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‘As Meninas’: resumo e análise do livro de Lygia Fagundes Telles

Publicado em plena ditadura militar, romance mergulha nas subjetividades femininas para retratar as múltiplas formas de opressão

Por Luccas Diaz Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
26 jun 2025, 15h00
as meninas lygia fagundes telles
 (Jeff R. Lonto via Flickr/Canva/Companhia das Letras/Reprodução)
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Três vozes femininas distintas dividem os capítulos de “As Meninas”, romance de Lygia Fagundes Telles publicado em 1973, em pleno regime militar, e que figura na lista de livros da Fuvest 2026. Entre fragmentos de memória, devaneios e confissões, acompanhamos Lorena, Lia (“Lião”) e Ana Clara, jovens que, embora compartilhem o mesmo pensionato em São Paulo, vêm de realidades sociais e familiares radicalmente diferentes.

“Uma polifonia vinculada a um fluxo de consciência”, é como a professora de Literatura Cristiane Bastos, do Poliedro Curso, define a forma como essa narrativa tripla é desenvolvida. Passada em apenas dois dias, no ano de 1969 (informação que é subentendida pela referência ao sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, que resultou na liberação de quinze presos políticos brasileiros), a história nos coloca dentro da mente das três garotas.

Essa técnica de contar histórias é bastante presente em obras do século 20, com James Joyce e Virgínia Woolf sendo os principais representantes internacionais. No Brasil, podemos citar romances como “Angústia”, de Graciliano Ramos, “Os ratos”, de Dyonélio Machado e “Água viva”, de Clarice Lispector.

De início, esse fluxo de consciência pode parecer confuso: em certo momento, estamos na cabeça da afetada Lorena, poucas linhas depois, na da militante Lia, outros ainda na da inconsequente Ana Clara. Os acontecimentos que ocorrem com uma são, por vezes, repetidos na narração da outra, imprimindo em cada os seus sentimentos particulares.

Assim, acompanhamos ao longo de “As Meninas” o ritmo intenso, contraditório e subjetivo dessas três jovens — ou melhor, desses três arquétipos da sociedade da época. Lygia Fagundes Telles nos apresenta um retrato dimensional do que era a jovem brasileira do início dos anos 1970, dialogando com questões como violência de gênero, moralismo, desigualdade social, racismo, repressão política, aborto, abandono, solidão, prazer, culpa e loucura.

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Tempo e personagens

O tempo em “As Menina” é fluido e não cronológico: percorre memórias, devaneios, sensações e reflexões por meio da técnica do fluxo de consciência. Cada trecho pode mesclar tempos distintos, mas, de forma geral, podemos classificar o romance como escrito no presente.

Já a narração alterna entre os pontos de vista das três personagens — que ditam tudo em 1ª pessoa. Ocasionalmente, temos um narrador não identificado em 3ª pessoa, que atua como uma ponte entre o mental e o real, organizando aqui e ali os movimentos protagonistas. Não deve ser encarado como um personagem, é mais um suporte técnico do que uma presença.

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Os principais personagens do romance:

  • Lorena: estudante de Direito, é romântica e sonhadora;
  • Lia: cursa Ciências Sociais, ativa politicamente;
  • Ana Clara: estudante de Psicologia, sofre com dependência química e relacionamentos problemãticos;
  • Madre Alix: a responsável pelo pensionato, com quem frequentemente desabafam;
  • Irmã Clotilde: freira que trabalha no pensionato;
  • Miguel: namorado de Lia, preso;
  • Marcus Nemesius (M. N.): homem casado que Lorena nutre uma paixão;
  • Remo: irmão de Lorena que vive no exterior;
  • Max: namorado de Ana Clara, traficante de drogas;
  • Dr. Algodãozinho: médico que abusava de Ana Clara na infância.

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Sobre o que fala ‘As Meninas’

Ana Clara, não envesga! — disse Irmã Clotilde na hora de bater a foto.
— Enfia a blusa na calça, Lia, depressa. E não faça careta, Lorena, você está fazendo careta! A pirâmide.

“As Meninas” acompanha três jovens universitárias da cidade de São Paulo em um período de greve da universidade. As três dividem o mesmo pensionato, o Pensionato Nossa Senhora de Fátima, mas carregam visões de mundo muito diferentes. “Sei que em estado bruto as minhas meninas existem, estão por aí”, explicou a própria autora sobre o processo de criação das três. Tecendo o trio de protagonistas, Lygia utilizou de alguns dos arquétipos mais comuns a essa fase da vida, mas também à época em que a obra foi escrita.

