Evolução: Neodarwinismo
A evolução de uma ideia
A teoria da seleção natural – principalmente sua aplicação à evolução humana – causou furor na sociedade inglesa vitoriana. A ideia de que todos os seres vivos teriam surgido de um único ancestral comum, nos primórdios da história da Terra, desencadeou uma série de debates e rendeu críticas, sátiras e charges nos jornais. Foi um escândalo numa sociedade imperialista, de rígida divisão em classes sociais, que valorizava a superioridade europeia sobre os povos colonizados e os preceitos religiosos, fixistas, por princípio.
Entre 1882 (data de morte de Darwin) e 1930, a teoria da seleção natural passou por maus momentos entre os biólogos. O naturalista inglês não apresentara nenhuma explicação para o modo como as características de um organismo eram transmitidas para as gerações seguintes. Nem ele – nem ninguém à sua época – tinha tomado conhecimento do trabalho de Gregor Mendel. Até que, em 1942, conhecedor das ervilhas mendelianas, o biólogo também inglês Julian Huxley (1887-1975) incorporou à teoria darwiniana o papel dos genes. Nasceu, assim, o neodarwinismo, ou teoria sintética. Hoje, a teoria de Darwin há muito não é encarada como especulação. É um sistema ordenado de ideias, que passaram por diversos testes e confrontações com a realidade (como o estudo de fósseis), e tudo indica que ela se confirma.
PASSADO EM COMUM Semelhanças morfológicas indicam: as aves descendem de dinossauros
Genes e mutações
O neodarwinismo traz duas alterações importantes. A primeira é que a herança de um indivíduo não vem do sangue, como acreditava Darwin, mas do que o monge austríaco Gregor Mendel chamou de fatores, transmitidos pelos pais – o que hoje sabemos que são os genes. E, segunda, a evolução das espécies não depende somente da seleção natural, mas é influenciada, também, por alterações na estrutura bioquímica dos genes, ou seja, mudanças na sequência de bases nitrogenadas. Essas alterações podem ocorrer por problemas na duplicação do DNA ou serem induzidas por forças externas (ambientais), como raios ultravioleta, radioatividade ou contaminação por substâncias químicas.
As mutações genéticas são fenômenos aleatórios, que ocorrem sem que haja nenhuma orientação do meio ambiente. O fato de um organismo viver na Antártica não aumenta a probabilidade de que seus genes sofram uma mutação que aumente a defesa contra o frio. Mas se essa mutação ocorrer, o organismo terá uma vantagem sobre os demais indivíduos de sua população. Aí começa a girar a roda da seleção natural: o organismo bem-dotado sobrevive, reproduz-se e tem chance de transmitir para alguns de seus descendentes o gene contra o frio. Estes também sobreviverão, se reproduzirão e transmitirão o gene abençoado à prole. Assim, aos poucos, vão se alterando as características daquela população.
Em organismos complexos, de reprodução sexuada, a chance de uma mutação trazer uma característica positiva para determinado ambiente é muito pequena. Nesses organismos, as principais causas de variabilidade estão na própria fecundação, que implica a combinação do DNA do pai e da mãe. O indivíduo pode apresentar alterações, ainda, resultantes da meiose, a divisão celular para a formação dos gametas. A permutação¹, que ocorre no início da meiose, faz com que os espermatozoides (ou os óvulos) de um mesmo indivíduo carreguem grupos diferentes de genes. Por fim, a lei da segregação independente, de Mendel, permite que ocorram todas as combinações possíveis de cromossomos nos gametas. Isso também contribui para a variabilidade genética numa geração.
