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Questão agrária: Menos reforma, mais violência

Questão agrária: Menos reforma, mais violência
CASA ABANDONADA – Moradia de uma das vítimas do massacre em Colniza (MT), em abril: conflitos na região são frequentes ()

À medida que o governo federal diminui o número de assentamentos, os conflitos e mortes no campo batem recordes no Brasil

No dia 20 de abril de 2017, nove pessoas foram assassinadas em um assentamento no município de Colniza, no norte do Mato Grosso, a 1.065 quilômetros de Cuiabá. O massacre – levado a cabo a tiros, golpes de facão e decapitação – foi executado por quatro homens encapuzados. A polícia suspeita que o crime tenha sido encomendado por fazendeiros para intimidar e expulsar os pequenos produtores que moram em um assentamento na região. Os conflitos em Colniza têm sido frequentes e envolvem a disputa por áreas de exploração de madeira e minérios.

Pouco mais de um mês após a chacina do Mato Grosso, outro massacre ligado a disputas fundiárias voltou a chocar o país. Nove homens e uma mulher foram mortos na fazenda Santa Lúcia, em Pau d’Arco, a 867 quilômetros de Belém, onde 150 famílias acampavam desde 2015.

As vítimas foram mortas pelas polícias militar e  civil do Pará, que afirmam terem sido recebidas à bala enquanto cumpriam mandados de prisão contra suspeitos de terem matado um segurança da fazenda. A Comissão Pastoral da Terra (CPT) contesta a versão oficial e afirma que a ação foi uma reintegração de posse e que não houve reação das famílias que ocupavam a fazenda – nenhum policial foi ferido na ação. Foi a maior chacina envolvendo disputas fundiárias desde o massacre de Eldorado dos Carajás, também no Pará, onde 19 trabalhadores rurais sem-terra foram mortos pela Polícia Militar, em 1996.

Infelizmente, os massacres em Colniza e Pau d’Arco estão longe de ser fatos isolados. A organização Global Witness coloca o Brasil no topo do ranking de violência no campo entre 2012 e 2015. Já de acordo com o levantamento CPT, o ano de 2016 registrou o recorde de conflitos no campo nos últimos 13 anos. Foram 1.536 casos relacionados a terra, trabalho e água, 26,2% a mais que no ano anterior. Maranhão, Rondônia e Bahia são os estados com o maior índice. Os assassinatos subiram de 50 para 61 entre 2015 e 2016, acréscimo de 22% – o Maranhão encabeça o ranking, com 13 assassinatos. E, a julgar pelos primeiros meses de 2017, esses números tendem a crescer ainda mais.

REDUÇÃO DOS ASSENTAMENTOS

O aumento exponencial de conflitos e mortes no campo em 2016 tem relação direta com a drástica estagnação da reforma agrária. O governo de Michel Temer assentou apenas 1.686 famílias em 2016, uma diminuição de 94% em relação ao ano anterior. Em termos comparativos, o ano com menor número de assentamentos no governo de Dilma Roussef foi 2012, com 23 mil famílias assentadas. O governo de Lula assentou, apenas entre 2005 e 2006, mais de 263 mil famílias. E o de Fernando Henrique Cardoso, entre 1998 e 1999, assentou 186 mil famílias.

A explicação do governo é que desde 2015, ainda durante o governo Dilma, a prioridade tem sido melhorar os assentamentos já existentes com programas de fomento à agricultura. Já o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão responsável por conduzir a reforma agrária, afirma que a ênfase está em avaliar e resolver questões judiciais para a liberação de novas áreas a serem desapropriadas. As justificativas não convenceram os movimentos sociais, que acusaram o governo de fazer o jogo do agronegócio em detrimento da necessidade dos pequenos produtores.

Questão agrária: Menos reforma, mais violência

ESTRUTURA FUNDIÁRIA

O combustível da violência no campo vem da concentração de terras nas mãos de poucos proprietários, uma realidade que perdura há séculos no Brasil. Do total de 521 milhões de hectares de solo aproveitável para a agropecuária, 47% é ocupada por latifúndios, que representam pouco mais de 2% dos imóveis rurais do país (um hectare equivale a 10 mil metros quadrados, mais ou menos a medida de um campo de futebol). Por outro lado, minifúndios e pequenas propriedades, que equivalem a mais de 90% dos imóveis, correspondem a menos de um terço da área total.

A estrutura fundiária brasileira, de altíssima concentração de terras, é herança do Brasil Colônia, quando o território do país foi dividido pela Coroa portuguesa em capitanias hereditárias e sesmarias destinadas a poucos eleitos. Mesmo com a instauração da República, um ano depois da abolição da escravatura, não houve mudança na estrutura de distribuição das terras, que permaneceram nas mãos de grandes proprietários.

