– Leia o resumo de Anjo Negro
“Anjo negro” e a tragédia
“Anjo negro” é uma peça teatral escrita por Nelson Rodrigues em 1946. Dentro do gênero dramático, o texto é identificado como uma tragédia – recebendo inclusive o subtítulo “Tragédia em 3 atos”. Uma peça teatral não possui um narrador e outras características próprias de um texto em prosa (tais como romance, conto, etc.), e portanto sua leitura e entendimento se dá de um modo diferente do de uma prosa. De um modo geral, os elementos fundamentais de um texto dramático são: personagens, diálogos, rubrica, atos e cenas.
Dentre esses elementos, as personagens podem ser consideradas o ponto chave de um texto dramático, pois devido à ausência de narrador, as ações são todas construídas por meio das falas e diálogos das personagens. Assim, as personagens e os diálogos correspondem à base fundamental do texto dramático, sendo através deles que se percebe o enredo. Além disso, pode-se dizer que através dos diálogos é que as personagens são caracterizadas, uma vez que não existes descrições físicas e psicológicas das personagens e deve-se, portanto, inferir esses dados através de suas falas. Portanto, os diálogos devem dar coerência ao texto, unindo personagens e ação.
Já as rubricas são as indicações feitas pelo autor sobre o cenário e ações, e são em geral impressas em itálico. Essas indicações são um guia para que a peça se transforme de texto escrito em uma encenação teatral propriamente dita. As rubricas contém, além de dados acerca do cenário em que se dá a cena (por exemplo, em Anjo negro sabemos que a primeira cena se dá na sala da casa e temos a descrição de como é esse lugar), elementos gestuais (se a personagem olha para cima ou para baixo, se está sentada ou em pé, se gesticula enquanto fala ou não, etc.), elementos psicológicos (se a personagem está triste ou não, se ela está espantada, assustada, qual seu tom de voz, etc.) e outras características que o dramaturgo julga essencial demarcar para uma boa compreensão do texto.
No caso de “Anjo negro”, vê-se que a rubrica desempenha um papel fundamental na construção da ação, pois o estado psicológico das personagens é constantemente demarcado através delas. Um exemplo disso é o fato de em diversos momentos as personagens estarem de costas (ou de perfil) para o público ou uma para outra no momento do diálogo. Este tipo de demarcação é bem comum nas peças escritas por Nelson Rodrigues e geralmente indicam indiferença, medo, ódio, afastamento e outros sentimentos como esses. Com relação à descrição dos cenários, percebe-se que muitas vezes as rubricas dão características irreais e ilógicas. Por exemplo, na primeira cena a casa é descrita como não tendo teto para que a noite possa “possuir os moradores” e que os muros crescem de acordo com a solidão do negro. Assim, tem-se em “Anjo negro” uma atmosfera de caráter surrealista e expressionista, onde o cenário reflete o estado psicológico das personagens.
Por fim, estruturalmente um texto dramático é dividido em atos e cenas. Um ato pode ser entendido de forma parecida com a dos capítulos de um romance, e correspondem a um estágio da trama desenvolvida no texto dentro de uma dada unidade de ação. Anjo negro possui, assim como a grande maioria dos textos teatrais produzidos por Nelson Rodrigues, três atos. Já as cenas são as menores unidades de ação de um ato, e possuem um número fixo de personagens cuja ação é dada em uma unidade fixa de espaço. Dessa forma, quando muda-se a personagem ou o espaço cênico, muda-se também a cena.
Quanto ao tempo da ação, é importante destacar que as peças de Nelson Rodrigues geralmente não possuem um tempo delimitado. A sensação de “suspensão do tempo” causada pela indefinição do tempo da ação ocorre também em “Anjo negro”, cujo tempo parece ser eterno. Por conta disso, as personagens parecem ficar aprisionadas eternamente em sua condição de dor e sofrimento, o que pode ser notado claramente ao final de Anjo negro. Nessa peça, Ana Maria termina aprisionada dentro do mausoléu de vidro para que morra lentamente, enquanto Ismael e Virgínia voltam a se trancar no quarto. Para assegurar a continuidade desse ciclo vicioso em que as personagens estão presas, o coro de mulheres canta que o casal terá outro filho que também será morto como os demais.