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Lorena Vaz Leme, estudante de Direito, é branca, rica e católica. Filha de uma família tradicional paulista, ela vive em estado de fantasia constante, se refugiando em seus pensamentos e idealizações, incluindo as em torno de um misterioso homem casado por quem está apaixonada. Sua relação com a mãe, típica mulher rica e alienada, é marcada por tensões e julgamentos mútuos. “Qual delas seria a mais fantasiosa?”, provoca Cristiane Bastos, referenciando o grau de ambiguidade com que Lygia constrói suas personagens.

Lia de Melo Schultz, por sua vez, é militante política. Estudante de Ciências Sociais, ela tem uma postura crítica em relação à repressão do regime. É filha de pai alemão, um ex-oficial nazista refugiado no Brasil, e de mãe baiana, que parece pouco próxima ou interessada em suas lutas. Lião é marcada pelo medo constante de ser perseguida, pela dor da ausência do namorado preso e por uma espécie de solidão que mesmo a militância não consegue curar.

Por fim, Ana Clara Conceição é a mais “trágica” do trio. Vinda de um cenário pobre e com poucos recursos, é filha de mãe solo. Enfrenta dependência química, transtornos alimentares e um histórico de violência. Já realizou abortos e não tem uma relação de afeto com a ideia de maternidade. No livro, sua trajetória é marcada por uma degradação física e emocional que revela as camadas mais cruéis da desigualdade social e da negligência afetiva.

“O que une essas três jovens brasileiras não é apenas a amizade mas a circunstância de serem filhas do mesmo lugar e do mesmo tempo”, escreveu o historiador e crítico Paulo Emílio Sales Gomes no texto de orelha da primeira edição.

A maternidade é um ponto central da narrativa. Não apenas como experiência física, mas como símbolo de continuidade, ruptura e conflito. Lorena vive sob o peso da mãe que representa uma pressão sufocante; Ana Clara, sob o trauma de uma relação materna marcada pela ausência emocional; Lia, em menor grau, também reflete sobre a impossibilidade de equilíbrio entre afeto, liberdade e militância. “A maternidade, assim, é tema essencial para acompanharmos o processo identitário das meninas”, aponta a professora.

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A força do romance reside justamente na forma como Lygia constrói essas subjetividades, ainda que baseando as personagens em estereótipos sociais. Permitindo ao leitor a chance de habitar a mente das três, torna possível acompanhar seus desejos, delírios e dores de dentro para fora — introduzindo os “porquês” de cada coisa.

“Lygia Fagundes Telles consegue dar vida a suas personagens por construí-las de forma profundamente complexa”, afirma Cristiane. O uso da polifonia, isto é, da alternância das vozes narrativas, aliado ao fluxo de consciência, contribui para que cada personagem seja apresentada com uma certa profundidade psicológica única.

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Tanto é que a história não é composta por grandes arcos narrativos ou grandes momentos de ação. É mais como um mosaico de pensamentos, que usa desse rodízio de quatro narradores (as 1ª pessoas das três jovens, mais a 3ª pessoa de um narrador pontual) para compôr uma peça representativa. É uma história que se passa nos detalhes: nada sabemos para além do que as próprias personagens sabem.

É como se seguimos o “olhar presentificado das personagens minuto a minuto”, como define o escritor Cristovão Tezza no posfácio da edição publicada pela Companhia das Letras.

Assim, a linguagem do livro alterna melancolia, ironia e algumas doses de humor ácido. A partir de um vocabulário típico da época, com direito a gírias e expressões populares, constrói-se o panorama externo a partir das reflexões internas de cada uma.

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Para além das questões familiares, “As Meninas” também retrata o impacto das diferentes classes sociais na formação das protagonistas. Lorena representa a elite branca e tradicional; Lia, a classe média com histórico familiar estrangeiro e contraditório; Ana Clara, a pobreza.

“Essas diferentes origens se articulam por meio de diálogos, ações e os próprios pensamentos, demonstrando três visões de mundo diferentes entre si”, observa Cristiane. Ao mesmo tempo, o livro revela como, independentemente da origem, todas elas sofrem, de maneiras diferentes, as opressões impostas pela sociedade patriarcal, conservadora e machista.