Nascia aí a figura dos coronéis, que mantinham grande poder político e influência baseados em suas extensas propriedades rurais. Hoje, os latifúndios pertencem a grandes empresas, que constituem a agroindústria, ou agronegócio. São ocupados, no geral, por monoculturas de produtos destinados à exportação e à indústria. Com alto grau de mecanização e tecnologia, os latifúndios dependem cada vez menos de mão de obra – ou seja, geram menos postos de trabalho no campo.

Já as pequenas propriedades destinam-se à agricultura familiar ou coletiva, em cooperativas; empregam pouca tecnologia no cultivo de produtos voltados basicamente para o mercado interno e a subsistência. Segundo dados de 2015 do Ministério do Desenvolvimento Agrário, a agricultura familiar é responsável por 70% dos alimentos consumidos no Brasil.

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Questão agrária: Menos reforma, mais violência
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REFORMA AGRÁRIA

A reestruturação da organização fundiária é o que se entende por reforma agrária – a definição de regras para a posse da terra que atendam ao princípio constitucional de que a terra deve cumprir uma função social. Significa dizer que o solo fértil deve gerar trabalho e renda, ou ser mantido como reserva ambiental. Grandes propriedades improdutivas devem ser desapropriadas e divididas em propriedades menores, distribuídas para famílias sem terra cultivá-las. É uma política de Estado – ou seja, que deve ser regularmente implementada, independentemente de quem assume o governo.

A reforma baseia-se em três pilares:

• Desapropriação de terras improdutivas; 

• Assentamento de famílias de sem terra;

• Apoio ao pequeno agricultor;

O governo deve fornecer ajuda aos pequenos produtores, por meio de crédito para instalações e equipamentos, financiamento das safras (compra de sementes, adubos e defensivos agrícolas) e extensão rural (orientação técnica sobre métodos de criação e cultura e noções de comercialização). Para ser efetiva, a reforma exige, ainda, que o governo leve infraestrutura ao campo, como estradas, saneamento básico e eletricidade para as casas e equipamentos de beneficiamento.

O objetivo é que a reforma agrária ajude a democratizar e desconcentrar as estruturas de poder e fundiária, gerando alimentos, empregos e renda. Ela é importante para diversificar o comércio e os serviços no campo, reduzir o êxodo rural e interiorizar os serviços públicos.

QUESTÃO AGRÁRIA NO BRASIL

No Brasil, as primeiras grandes mobilizações a favor da reforma agrária surgiram na década de 1950, com as Ligas Camponesas. Na década seguinte, ao mesmo tempo que reprimia as ligas, o governo do regime militar criou, em 1964, o Estatuto da Terra, que define os direitos e deveres de proprietários rurais e disciplina a ocupação, o uso e as relações fundiárias no país.

O estatuto estabelece as bases para uma reforma agrária e prevê o assentamento de famílias em três tipos de área:

Terras públicas, da União e de governos estaduais;

Fazendas improdutivas, que são propriedades privadas desapropriadas com indenização aos donos;

Terras públicas “griladas”, ou seja, ocupadas por grileiros, que reivindicam a posse por meio de falsificação de documentos oficiais.

O primeiro programa de reforma agrária foi estabelecido por decreto presidencial em 1966, mas não saiu do papel.  Em 1970 é criado o Incra, até hoje responsável por executar o plano. Mas as ações do Incra àquela época visavam menos a redistribuir terras do que promover a colonização da Amazônia por famílias e empresas.

Ainda durante a ditadura militar, começam a surgir organizações civis de luta pela reforma agrária. Em 1975, em uma iniciativa da Igreja Católica, é fundada a Pastoral da Terra (hoje Comissão Pastoral da Terra), para atuar entre os trabalhadores rurais.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) surge nos anos 1980, e se transforma na principal organização de mobilização de lavradores pelo assentamento no campo. A principal forma de atuação do MST é a ocupação de terras, principalmente aquelas consideradas improdutivas, de modo a pressionar o governo a desapropriá-las, em uma estratégia que gera conflitos com os latifundiários.

Em resposta ao MST, os grandes proprietários de terra criam, em 1985, a União Democrática Ruralista (UDR), para defender seus interesses. Atualmente, os grandes proprietários rurais compõem uma frente parlamentar no Congresso Nacional para defender seus interesses – a chamada bancada ruralista. Com mais de 100 deputados de um total de 513, o grupo se tornou o principal instrumento político de defesa dos interesses dos grandes proprietários. A bancada defende medidas como financiamento rural mais barato e menos entraves ambientais para a ampliação de áreas de cultivo e criação.

