Turquia Cresce a tensão política e religiosa no país
A Política turca na encruzilhada
A tensão entre islâmicos e seculares se acirra enquanto o país mergulha no conflito da Síria e passa a ser alvo de atentados terroristas
por Fábio Sasaki
Alçada à condição de grande potência emergente na última década, a Turquia inicia o ano enfrentando grandes desafios. Internamente, a instabilidade é alimentada pelas ambições políticas de Recep Tayyip Erdogan, o carismático político que foi primeiro-ministro entre 2003 e 2014. Atualmente na presidência, ele quer mudar a lei, adotando o presidencialismo em substituição ao atual sistema parlamentarista. Por trás dessa iniciativa, está a tentativa de acumular os poderes da chefia de governo, que hoje cabem ao primeiro-ministro. Para promover essa mudança, Erdogan conta com a maioria parlamentar conquistada pelo Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), do qual é líder, nas eleições de novembro de 2015. Essa disputa pelo poder acirra ainda mais a já quente polarização entre os islâmicos que apoiam o AKP e a oposição que defende o secularismo.
Além dos desafios internos, o contexto geopolítico é bastante turbulento para a Turquia. Nos últimos meses, a situação se agravou com o maior envolvimento do país na guerra da Síria. A partir desses eventos, a Turquia retomou o histórico conflito contra os curdos e passou a ser alvo de atentados cometidos pelo grupo terrorista Estado Islâmico (EI).
O secularismo turco
A Turquia está localizada entre a Europa e o Oriente Médio, posição que sempre lhe conferiu um papel estratégico e histórico relevante – basta lembrar que o local foi o centro irradiador de poder dos impérios Bizantino (330-1453) e Otomano (1281-1918). As bases da Turquia moderna começaram a ser estabelecidas com a dissolução do Império Otomano após a derrota na I Guerra Mundial, em 1918. A crise política e econômica do pós-guerra deu origem a um movimento nacionalista, liderado pelo general Mustafa Kemal, que adotou o codinome de “Ataturk” ou “pai dos turcos”. Considerado o fundador da Turquia moderna, Ataturk aboliu o califado, o governo islâmico comandado por um sultão, e proclamou a república em 1923.
Com um programa radical de ocidentalização, Ataturk rompeu com o histórico atrelamento entre o Estado e a religião islâmica ao fazer da Turquia um país secular. A medida provocou profundas alterações na estrutura social do país. As novas forças políticas acompanharam a polarização na sociedade e se dividiram entre aqueles que defendiam os valores seculares de Ataturk e os favoráveis a um papel maior do islã na vida pública. Esse cenário gerou grande instabilidade política nos anos seguintes. Como guardiões do secularismo, os militares derrubaram sucessivos governantes que tinham um perfil mais religioso.
A ascensão de Erdogan
O cenário começou a mudar a partir de 2002, com a vitória do AKP nas eleições parlamentares. A ascensão de um partido islâmico, ainda que moderado, não foi bem recebida pelos militares e pela elite política. À época, Erdogan era o líder do partido, mas havia sido proibido de exercer cargos públicos por representar uma ameaça ao secularismo. Com um discurso pragmático, em que prometia manter as reformas pró-ocidentais e afirmava seu compromisso com o laicismo, Erdogan reconquistou os direitos políticos e assumiu como primeiro- ministro em 2003.
Pautado por uma agenda liberalizante, Erdogan atraiu investimentos externos e aumentou as parcerias comerciais com o exterior. Internamente, investiu em grandes obras de infraestrutura, ampliou os benefícios sociais e estimulou o consumo doméstico. Com essa receita, a Turquia tornou-se uma das economias emergentes mais pujantes do mundo. O país também firmou cadeira cativa no G-20, o grupo das 20 maiores economias do planeta.
No plano externo, Erdogan obteve o aval da União Europeia para iniciar as negociações de ingresso da Turquia no bloco (veja boxe abaixo). Paralelamente, também estreitou os laços diplomáticos e comerciais com as nações muçulmanas do Oriente Médio, especialmente Irã, Iraque e Síria.
Em um período de menos de uma década, Erdogan tornou-se o político mais influente da Turquia desde Ataturk, o que garantiu ao AKP expressivas vitórias nas eleições de 2007 e 2011. Essa popularidade foi sustentada por importantes conquistas: a economia ia de vento em popa, as tensões políticas entre religiosos e seculares haviam se acomodado e a Turquia passou a ser vista como um ator diplomático essencial na região. Durante a eclosão da Primavera Árabe em 2011, quando manifestações populares se voltaram contra os governos autoritários no Oriente Médio e no norte da África, a Turquia foi frequentemente apontada como um modelo para os países de maioria muçulmana que sonhavam com um regime mais democrático.
