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A quem pertencem os objetos e artefatos históricos?

Retorno de manto tupinambá, depois de três séculos exposto em museus europeus, reacende a discussão sobre a repatriação de peças históricas

Por Luccas Diaz
Atualizado em 7 jul 2023, 18h47 - Publicado em 7 jul 2023, 17h03

Você já parou para pensar em quem são os donos das coisas que estão expostas em um museu? Ou melhor, há um dono para esse tipo de coisa? Deveria haver? Afinal de contas, a quem pertence um objeto ou artefato histórico?

Em tese, pertencem à sociedade como um todo. Mas esta resposta não é exatamente a melhor, e também nem um pouco precisa. Ela abre, inclusive, margens para interpretações equivocadas. Ficou confuso? Vamos fazer um exercício de imaginação para entender melhor a questão.

Faz de conta que você é membro de um povo originário no século 16, em um país que está sendo colonizado. Os objetos produzidos pelo seu povo, além de carregarem uma simbologia e relevância que só vocês compreendem por completo, são usados por todos da comunidade – seja no dia a dia, ou em cerimônias especiais.

Um belo dia, chegam pessoas completamente estranhas ao mundo em que você vive e resolvem levar embora aquelas peças que foram produzidas por sua comunidade. E pior: para aqueles seres desconhecidos, tudo aquilo que é valioso para você vira uma série de objetos meramente exóticos, de beleza e apreciação apenas estética.

Gozando de um controle e poder ilegítimo, os estrangeiros levam essas peças para museus em seu continente, onde ficam expostas. O objeto continua pertencendo à sociedade, sim, mas agora a uma que desconhece a sua utilidade e relevância, limitando-o ao seu aspecto estético e atribuindo a ele o mesmo valor de uma flor exótica ou um animal empalhado.

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A pergunta continua a mesma, mas agora adicionamos uma nova palavra: a quem deveria pertencer os objetos e artefatos históricos?

O continente que roubava histórias

Casos como os descritos acima são a história por trás de milhares de peças que estão expostas em museus do continente europeu. Lar dos maiores colonizadores do Ocidente, o Velho Continente tem uma longa relação de roubos e coletas de objetos e artefatos históricos. Alguns ocorrendo, inclusive, dentro do próprio continente.

É o caso do embate – já emblemático – entre Grécia e Inglaterra acerca das cariátides de Partenon. Atualmente, o Museu da Acrópole, em Atenas, expõe apenas cinco das seis esculturas do famoso templo. A sexta está no Museu Britânico, em Londres – para onde foi levada por um poderoso conde no século 19. A jornada para uma possível devolução avança a duras penas, com o museu inglês se recusando a devolver.

Exposição das 5 cariátides no Museu da Acrópole. Há um espaço vago entre elas.
Falta uma: Museu da Acrópole deixa vago o espaço da sexta cariátide, que está exposta em Londres, no Museu Britânico (Milos Bicanski/Getty Images/Reprodução)

Ainda assim, um movimento de repatriação de peças roubadas ou levadas por colonizadores vêm ocorrendo nas últimas décadas – lenta e timidamente.

Um desses casos ganhou a mídia nos últimos dias. Um dos onze mantos tupinambás remanescentes do século 17 irá retornar ao Brasil, depois de ter ficado mais de três séculos na Dinamarca. Seu novo-velho lar será no Museu Nacional do Rio de Janeiro, quando este reabrir as portas após o incêndio que destruiu sua estrutura, em 2018.

Os mantos são peças solenes para a comunidade tupinambá, considerados materiais vivos. O exemplar que irá retornar ao Brasil tem 1,80 metro de altura, foi feito com penas de pássaros guarás e encerado com cera de abelha. Era, muito provavelmente, vestido apenas por indivíduos importantes e em cerimoniais especiais. A hipótese é que o manto teria sido roubado para ser presenteado aos monarcas europeus do século 17.

Aquarela com ilustrações mostram cenas do povo tupinambá
Ilustrações mostram uso cerimonial do manto tupinambá. Peça passou mais de três séculos exposta na Europa (Wikimedia Commons/Reprodução)

Oficialmente, os representantes do Nationalmuseet, o museu nacional da Dinamarca, afirmam não saber como o manto foi parar em Copenhagen, em 1689. Mas dado o histórico do continente, não é difícil preencher as lacunas. Toda a negociação para a repatriação da peça foi feita diretamente entre o instituto e representantes da comunidade tupinambá. Uma decisão que recebeu o apoio do embaixador do Brasil na Dinamarca, Rodrigo de Azeredo Santos.

Nosso objetivo era que a sociedade dinamarquesa encarasse a devolução como uma cooperação cultural dos dois países para ajudar a reconstruir a instituição brasileira. Queríamos evitar debates sensíveis na Europa sobre a repatriação de artigos que pertencem aos povos originários de outros continentes. Por isso, todo o processo transcorreu em sigilo”, disse à revista Piauí.