Ao longo do romance, há um pano de fundo político constante que atravessa silenciosamente a vida das meninas. A repressão dos anos de chumbo da ditadura militar se manifesta nos diálogos, nos medos, na presença dos militares nos espaços públicos, nos desaparecimentos sem explicação. Lia é quem mais vocaliza essa crítica, mas mesmo Lorena e Ana Clara, mais apáticas a isso, se mostram afetadas, ainda que de formas menos clara.

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Como observa a professora, “há uma denúncia ao autoritarismo e à violência do Estado”, sem necessariamente fazer disso um foco ou apelar para um “didatismo”. Em determinado momento, a autora inclui na trama um relato de tortura de um prisioneiro político, baseado em um panfleto que recebeu durante o processo de escrita.

Apesar disso, a obra passou pela censura da época. Lygia brinca que, provavelmente, foi porque os militares acharam o livro “chato demais” para ler inteiro e chegar nessa parte.

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Contexto histórico

Publicado em 1973, o livro surgiu em um dos períodos mais duros da ditadura militar brasileira. À época, o país era governado pelo general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), período marcado pela censura forte (o famoso AI-5), perseguição política, tortura de opositores e controle dos meios de comunicação.

Dentro desse cenário, Lygia Fagundes Telles optou por abordar a ditadura de maneira indireta, usando os pensamentos e vivências de suas personagens para evidenciar os efeitos da repressão sobre a juventude. A ausência, o medo, a sensação de vigilância constante: todos esses elementos perpassam o livro como marcas da opressão.

Mais do que denunciar a ditadura, o romance revela como esse autoritarismo se infiltra nas relações pessoais, nos corpos, nos afetos. A repressão política se torna também moral, sexual, familiar. E a resistência, por vezes, é silenciosa: uma escolha estética, uma conversa abafada, um aborto escondido, uma fantasia escapista, explica a professora.

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“Nesse país jurássico, divórcio ainda se chamava ‘desquite’ – e condenava a vítima mulher, só ela, à desgraça social perene -, a virginidade era ainda um valor mitológico que valia uma guerra pessoal, homossexuais chamavam-se ‘bichas’ e era preciso decidir o que fzer com eles e o que dizer sobre eles, o racismo ainda se mantinha como uma atitude perfeitamente verbalizável no dia a dia, sem consequências, a família tradicional permanecia um valor moral, social e econômico poderoso e intocável, a cultura letrada circulava no máximo por um quinta da população, privilégio das classes médias urbanas, e, por último, o mundo católico definia-se praticamente como a única referência religiosa com peso político na vida brasileira.”

– Cristovão Tezza, em posfácio de edição publicada pela Companhia das Letras.

Além disso, a obra dialoga com outras publicações marcadas por contextos semelhantes, especialmente na lista atual da Fuvest, composta integralmente por autoras mulheres.

“Podemos notar recursos estilísticos vinculados a narrativas modernas, como o fluxo de consciência, presente também em ‘A visão das plantas’, de Djaimilia Pereira de Almeida, e o uso recorrente do discurso indireto livre, que aparece em diversas obras da lista”, comenta Cristiane Bastos. Segundo ela, o livro também dialoga com ‘Caminho de pedras’, de Rachel de Queirós, ao retratar formas de resistência feminina em períodos autoritários — no caso, a ditadura de Getúlio Vargas.

Mesmo publicado há 50 anos, a questão de gênero, o papel da mulher na sociedade, a (im)possibilidade de ascensão social, o moralismo e o patriarcado continuam como temas contemporâneos.

“Diversos temas que perpassam o livro são urgentes”, reforça a professora. “A repressão e a violência exercidas por um estado ditatorial ainda é uma preocupação atual, basta observarmos a ascensão das ideias da extrema-direita global.”

Quem foi Lygia Fagundes Telles

Lygia Fagundes Telles nasceu em 19 de abril de 1918, em São Paulo, filha de uma pianista e um advogado. Formou-se em Direito na Universidade de São Paulo (USP), mas desde muito cedo se destacou na literatura, com contos e romances que alternavam entre o realismo psicológico e o fantástico, sempre com foco nas emoções humanas, nos dramas íntimos e nas complexidades das relações, especialmente as femininas.

Ao longo de sua carreira, foi reconhecida como uma das maiores escritoras brasileiras do século 20. Recebeu diversos prêmios, como o Jabuti (por três vezes) e o lendário Camões (em 2005). Teve sua obra traduzida para diversas línguas e participou ativamente de debates intelectuais e culturais do país, mesmo durante os períodos mais duros da censura.

Faleceu em 3 de abril de 2022, aos 98 anos, deixando um legado literário para a compreensão do Brasil e da brasileira.

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