NOVA POLÍTICA AGRÁRIA

Em meio ao atual cenário de tensão no campo, o Congresso aprovou em maio uma Medida Provisória (MP) editada pelo governo federal que altera a política de reforma agrária. Uma das principais mudanças propostas pela MP59/2016 é que, em vez de focar a distribuição de terras, a gestão de Temer quer priorizar a concessão de títulos de propriedade.

Pela legislação vigente, os assentados recebem da União uma concessão para o uso da terra, que não pode ser comercializada, apenas transferida para os filhos. Agora o governo irá oferecer a titulação, ou seja, irá obrigar os atuais concessionários a comprar o título definitivo da terra pelo valor de mercado da área, com descontos que variam de 20% a 60%, em até dez anos.

De posse do lote, o proprietário agora poderá comercializá-lo como quiser após dez anos. Segundo o governo, a medida busca garantir maior segurança jurídica ao regularizar a situação dos assentados, que passariam a ter acesso a programas de crédito agrário oferecidos pela União.

De acordo com os movimentos sociais ligados à terra, essa decisão permite aos latifundiários adquirir os lotes dos assentados após o período de dez anos de emissão do título. Como muitos pequenos proprietários podem ter dificuldades para pagar pela terra que compraram da União, uma solução contra o endividamento seria vender seus lotes para grandes fazendeiros, o que aumentaria ainda mais a concentração de terras. Além disso, essa nova política praticamente interrompe as novas desapropriações, beneficiando os grandes proprietários donos de terras ociosas.

Outro ponto muito criticado é a autonomia que a nova legislação garante ao governo para vender terras públicas, incluindo áreas rurais e urbanas onde já existem assentamentos. A medida permite que o governo comercialize as terras sem levar em consideração o Plano Nacional de Reforma Agrária e o princípio da função social da propriedade, como determina a Constituição. Outro ponto polêmico é que a nova lei abre brechas para conceder anistia a loteadores irregulares e grileiros.

As mudanças também limitam o poder de intermediação dos movimentos sociais junto aos assentados. Até vigorar a nova lei, entidades como o MST participavam do processo de organização e de seleção das famílias que se candidatam a receber os lotes em assentamentos e o título de domínio. Agora, essa função será transferida para os municípios. Alijado desse processo, o MST afirma que as prefeituras são instâncias de poder com maior influência do agronegócio e de interesses políticos, o que inviabilizaria o progresso da reforma agrária. Apesar da aprovação da MP pelo Congresso, os movimentos ligados à terra tentam mobilizar uma resistência contra o que consideram um retrocesso ruralista, situação que deve acirrar ainda mais a tensão no campo.

RESUMO

VIOLÊNCIA NO CAMPO: O massacre de Colniza (MT), que deixou nove mortos, e o de Pau D’Arco (PA), onde morreram dez pessoas, revelam a gravidade dos conflitos por disputa de terra no Brasil. Em 2016, o número de mortos foi o maior em 13 anos.

CONCENTRAÇÃO DE TERRAS: No Brasil, as grandes propriedades, que representam cerca de 2% dos imóveis  rurais, ocupam quase metade da área própria para agropecuária. Minifúndios e pequenas propriedades, que correspondem a quase 91% dos imóveis, ficam com cerca de um terço.

REFORMA AGRÁRIA: É uma política de Estado de redistribuição de terras para agricultura e pecuária segundo o princípio de que a terra deve cumprir um papel social – gerar renda e trabalho, ou permanecer como reserva  ambiental. A reforma envolve a desapropriação de terras improdutivas, o assentamento de famílias de sem-terra e suporte a elas, na forma de crédito rural, financiamento das safras, extensão rural e infraestrutura públicas.

RITMO DA REFORMA: As desapropriações e os assentamentos caíram no governo Dilma Roussef – foram 110 mil famílias entre 2011 e 2015. A queda acentuou-se ainda mais no governo de Michel Temer, que em 2016 assentou apenas 1.686 famílias.

MST E RURALISTAS: O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), fundado nos anos 1980, é a principal entidade de luta pela reforma agrária. Acompanhado da Comissão Pastoral da Terra, os sem-terra enfrentam a oposição dos grandes proprietários, representados pela bancada ruralista no Congresso Nacional.

NOVA POLÍTICA AGRÁRIA: A lei que modifica a reforma agrária prioriza a venda de títulos de propriedade para os assentados em vez da distribuição de terras. Para o governo, a medida é uma forma de garantir segurança jurídica e regularizar a situação das famílias assentadas. Os movimentos sociais argumentam que a MP é um retrocesso na reforma agrária e poderá agravar a concentração de terras.

Questão agrária: Menos reforma, mais violência
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