Marília Bonas, diretora técnica do Museu do Futebol e do Museu da Língua Portuguesa, e diretora do comitê brasileiro do Conselho Internacional de Museus, destaca que não há um aparato jurídico que determine ou regulamente as devoluções de peças coletadas ou roubadas – por mais que a prática seja recomendada pela ONU e Unesco. Todo o processo é pautado unicamente pela diplomacia cultural entre as duas nações.

“Depende muito da relação entre os países dos quais esses objetos são originários e da importância que eles têm dentro na identidade dessas nações”, explica. “Não há consenso, mas há, sim, uma movimentação que começa na década de 70, pedindo de volta objetos que estavam sendo tratados em museus como objetos estéticos – e que na verdade são objetos sagrados”.

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A importância desses itens

Turistas tiram fotos com escultura da Ilha da Páscoa no Museu Britânico
A escultura Hoa Hakananai’a está em Londres desde 1868, e já foi pedida de volta pelos governantes da Ilha de Páscoa, mas continua exposta no Museu Britânico (Getty Images/Reprodução)

Essa visão superficial seria uma herança presente na maior parte das coleções históricas, etnográficas e etnológicas do mundo. Elas foram construídas a partir do olhar colonizador entre o quem fabricou esses objetos e quem os coletou. “Eu, que sou o ‘padrão’, o europeu, o branco supostamente superior e civilizado, olho para esses objetos na perspectiva do outro, que para mim é curioso, inferior, folclórico”, explica Marília.

A museóloga afirma que a história nunca é neutra. Ela sempre traz o ponto de vista do narrador que a está contando. E, sendo os museus os tradutores dessas histórias, é impossível também que eles sejam neutros. A presença de objetos roubados de todo canto do mundo em museus europeus e norte-americanos só enfatiza qual lado da história está sendo contado.

Um agravante para a situação dos roubos é que esses objetos, por vezes, são pertencentes a grupos que são invisibilizados dentro do próprio país colonizado. Marília ressalta que, no caso do Brasil, os grupos indígenas sofreram um apagamento “estrutural e estruturado” não só das próprias vidas e territórios, mas das “suas identidades dentro da construção da identidade nacional”.

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Os povos indígenas brasileiros, por exemplo, não contam as suas histórias por meio de museus ou exposições – não podemos esquecer que essas são invenções e ferramentas dos povos colonizadores. Seus objetos de valor simbólico e artístico são venerados de outras formas: por rituais, pelo seu uso na comunidade, pela sua proximidade física. Colocar seus objetos em museus não necessariamente faz sentido para essas sociedade. Não à toa, o primeiro museu dedicado aos povos indígenas foi inagurado somente em 1991, no Amazonas. Enquanto o primeiro museu brasileiro, o Museu Nacional do Rio de Janeiro, abriu as portas mais de um século antes, em 1818 – fundado justamente pela família real portuguesa.

Qual o papel dos museus e instituições nessa disputa?

Interior do Museu Nacional do Rio de Janeiro cinco meses após o incêndio
Estrutura do Museu Nacional sofreu um incêndio em 2018, perdendo milhares de peças e artefatos históricos (Agência Brasil/Reprodução)

Determinar que todos os museus ao redor do mundo devolvam as peças expostas aos seus países de origem é algo bem difícil de acontecer. Muitos museus detentores desses objetos alegam que as nações de origem não possuem sequer a mesma estrutura para garantir a preservação correta das peças e que, assim, elas correm risco de seres destruídas. Ainda que seja preciso decolonizar essa afirmação, de fato, quando pensamos que o Museu Nacional pegou fogo em 2018 por conta do histórico de descaso e falta de verba, fica difícil não concordar em pelo menos um ponto.

“A fragilidade da política de museus no Brasil é também um empecilho para esse processo diplomático de devolução”, explica.

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Uma abordagem possível é a que foi adotada pelo Museu da Independência, o Museu do Ipiranga, após a reforma que levou quase dez anos. Ao longo das galerias, há placas de leituras incentivando um questionamento acerca dos “heróis” que estão expostos ali. Em certo painel ao lado de uma das esculturas que homenageam bandeirantes, está a pergunta: “Caçador de esmeraldas ou escravizador de índios?”

Para a museóloga, é papel dos museus estimular esse debate. “Para que, assim, as próprias comunidades que são detentoras desses objetos estejam aptas a pedi-los de volta”, afirma. “Os museus devem ser os mediadores desse processo, ou [no cenário ideal] os detentores da preservação dos objetos em seus países de origem”.

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Retorno de manto tupinambá, depois de três séculos exposto em museus europeus, reacende a discussão sobre a repatriação de peças históricas

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