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O decreto que proibiu mulheres de jogar futebol por 40 anos no Brasil

Durante a Ditadura Militar, Getúlio Vargas proibiu as mulheres de praticarem qualquer esporte que fosse incompatível com a 'natureza feminina'

Por Ludimila Ferreira
22 Maio 2025, 19h00
futebol
 (Diário da Noite SP/Reprodução)
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O Brasil é conhecido como país do futebol não é à toa: o país tem os maiores times tanto na modalidade masculina, quanto na feminina. Porém, nem sempre foi assim, principalmente para as mulheres. Em 1941, o então presidente Getúlio Vargas assinou um decreto que proibia as mulheres de praticarem não só futebol, mas qualquer outro esporte que ameaçasse a ‘natureza feminina’.

A primeira grande partida de futebol feminino no Brasil aconteceu no estádio do Pacaembu, em São Paulo, em 1940, entre o Casino do Realengo e S.C. Brasileiro. O jogo aconteceu antes de um amistoso entre os times masculinos São Paulo e Flamengo. Porém, antes mesmo da partida, já havia uma mobilização para impedir que as mulheres praticassem o esporte.

Abaixo, conheça a mobilização machista que vetou o futebol feminino por quase 40 anos.

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A proibição dos esportes para as mulheres

Quando se lê o Decreto-Lei nº 3.199, do dia 14 de abril de 1941 sem a devida atenção, se dá a entender que o ex-presidente Getúlio Vargas estava incentivando a prática de atividades físicas, já que logo no artigo 3 é apontado que a medida tinha como objetivo “assegurar a existência de grupos esportivos para o fim de educar física e espiritualmente a juventude”. 

Porém, fosse de forma profissional ou amadora, qualquer prática esportiva deveria ser feita dentro da moralidade da época. Em 1941, o Brasil passava pelo período do Estado Novo, golpe que teve início três anos antes.

Enquanto o país passava pela sua primeira ditadura, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) era criada, mas as mulheres, oprimidas.

A justificativa nada plausível no artigo 54 do decreto era direta, mas vaga; “Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país.”, deixando a interpretação aperta para qualquer um que quisesse negar a prática feminina de qualquer esporte. 

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Um decreto consequência do machismo

Pouco antes do jogo de 1940 acontecer no Pacaembu, o escritor José Fuzeira endereçou a Getúlio Vargas uma carta intitulada “Um disparate sportivo que não deve prosseguir”, através do jornal carioca “Diário da Noite”.

O autor da carta expressava sua “preocupação” com a suposta futura maternidade das jogadoras, assim como os efeitos negativos que a prática do esporte poderia ter sobre estas mulheres.

“Que V. Ex.ª, Sr. Presidente, acuda e salve essas futuras mães do risco de destruírem a sua preciosa saúde, e ainda a saúde dos futuros filhos delas… e do Brasil”, escreveu o homem que não tinha nenhuma qualificação educacional ou científica, como ele mesmo aponta no texto.

Abaixo, leia a carta completa de José Fuzeira ao presidente da República, Getúlio Vargas, publicada no jornal Diário da Noite em 7 de maio de 1940.

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A carta do cidadão

Scan do jornal Diário da Noite (RJ).
Scan do jornal Diário da Noite (RJ) (Diário da Noite RJ/Reprodução)

“Ilmo. Sr. Presidente da República, Dr. Getúlio Vargas

Ex.mo Sr., minhas reverências de respeito. Permita V. Ex. que o signatário, embora sem dispor das credenciais de qualquer autoridade educacional ou científica, venha solicitar-lhe alguns minutos de atenção para o magno problema, que, a seguir, vai comentado. E, se o faço, é porque conquanto V. Ex.ª viva interessada e absorvida em resolver e solucionar, com ponderado acerto, os mais graves problemas sociais da família, da sociedade e da nação, certamente, alguns lhe hão de escapar; mesmo porque, dadas as circunstâncias múltiplas e complexas, adstritas às grandes reformas sociais da época, é humanamente impossível a qualquer estadista, abranger, de um golpe, o “tudo” que, desde há muito tempo, está errado, e o “tudo” que, por isso, mesmo, exige uma reforma mais radical. Tanto mais que, neste ciclo dinâmico de imprevistos, surgem constantemente novos problemas coletivos, que pela continuidade da sua sucessão, parecem até desafiar a capacidade mental de todos os governantes das nações.

Assim, de fato, não é possível aos homens encarregados de articularem e coordenarem o equilíbrio da vida social dos povos, verem tudo e atenderem, de repente, a todas as questões que vão surgindo. Porém, quando se trata de problemas novos, cujos aspectos primários já nos revelam consequências de certa gravidade, então, neste caso a exceção, sem dúvida que se impõem providências imediatas.

Vem, pois, o signatário, respeitosamente, solicitar a clarividente atenção de V. Ex.ª, para que seja conjurada uma calamidade que está prestes a desabar em cima da juventude feminina do Brasil. Refiro-me, Sr. Presidente, ao movimento entusiasta que está empolgando centenas de moças, atraindo-as para se transformarem em jogadoras de futebol, sem se levar em conta que a mulher não poderá praticar esse esporte violento sem afetar, seriamente, o equilíbrio psicológico das funções orgânicas, devido à natureza que a dispôs a “ser mãe”.

