo que crianças e mulheres “continuam sendo desproporcionalmente vulneráveis”.
A OIT alerta para “a presença da escravidão moderna em quase todos os países do mundo”. De acordo com a organização, “a escravidão atravessa fronteiras étnicas, culturais e religiosas”. Para a OIT, considerando o cenário mundial, com suas diferentes sociedades e culturas, “a escravidão moderna consiste em dois componentes principais: trabalho forçado e casamento forçado. Ambos se referem a situações de exploração nas quais a pessoa não pode se recusar ou ir embora devido a ameaças, violência, coerção, engano ou abuso de poder”. O relatório também destaca que os imigrantes são mais suscetíveis à escravização – pois estão com frequência distantes de suas famílias, sem laços protetivos, em lugares com línguas ou culturas que não dominam. No mundo, os tipos de escravidão moderna incluem o trabalho forçado, o tráfico de seres humanos, a servidão por dívida, a exploração infantil, o casamento forçado, a exploração sexual comercial e a servidão doméstica. Em sua fala de despedida do cargo de diretor-geral da OIT, em setembro de 2022, o britânico Guy Ryder disse que “é chocante que a situação da escravidão moderna não esteja melhorando. Nada pode justificar a persistência dessa violação fundamental dos direitos humanos”. Ryder declarou ainda: “Sabemos o que precisa ser feito e sabemos que pode ser feito. Políticas e regulamentações nacionais eficazes são fundamentais.”
Para os especialistas, o combate à escravidão moderna, exige políticas de proteção a populações vulneráveis, campanhas públicas de conscientização, além de cooperação internacional, legislações específicas e fiscalização do Estado em todas as suas esferas (municipal, estadual e federal).
Relações de trabalho
As situações de trabalho análogo à escravidão são extremas, mas a sua persistência evidencia questões ligadas à precarização do trabalho. O mundo do trabalho é um termo amplo e se refere às atividades e ao ambiente em que as pessoas ganham o seu sustento por meio de um emprego ou uma ocupação profissional, que pode ser de caráter braçal, intelectual ou artístico. O conceito compreende todas as possibilidades da vida profissional, incluindo trabalho autônomo, em empresas (públicas e privadas), empreendedorismo, órgãos estatais e organizações sem fins lucrativos. Ao longo da história, as relações de trabalho passam por mudanças que acompanham os diferentes modelos sociais de produção, sofrendo os impactos dos avanços tecnológicos, das inovações nas práticas de comércio, além das mudanças demográficas e sociais. O desenvolvimento tecnológico aumenta a produtividade do trabalho, e pode resultar na melhoria de vida das pessoas (por exemplo, reduzindo a jornada de trabalho) ou na precarização (por exemplo, vigiando por câmeras as pessoas em escravidão moderna). Em termos de relações sociais, a tecnologia não é determinante: possibilita avanços sociais, mas eles não são garantidos.
As relações de trabalho são reguladas por leis: por tratados internacionais que o Brasil assina, pela Constituição federal e por leis específicas. As leis trabalhistas no Brasil estão reunidas, desde 1943 (governo Getúlio Vargas), num arcabouço específico chamado CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). Desde então, as leis foram sistematicamente reformadas e modernizadas. Atualmente, são bem diferentes das de décadas atrás, e estão em constante mudança.
Reforma Trabalhista
A legislação trabalhista no Brasil foi bastante modificada com as mudanças feitas no governo de Michel Temer (MDB, vice de Dilma Roussef, do PT, que assumiu após o impeachment da presidente, em 2016). Em 2017, foram aprovadas no Congresso importantes mudanças nas relações de trabalho com a Lei da Terceirização e a Reforma Trabalhista.
A terceirização do trabalho ocorre quando uma empresa contrata outra para a execução de serviços específicos. Até 2017, só era permitida a terceirização de trabalhos que não fossem ligados à atividade-fim da empresa. Por exemplo, numa fabricante de veículos, podia-se contratar empresas terceirizadas para os serviços de vigilância, limpeza e alimentação dos funcionários, mas não para a linha de produção.
Isso mudou a partir da aprovação de Lei da Terceirização (Lei 13.429/17), que entrou em vigor em março de 2017. No exemplo que abre esse texto, a empresa terceirizada recrutou trabalhadores na Bahia para a colheita de uva na serra gaúcha, nos parreirais das três vinícolas envolvidas. Antes da nova lei, as próprias vinícolas teriam de contratar diretamente os trabalhadores para o período da colheita, mesmo com vínculos temporários.
Alguns meses depois, em novembro de 2017, a Reforma Trabalhista alterou profundamente a CLT, retirando várias garantias e proteções existentes para o trabalho assalariado. Sua espinha dorsal é a fórmula do “negociado sobre o legislado”, ou seja, a disposição de que as negociações feitas por sindicatos podem se sobrepor, em vários casos, ao que está na lei. Para entender: até a reforma, acordos sindicais podiam fixar condições melhores do que as previstas em lei (por exemplo, estabelecer um 14º salário), mas não piores do que a lei (como por exemplo reduzir salários). Depois da reforma, há autorização para se negociar vários pontos abaixo da lei. Há também a previsão de que a empresa pode tratar diretamente com cada trabalhador (sem negociação coletiva) questões como banco de horas (ou seja, a compensação de horas extras por folgas em até seis meses, sem haver o pagamento).
De modo geral, o setor empresarial foi defensor das duas mudanças legais aprovadas no Congresso e sancionadas por Temer. Os principais argumentos eram cortar custos das empresas e reduzir o desemprego.