Ao abrir frentes de combate contra o Estado Islâmico e os curdos, a Turquia se expõe a atentados
CENTRALIZADOR O presidente Recep Erdogan em pronunciamento após os atentados em Istambul. KAYHAN OZZER/POOL PHOTO VIA AP
Guinada autoritária
O poder, no entanto, seduziu Erdogan a ponto de ele impor uma agenda mais autoritária. O primeiro-ministro é acusado de tentar neutralizar instituições que servem de contrapeso ao seu poder. Além de minar a influência dos militares, Erdogan se voltou contra o Judiciário, ao concentrar no Executivo a escolha de juízes, e contra a mídia, ao prender jornalistas críticos ao seu governo.
Paralelamente, adotou algumas medidas que abalaram a confiança que tinha dos secularistas, como a liberação do uso do lenço islâmico em escolas e repartições públicas e a proibição da venda de bebidas alcoólicas à noite. Seus críticos denunciam a imposição de uma agenda islâmica, enquanto os simpatizantes do primeiro-ministro consideram as medidas como uma restauração da liberdade de expressão religiosa. A tensão entre seculares e islâmicos voltou a se acirrar.
Essas ações, somadas à desaceleração da economia, acabaram desgastando a imagem do primeiro-ministro. Mesmo assim, apoiado em uma sólida base de eleitores entre a população rural, religiosa e conservadora, ele venceu as eleições presidenciais em 2014 após encerrar sua passagem como primeiro-ministro por esgotar o limite de três mandatos, como exige a Constituição.
Síria e Estado Islâmico
Além dos desafios domésticos, o governo turco precisa lidar com uma agenda externa conturbada. Desde 2011, a guerra civil na Síria vem desestabilizando todo o Oriente Médio. A Turquia foi um dos primeiros países da região a se voltar diretamente contra o governo da Síria logo no início do conflito, ainda que as duas nações cultivassem boas relações no passado. Os turcos passaram a financiar a oposição moderada e até os mais radicais com o objetivo de derrubar o ditador sírio Bashar al-Assad.
DESAFIOS GEOPOLÍTICOS
O histórico imperial e a localização geográfica estratégica colocam a Turquia no centro de importantes conflitos de interesses na região. além da crise no Oriente Médio, veja outros desafios que a política externa turca enfrenta:
• Grécia/Chipre: a histórica rivalidade entre Turquia e Grécia tem como maior foco de tensão a questão do Chipre. Essa ilha do Mediterrâneo se divide em dois estados: a república de Chipre, no sul, que possui população majoritária de origem grega; e a república turca do Norte do Chipre, que é controlada pela Turquia e não tem reconhecimento internacional. as negociações para a unificação do país esbarram na intransigência de turcos e gregos.
• Armênia: a razão da crise entre os dois países é o genocídio cometido pelos turcos contra os armênios durante a i Guerra Mundial (1914-1918), que deixou 1milhão e meio de mortos. até hoje a Armênia luta para que a Turquia reconheça o genocídio. Para evitar atritos devido ao papel estratégico da Turquia, os EUA e muitas nações europeias não reconhecem o genocídio.
• Rússia: as duas nações possuem relações amistosas que se deterioraram recentemente devido às posições opostas em relação ao conflito na síria. O ditador sírio Bashar al-assad é o principal aliado da Rússia no Oriente Médio, enquanto a Turquia faz de tudo para tentar derrubá-lo. Em novembro de 2015, um caça russo que apoiava as tropas de Assad foi abatido pelas forças turcas por invadir o espaço aéreo do país.
• União Europeia: o ingresso no bloco europeu é um desejo antigo da Turquia. As negociações começaram em 2005, mas pouco avançaram desde então. Os europeus exigem que a Turquia entre em acordo para a unificação do Chipre e reconheça o genocídio armênio. além disso, existe a objeção velada de que um país de maioria muçulmana faça parte da UE. No final de 2015, as negociações foram retomadas após a Turquia aceitar ajudar a Europa na crise dos refugiados.
• Refugiados: por fazer fronteira com a síria, a Turquia se tornou o principal destino para os refugiados que fogem daquele país em direção à Europa. desde o início do conflito, a Turquia já recebeu mais de 2 milhões de sírios – cerca de 400 mil deles vivem em campos de refugiados superlotados.
Mas o maior foco de tensão diz respeito à relação ambígua que o governo turco mantém com o EI. No decorrer do conflito, o grupo extremista despontou como a única força capaz de fazer frente às tropas de Assad. Formalmente, a Turquia mantém o discurso de alinhamento com as potências ocidentais no combate ao fundamentalismo islâmico. No entanto, como a Turquia e o EI querem derrubar Assad, o governo de Erdogan é acusado de fazer vistas grossas em relação aos avanços do grupo extremista.
O conflito com os curdos
Os interesses da Turquia e do EI também convergem em outro aspecto: ambos têm os curdos como inimigos. Maior etnia sem Estado no mundo, com 26 milhões de pessoas, os curdos habitam uma área que abrange os territórios de Turquia, Iraque, Síria, Irã, Armênia e Azerbaijão. Na Turquia, onde representam cerca de 20% da população, os curdos lutam pela independência do seu território. O principal grupo separatista é o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que iniciou a luta armada em 1984. Com o tempo, passaram a exigir apenas mais autonomia nas regiões onde vivem, e as negociações levaram a um cessar-fogo em 2013.