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É notória a violência com que, nesse jogo, as bolas atingem, às vezes, o corpo dos jogadores; e também diversos são os casos já ocorridos de consequências graves e fatais.

Ora, a constituição orgânica da mulher impõe-lhe o atento cuidado de precaver certos órgãos contra toda a contundência traumática; sendo que, conforme opinião de alguns expoentes da medicina, as pancadas violentas contra os seios podem, até, dar origem ao câncer.

Também, por motivo de fenômenos específicos, que nos abstemos de enumerar, ainda outros sérios distúrbios de saúde podem sofrer as moças que venham a escravizar-se ao “sagrado dever” de não faltarem aos treinos e se disponham a aumentar as duras recargas de tal jogo; pois esses encontros de impulsos rudes, incontroláveis, hão de evidentemente afetar-lhes o equilíbrio do sistema nervoso e, até (quem sabe?) originando, talvez, funestas consequências futuras, no que se refere aos fenômenos próprios da gestação, pois da perfeita saúde da mãe depende o vigor e a perfeita constituição dos filhos.

Ao que dizem os jornais, no Rio já estão formados nada menos do que dez quadros femininos. Em São Paulo e em Belo Horizonte também já se estão constituindo outros. E, neste crescendo, dentro de um ano é provável que em todo o Brasil estejam organizados uns 200 clubes femininos de futebol, ou seja, 200 núcleos destroçadores da saúde de 2200 futuras mães que, além do mais, ficarão presas de uma mentalidade depressiva e propensa aos exibicionismos rudes e extravagantes, pois desde que já se chegou à insensatez inqualificável de organizar-se pugnas de futebol “com um grupo de cegos” a correrem, às tontas, atrás de uma bola cintada de guizos, não será de admirar que o movimento feminino a que nos estamos reportando seja o ponto de partida para, do decorrer do tempo, as filhas de Eva se exibirem, também, em assaltos de luta livre e em juntas da “nobre arte” cuja “nobreza” consiste em dois contendores se esmurrarem até ficarem babando sangue.

Informam ainda os periódicos que já se cogita a fundação da Liga Feminina de Futebol. Porém, é provável que toda esta afobação esteja sendo conduzida e articulada nos bastidores por interesses mesquinhos que nada tem a ver com quaisquer ideais de cultura física; pois, até no que respeita a estética esportiva, semelhante torneios femininos bem considerados em todos os seus aspectos e detalhes são simplesmente ridículos, pois se é elegante e rutilo de beleza o ambiente de um grupo de moças nas atitudes dos exercícios aquáticos, outro tanto não acontecerá com as corridas e trambolhões espetaculares das pugnas futebolísticas.

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Certamente, as moças já inscritas nos quadros organizados são, como é natural, muitas coisas dos seus encantos de beleza. Entretanto, como não compreendem que o jogo violento de futebol lhes afetará a saúde integral da qual, na realidade, depende a longa mocidade da sua beleza física, saúde, aliás, muito mais preciosa e digna de cuidado do que o superficialismo das suas sobrancelhas, e das suas unhas e cabelos?

Que nos conste, semelhante disparate desportivo ainda não surgiu em nenhum outro país. Assim, para evitar que as suas primícias venham a degenerar em uma calamidade contra a saúde e a compostura esportiva do belo sexo, venho apelar para que um aceno do reconhecido e elevado bom senso de V. Ex.ª faça com que o Departamento de Cultura e Saúde solicite o conselho de um grupo de médicos, a fim de que os mesmos, com a sua acatável autoridade, decidam se, efetivamente, a mulher pode, sem manifesto e grave prejuízo, integrar como elemento ativo, em um esporte de atritos e físicos rudes e agressivos, que, muitas vezes, embora por descuido, redundam também em pisaduras e em pontapés no peito, no estômago e no ventre dos jogadores.

Que V. Ex.ª, Sr. Presidente, acuda e salve essas futuras mães do risco de destruírem a sua preciosa saúde, e ainda a saúde dos futuros filhos delas… e do Brasil.

Este é o apelo que vem dirigir-lhe o signatário.

Resta-me dizer a V. Ex.ª que este nosso gesto está inteiramente justificado; se V. Ex.ª se dignar de folhear algumas páginas de um livro nosso, que se encontra em sua biblioteca particular e no qual sem o prurido de quaisquer veleidades literárias demonstro, de forma inconteste, o meu amor desinteressado pelo bem do Brasil e da Humanidade.

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Com os protestos do mais elevado apreço e consideração, sou de V. Ex.ª mto. ato. e obrigado.

Sr. José Fuzeira — Rua 5 de Julho, 45 — apartamento 6, Copacabana.”

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Como essa história afeta o futebol feminino até os dias de hoje?

Os clubes da série A do Campeonato Brasileiro de futebol, o Brasileirão, foram obrigados a formar uma equipe feminina para participar da disputa oficial apenas em 2016, com um prazo de dois anos para adaptação, quase 40 anos depois da queda do decreto de Vargas.

Isso só foi possível devido a regulamentação de licenças de clubes no futebol feminino da Conmebol (Confederação Sul-Americana de Futebol). Porém, a maioria dos times ainda não estava seguindo a nova norma em 2019, quando o prazo para criação do elenco feminino estava no fim.

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Durante a Ditadura Militar, Getúlio Vargas proibiu as mulheres de praticarem qualquer esporte que fosse incompatível com a 'natureza feminina'

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