Por fim, cabe ressaltar que toda ação de “Anjo negro” é resultado da relação de Virgínia com o noivo de sua prima. Por conta dessa traição, a prima se suicida e a tia arquiteta um plano para se vingar de Virgínia. A partir de então, o ciclo de violência vai se desenvolvendo como uma bola de neve em torno de relações de ódio, inveja e vingança. Em outro ponto do texto, Virgínia se envolve em outro caso de adultério ao se relacionar com o irmão de seu marido e a tia mais uma vez desenvolve um papel fundamental para a realização da vingança ao contar para Ismael o ocorrido entre Virgínia e Elias. Esta forma de desenrolar da ação é um traço característico das tragédias, onde uma ação é resultado de outra e assim sucessivamente.
A questão étnica
Essa peça de Nelson Rodrigues gira em torno do contraste branco/negro, sendo que isto será posto como o grande impedimento para a relação entre Ismael e Virgínia. Além da própria cor da pele (ela é branca e ele, negro), estes dois opostos estão presentes em diversos outras partes da peça, como por exemplo as vestimentas: Ismael, que é negro, está sempre com um terno impecavelmente branco.
A questão racial em “Anjo negro” é central, não importando que Ismael seja um médico bem sucedido e tenha um nível social igual ao de sua esposa. Ismael consegue superar as barreiras de classe económico-social, mas não consegue se desvencilhar do complexo de inferioridade proveniente de sua cor. A negação da cor negra torna impossível a união do casal e a geração de descendentes, que são mortos um a um por Virgínia. Há também a maldição lançada pela mãe de Ismael por ele não aceitar sua cor e ter sido um “filho ruim”.
Comentário do professor
O prof. João Amalio Ribas (Joãozinho), do Colégio Acesso de Curitiba (PR), conta que a intenção de Nelson Rodrigues ao escrever “Anjo Negro” era construir uma peça em que o negro não fosse apenas um subalterno, como era comum no teatro brasileiro até então. Como o escritor percebeu, havia uma carência de um protagonista negro que fugisse desse estereótipo do “negro malandro”. Assim, uma das temáticas de fundo dessa obra é discutir o preconceito racial. Segundo o prof. Joãozinho, esse preconceito está escancarado no próprio título da peça, “Anjo negro”, pois há um jogo paradoxal entre “anjo”, que segundo o imaginário popular é branco e loiro, com a palavra “negro”.
Porém, conforme explica o prof. Joãozinho, Ismael – “o negro que não é malandro” da peça – se impõe revestindo-se de uma “ética branca”, que na realidade não é nada “branca” e pura, e irá cometer diversas atrocidades. Da mesma forma, sua esposa branca irá matar cada um de seus filhos. Assim, pode-se dizer que no final das contas “somos todos iguais”, sendo que não há nenhuma conotação positiva nessa frase, diz o prof. Joãozinho. Em “Anjo negro” a igualdade entre brancos e negros se dá por uma identificação das atrocidades cometidas por ambos – tanto que ao final da peça, lembra o professor, os dois se juntam para matar a filha. Nelson Rodrigues expõe na peça uma visão negativa do ser humano, não existindo os polos “bem” versus “mal”.
Outro ponto importante na peça é a metáfora da cegueira, explica o prof. Joãozinho. Se não fôssemos pautados pela visão, o quão diferente não seriam nossas relações humanas? – questiona ele. Assim, o sentido da visão torna-se uma importante ferramenta para colocar em questão o preconceito racial.
Por fim, o prof. Joãozinho comenta que “Anjo negro” possui temas clássicos do teatro rodriguiano, tais como violência, desejo e sexo – sendo que nessas peças o sexo é o combustível que leva as pessoas a cometer atrocidades. Além disso, pode-se dizer que há uma “amálgama de sentimentos contraditórios”, conforme chama o professor, que seria uma junção contraditória de sentimentos tais como o amor e ódio. Em “Anjo negro”, um exemplo disso seria a relação entre Virgínia e Ismael: ela mata os filhos porque odeia o marido, mas no final da peça fica com ele porque o ama também.