No Brasil de 1866, uma mulher escravizada ditava cartas que eram escritas para o marido e o filho, dos quais havia sido separada ao ser vendida anos antes. Ela queria que, juntos, reunissem dinheiro para se libertarem – comprando suas alforrias – e, quem sabe, pudessem voltar à África, onde havia nascido. A história dessa cativa, Teodora Dias da Cunha, é a fonte da bela HQ “Mukanda Tiodora”, de Marcelo D´Salete, vencedor de 2023 da categoria Quadrinhos do maior prêmio literário brasileiro, o Jabuti.
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Dos traços fortes da história, emerge uma São Paulo com ares de cidade pequena, com seu casario colonial, suas ruas sem calçamento, sua praça da forca e seu ambiente opressivo para os que, como Tiodora, buscavam se libertar das amarras da escravidão. Quem conhece a metrópole de hoje vai achar um interesse a mais na obra, cujas imagens remetem ao passado de sua região central.
Escrava de um religioso, o cônego Terra, Tiodora vende frutas pela cidade. Interrompe suas andanças, sem que o seu senhor saiba, para que Claro, um cativo alfabetizado, coloque no papel e envie as suas mensagens ao marido, Luís, que ela, no entanto, não sabe com certeza onde está. Calcula que continue na fazenda em que viviam antes, em Limeira, no interior do estado. Tudo é feito às ocultas. Percebe-se que os senhores não viam com bons olhos que os escravos tivessem hábitos simples, como escrever cartas e tentar manter relações com seus familiares próximos.
Sete cartas de Tiodora chegaram aos dias de hoje, pois foram arroladas e arquivadas com um inquérito policial que investigava um roubo na casa do cônego. Mesmo relativamente curtas, as cartas são ricas em referências e informações. Forneceram uma ótima base para que o premiado quadrinista Marcelo de D’Salete (autor de “Cumbe” e “Angola Janga”) tenha recriado, como ficção, o universo de uma mulher africana arrancada de sua terra natal, escravizada no Brasil, que formou família no cativeiro, se viu de novo afastada à força do convívio das pessoas queridas, e tenha continuado se insurgindo contra as arbitrariedades e violências desferidas contra si. Trata-se de uma história de resistência, de uma pessoa e também de um povo.
Tiodora divide o ambiente urbano com negros escravizados ou livres, como Joana, Benê e as figuras históricas do advogado e jornalista Luiz Gama e do estudante José Ferreira de Menezes, que se formou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. A narrativa mostra também, de maneira muito apropriada, a importância dos sonhos e da religiosidade na vida dela.
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Para qualquer leitor ou leitora – e sobretudo estudantes –, a HQ é uma ótima maneira de aprender bastante sobre a realidade brasileira, e um tanto sobre a vida cotidiana das pessoas escravizadas no século 19. Ao final dos quadrinhos, a edição ainda dedica 50 páginas a textos, fotos, mapa e referências para quem quer saber mais sobre as cartas originais, a luta contra a escravidão no Brasil e as imagens da época.
O nome da obra é uma referência às cartas. “Mukanda” é uma palavra de origem banto, família linguística africana, que significa missiva, carta, escrita e papel. “Mukanda Tiodora” pode também ser entendido como uma referência à “Carta”, como o título de alforria era conhecido à época: o grande objetivo de Tiodora, que ansiava por ser uma mulher plenamente liberta. Ela mesma escreve numa carta ao seu senhor, na qual explica que junta dinheiro para pagar por sua liberdade: “Eu tive um aviso de noite. Vinha e me falava que cumprisse a promessa que prometi de voltar para a minha terra”.
Não sabemos hoje como a vida de Tiodora prosseguiu. Mas sua mensagem de esperança e persistência nos chegou por suas cartas, e foi amplificada nos quadrinhos de “Mukanda Tiodora”. Vale muito a pena.
Mukanda Tiodora
O novo quadrinho de Marcelo D’Salete, autor dos celebrados livros Angola Janga e Cumbe, ganhador de prêmios como o Jabuti, vários HQ Mix e até um Eisner!
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