CADA UM USA COMO PODE Morcegos têm asas e, chimpanzés, patas. Mas ambos são mamíferos, e as asas e as patas têm a mesma origem, num ancestral comum aos dois. É a irradiação adaptativa que “deformou” as extremidades dos dedos do morcego e os transformou em asas [1 istock -2 darwin/reprodução]
Isolamento
A maneira como se explica o surgimento de uma nova espécie – processo chamado especiação² – também sofreu reformas no neodarwinismo. Darwin compreendeu que o isolamento geográfico era um dos grandes fatores que contava na especiação. Grupos de animais de mesma espécie separados por uma barreira geográfica, como um oceano ou uma grande cadeia de montanhas, são impedidos de cruzar e, assim, combinar suas características. Os animais que migram para o outro lado da barreira encontram um ambiente diferente – mais quente, menos úmido ou com outro tipo de predador – terão características “aprovadas” pela seleção natural, diferentes daquelas selecionadas nos animais que ficaram do lado de lá. Essas vantagens serão, na maioria das vezes, diferentes das características do grupo original. Após certo tempo de isolamento geográfico, se os descendentes dos grupos originais voltarem a se encontrar, pode não haver mais a possibilidade de reprodução entre eles. Nesse caso, dizemos que temos duas espécies. A especiação que ocorre por isolamento geográfico é chamada especiação alopátrica.
Hoje se sabe que, somado ao isolamento, a ocorrência de mutações casuais do material genético também leva ao aumento da variabilidade e permite a continuidade da atuação da seleção natural. Com as mutações genéticas, as espécies divergem mais rapidamente do que seria de esperar contando apenas com o isolamento geográfico.
Seja como for, o processo de especiação costuma colocar duas espécies em outro tipo de isolamento – o isolamento reprodutivo. Esse isolamento pode ocorrer por meio de mecanismos pré-zigóticos, ou seja, mecanismos que inviabilizam a cópula entre dois animais, como diferenças no comportamento reprodutor ou incompatibilidade na estrutura e tamanho dos órgãos reprodutores. Pode, também, ocorrer por mecanismos pós-zigóticos. Neste caso, a cópula ocorre, mas não gera descendentes ou gera descendentes estéreis.
Nem sempre, porém, grupos que se separam acabam entrando em isolamento reprodutivo, ou seja, nem sempre o isolamento geográfico resulta no surgimento de uma nova espécie. Tudo depende do tempo. Se as barreiras geográficas forem vencidas cedo demais, é possível que os componentes dos dois grupos tenham acumulado algumas variações, mas não o suficiente para impedir seu cruzamento e sua reprodução. Isto é, os dois grupos ainda pertencerão à mesma espécie. Essas variedades que não chegaram a transformar-se em novas espécies podem ser chamadas de raças geográficas. Uma mesma espécie pode ser formada por diversas raças geográficas, intercruzantes entre si, mas que apresentam características morfológicas distintas. As diferentes raças de cães são exemplos dessa condição.
Irradiação adaptativa
Há muitos indícios de que a evolução dos grandes grupos de seres vivos teve como ponto de partida um grupo ancestral, que deu origem a espécies diferentes, mas aparentadas. A partir de uma espécie primordial, pequenos grupos iniciaram a conquista de novos ambientes, sofrendo adaptações que lhes possibilitaram a sobrevivência nesses meios. Esse fenômeno evolutivo é conhecido como irradiação adaptativa. Para que a irradiação possa ocorrer, é necessário em primeiro lugar que os organismos já carreguem, em seu equipamento genético, as condições necessárias para a ocupação de um novo ambiente, que selecionará características presentes nos indivíduos mais adaptadas às novas condições.
Um dos melhores exemplos de irradiação adaptativa é o que ocorreu com os tentilhões de Galápagos estudados por Darwin. Originários do continente sul-americano, os tentilhões se irradiaram para diversas ilhas do arquipélago, cada grupo adaptando-se às condições peculiares de cada ambiente e, consequentemente, originando as diferentes espécies hoje lá existentes.