Na Síria, os curdos locais conquistaram boa dose de autonomia no norte do país, perto da fronteira com a Turquia, onde mantêm relações estreitas com o PKK e defendem seu território contra o avanço do EI. Para a Turquia, a aliança entre os curdos sírios e o PKK representa a principal ameaça ao seu território. Por isso, sempre foi conveniente para Erdogan deixar que o EI fizesse o “trabalho sujo” de lançar ataques aos curdos sírios e ao PKK na região. Mas essa relação acabou se tornando insustentável. A situação começou a mudar em julho de 2015, quando a cidade turca de Suruç, no sul do país, foi alvo de um ataque do EI, que vitimou 32 pessoas, a maioria curdas. No mesmo episódio, o PKK matou dois policiais turcos, acusados de colaborar com o ataque jihadista.
O caso levou o governo Erdogan a mudar sua estratégia: a Turquia passou a atacar abertamente alvos do PKK na Síria, rompendo a trégua com os curdos, e iniciou uma colaboração efetiva com a Otan, do qual é membro, no combate ao EI. Mas, ao abrir duas novas frentes de combate, aos extremistas do PKK e do EI, a Turquia também acabou se expondo. Em outubro, o país sofreu o maior atentado de sua história, quando uma bomba explodiu numa área próxima à estação de trem de Ancara e deixou 95 mortos e mais de 200 feridos. Em janeiro de 2016, um novo atentado numa região turística de Istambul deixou dez mortos. Ambos os casos foram atribuídos ao EI. Em menores proporções, o PKK também é acusado de promover ataques.
Após uma década de prosperidade e relativa paz, a Turquia agora flerta com a instabilidade política e com um clima de insegurança que ameaçam as recentes conquistas.
SAIU NA IMPRENSA
TURQUIA QUER € 6 BI PARA FECHAR “ROTA DOS BALCÃS
O governo da Turquia pediu ontem € 6 bilhões em investimentos da União Europeia em troca do fechamento de sua fronteira com a Grécia, por onde centenas de milhares de imigrantes vêm cruzando o Mar Egeu. (…)
Bruxelas havia prometido enviar € 3 bilhões a Ancara para financiar campos de refugiados e a luta contra as redes de tráfico humano. Mas apenas uma fração dos recursos foi transferida, porque os líderes europeus estão insatisfeitos com a ação do governo turco, que não vem impedindo as travessias de barco pelo Mar Egeu. No domingo, mais 25 pessoas morreram em um naufrágio.
Ontem, a Turquia apresentou uma nova proposta: dobrar o valor da ajuda financeira que receberia de Bruxelas até 2018. Além disso, Davutoglu pediu o fim da necessidade de vistos para turcos que quiserem ingressar no Espaço Schengen, área de livre circulação de pessoas, e o relançamento do processo de adesão do país à União Europeia. (…)
O Estado de S. Paulo, 8/3/2016
RESUMO
Turquia
HISTÓRIA A Turquia moderna tem origem na dissolução do Império Otomano, após o fim da I Guerra Mundial, em 1918. Um movimento nacionalista liderado por Mustafa Kemal “Ataturk” fundou a república e iniciou um processo de ocidentalização, cuja principal ação foi separar o Estado da religião, criando as bases do secularismo.
ISLAMISMO E LAICISMO A Turquia é um país de maioria muçulmana que mantém o Estado laico. As principais forças políticas no país se dividem entre aqueles que defendem os valores seculares e os favoráveis a um papel maior do islã na vida pública. Essa polarização reflete as posições da sociedade e é motivo de frequentes disputas políticas.
ENDORGAN Líder do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), Recep Tayyip Erdogan foi primeiro-ministro do país entre 2003 e 2014. De perfil religioso, promoveu significativos avanços econômicos, o que alavancou sua popularidade. Atualmente é presidente do país, cargo de função simbólica. Por isso, quer alterar o regime para presidencialista e acumular mais poder. É criticado por promover uma guinada autoritária e religiosa no país.
CURDOS Os curdos formam a maior etnia sem Estado no mundo e mantêm um projeto para a criação de um país próprio desde o final do século XX, sobretudo na Turquia, na Síria e no Iraque, países nos quais o movimento é violentamente reprimido. Na Turquia, o principal grupo separatista é o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que iniciou a luta armada em 1984.
SÍRIA E ESTADO ISLÂMICO Na guerra da Síria, a Turquia se posiciona abertamente contra o regime do ditador Bashar al-Assad. Como mantém alguns interesses em comum com o Estado Islâmico (EI), como o combate ao regime de Assad e aos curdos, a Turquia é acusada de ser conivente com as ações do grupo extremista. Contudo, após sofrer um atentado do EI, o governo turco passou a combater efetivamente a organização e também ampliou os ataques às posições do PKK.