Passados seis anos, não há melhora significativa no nível de emprego (veja adiante), e ocorre um aumento da precarização no mercado de trabalho, atingindo inclusive setores de ponta da economia. O advogado Nassar Alan, ouvido pelo portal Nexo, aponta que o percentual de informalidade da população ocupada mantém-se na casa dos 40%, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), e que houve uma queda significativa no rendimento médio dos trabalhadores. A informalidade, ou trabalho informal, é o trabalhador remunerado do setor privado que não tem seu vínculo formalizado em carteira de trabalho – sendo assim desprovido dos direitos trabalhistas.
Com a chegada do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em 2023, as mudanças legais feitas nas relações de trabalho, notadamente a Lei das Terceirizações e a Reforma Trabalhista, voltaram ao debate público, e você pode acompanhá-lo pelo noticiário.
Emprego e salários
A medição do índice de desemprego de uma população não é simples, e pode haver vários critérios. Por exemplo, uma pessoa que perdeu o emprego e decidiu ficar em casa por um período está desempregada? Depende do critério. O IBGE considera desempregado quem não tem trabalho e procurou emprego nos 30 dias anteriores à semana de realização da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), que apura essa informação. O resultado é a porcentagem de pessoas sem ocupação remunerada em relação à população economicamente ativa – ou seja, a população em idade produtiva (até 65 anos), com condições e disposição de trabalhar, e a procura de trabalho.
Em 2023, a taxa média de desemprego no Brasil caiu a 8,8% no primeiro trimestre (janeiro, fevereiro e março), ficando um pouco acima do período de 2012 a 2015 (antes da Reforma Trabalhista). Durante o governo de Jair Bolsonaro (PL) e após a pandemia de Covid-19 (iniciada em março de 2020), o Brasil registrou a maior taxa de desemprego da série histórica da Pnad Contínua (veja a tabela abaixo). Em pesquisa divulgada pelo IBGE referente ao segundo trimestre de 2023 (abril, maio e junho), o Brasil registrou um total de 98,9 milhões de pessoas com ocupação, o que representa um crescimento de 0,7% em relação ao mesmo período do ano anterior. Houve uma estabilização de empregados sem carteira assinada, frente a um crescimento de 2,8% de empregados registrados em carteira. As pessoas que desistiram de procurar emprego, seja por falta de condições ou problemas de saúde, os chamados desalentados, são em torno de 3,7 milhões de brasileiras e brasileiros, segundo a pesquisa. Um ano antes, este grupo era formado por 4,2 milhões de pessoas. E em 2014, o patamar era bem menor: 1,5 milhão de pessoas.
No cenário pós-pandemia, há ainda uma perda significativa de renda da população ocupada. A renda média mensal dos trabalhadores, segundo o IBGE, caiu de R$ 3.135 no primeiro trimestre de 2020 para R$ 2.935 no segundo trimestre de 2023. Considerando-se ainda a inflação pouco acima de 25% neste período, tem-se uma ideia do tamanho desta perda.
Especialistas apontam uma expansão da mão-de-obra pouco qualificada, aliada a um crescimento acelerado da inflação, como explicações para esse fenômeno. A retomada da política de aumento real do salário mínimo pelo novo governo federal, somada à queda da inflação em 2023 e a um possível novo ciclo de crescimento econômico, podem levar a um aumento do rendimento médio dos trabalhadores no próximo período. A conferir.
Cresce a “uberização” do trabalho
Em seu contato com o tema do emprego, talvez você já tenha ouvido o termo “uberização” do trabalho, que vem sendo usado cada vez mais nos últimos anos. Ele se refere a um novo modelo de trabalho gerenciado por aplicativos, pelo qual a pessoa trabalha e recebe por demanda, sem horário fixo e sem vínculo de emprego formal. O nome faz referência direta à Uber, plataforma de transporte individual que emergiu concorrendo com o serviço de táxi, e é usado para simbolizar essa nova relação de trabalho.
A uberização é apresentada como uma forma de trabalho resultante do desenvolvimento tecnológico que dá liberdade ao prestador de serviço para escolher seus horários, fazendo dele sua ocupação principal ou uma atividade para completar a renda – como faz parte dos motoristas de aplicativos, em horários complementares aos seus empregos. Nessa lógica, a plataforma seria apenas um serviço disponibilizado por uma empresa de tecnologia, cuja função seria fazer o cliente encontrar o prestador de serviço.
Para os críticos, porém, a mediação da plataforma busca ocultar uma relação de trabalho entre um empregador – a empresa detentora da plataforma – e seus funcionários – os prestadores de serviço –, pois os consumidores remuneram a plataforma, que fatura com o trabalho deles. Nessa visão, a uberização é uma forma de precarização das relações de trabalho.
Iniciada no setor de transportes e entregas, a uberização já avança para diversos segmentos no ramo de serviços, como o de faxina, limpeza de roupas, cozinha e jardinagem, entre outros.
Para os trabalhadores, o modelo traz várias dificuldades, pois a maioria não contribui com a Previdência Social, deixando de se preparar para a aposentadoria e ficando desprotegido em caso de acidente ou doença incapacitante.
Governo e Congresso debatem formas de regulamentar as relações de trabalho decorrentes da uberização. O ministro do Trabalho, Luiz Marinho, fez duras críticas ao modelo em janeiro de 2023: “Acompanhamos a angústia dos trabalhadores de aplicativos, que muitas vezes têm de trabalhar 14 horas, 16 horas por dia para poder levar pão e leite para casa. Isso, no meu conceito, beira o trabalho escravo”. O debate institucional deve prosseguir no próximo período.
A Espanha, por exemplo, aprovou uma legislação que estabelece a relação de emprego entre plataformas e trabalhadores e introduz direitos trabalhistas. Na decisão, houve o entendimento de que, mesmo que os trabalhadores sejam donos de seus veículos, eles prestam os serviços segundo as instruções dadas pelas empresas, que decidem os detalhes das condições de trabalho.