Nos processos de irradiação adaptativa ocorrem casos de homologia, ou seja, semelhança de origem entre órgãos semelhantes, que podem apresentar forma e funções diferentes em indivíduos de espécies distintas com um ancestral comum. Por exemplo, um macaco sul-americano e um cachorro são mamíferos e, como tal, tiveram um ancestral comum, de quem herdaram suas caudas. As caudas são, então, estruturas homólogas, mas não desempenham a mesma função. Já as asas de um beija-flor (ave) e as de um morcego (mamífero) são homólogas por terem a mesma origem e, ainda, desempenharem a mesma função. São, portanto, estruturas análogas. Órgãos análogos podem, também, ter origens distintas.
Convergência adaptativa
No sentido inverso da irradiação adaptativa, o processo de especiação pode levar à convergência adaptativa. Ocorre quando animais pertencentes a grupos de parentesco distante têm morfologia semelhante, não em razão da herança de um eventual ancestral em comum, mas da adaptação ao meio. Um tubarão e um golfinho, por exemplo, parecem parentes muito próximos, se considerarmos que ambos são animais aquáticos.
Mas os dois animais pertencem a grupos distintos. O tubarão é peixe cartilaginoso, respira por brânquias e tem nadadeiras com membranas carnosas. O golfinho é mamífero, respira por pulmões e suas nadadeiras escondem ossos semelhantes aos dos membros superiores dos mamíferos. A semelhança morfológica existente entre os dois não significa parentesco evolutivo. Foi a vida num mesmo meio – mar – que selecionou, nas duas espécies, a forma corporal ideal ajustada à água.
No processo de convergência adaptativa ocorrem casos de analogia pura, não acompanhados de homologia, que não envolvem parentesco entre os animais. Assim, as nadadeiras anteriores de um tubarão (peixe) são análogas às de um golfinho (mamífero), mas não são homólogas porque ambas são resultantes de uma evolução convergente (de grupos de animais distintos). E as asas de uma borboleta (artrópode) são análogas às asas de um pardal (ave) por desempenharem a mesma função.
Um caso específico de convergência adaptativa é o mimetismo, pelo qual um ser vivo assume a aparência de outro, ganhando uma vantagem competitiva. É o mimetismo que faz com que algumas borboletas tenham nas asas um padrão semelhante a grandes olhos. Ou que algumas plantas tenham um perfume desagradável, que lembra carne pobre, para atrair moscas, que farão a polinização. O mimetismo também ajuda na alimentação. A tartaruga-aligator, por exemplo, tem na língua um apêndice que lembra um verme, que serve de isca a pequenos peixes, que são devorados.
INTIMIDAÇÃO NATURAL Para um predador, os círculos escuros nas asas desta borboleta podem parecer olhos de um animal grande. Com isso, o inseto se protege de um eventual ataque. Formatos, padrões e cores que disfarçam ou enganam constituem o mimetismo
Deriva Genética
A deriva genética ocorre quando a frequência com que um alelo aparece numa população é alterada por um acontecimento aleatório, que não tem relação com a seleção natural – ou seja, a deriva ocorre ao acaso. E pode eliminar na população um alelo vantajoso, e manter outro, neutro ou deletério. Se morrerem muitos indivíduos que apresentam determinado alelo, a proporção desse alelo diminuirá na população.
Seleção natural em tempo real
Às vezes, os cientistas testemunham um episódio rápido de seleção natural. No fim dos anos 1970, um longo período de seca em Galápagos provocou uma mudança adaptativa numa das espécies de tentilhão: os Geopiza fortis passaram a nascer com bicos 10% maiores. A explicação: a seca tornou escassa a oferta de sementes pequenas e macias, a dieta tradicional da espécie. As aves de bico maior, capazes de comer sementes maiores e mais rígidas, sobreviveram e se reproduziram, transmitindo à sua prole essa característica.
¹Lembrando: a permutação, ou crossing-over, é a recombinação das cromátides dos cromossomos homólogos pareados, que faz um rearranjo dos genes.
²Existem diversas maneiras de definir uma espécie. A mais usual é aquela que estabelece como da mesma espécie um grupo de animais que cruza e resulta em descendentes férteis.