Campo geral: resumo e análise da obra de Guimarães Rosa
Leitura obrigatória da Fuvest 2024, a obra narra o amadurecimento do menino Miguilim, em uma Minas Gerais violenta, encantada e também universal
Não é à toa que grandes universidades adotaram, ao longo dos anos, livros de João Guimarães Rosa em suas listas de leituras obrigatórias. Tido como o maior escritor brasileiro do século 20 – lembre que neste páreo estão nomes como Graciliano Ramos e Clarice Lispector! –, Guimarães ganhou sua fama por diversos motivos. Talvez o mais conhecido deles seja sua habilidade em inventar a própria língua, com palavras que podem soar como novas, mas que revelam um Brasil não tão novo assim – o das tradições. Em Campo Geral, livro que compõe a lista de obras obrigatórias da Fuvest, não poderia ser diferente.
O estudante que se prepara para o vestibular da USP conhecerá Miguilim, menino da pacata Mutúm, no interior de Minas Gerais. Mas descobrirá que em suas particularidades, a história dele guarda um universo inteiro. Neste texto, entenda o enredo da obra de Guimarães Rosa, como o contexto histórico da época ecoa nas páginas do livro e de que forma o autor executou um ambicioso plano modernista de Mário de Andrade.
Caso prefira, você também pode ouvir o episódio do podcast Marca Texto que analisa o livro.
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Enredo da obra
Este resumo começa com um alerta do professor de Literatura da USP, Luiz Roncari: não há síntese que dê conta de Guimarães Rosa. “Seria quase a sua negação, já que a sua verdade maior está mais, como ele próprio diz, na sua travessia, quer dizer, na passagem de cada uma das suas palavras, frases e acontecimentos, do que na chegada ao final”, defende em entrevista ao Jornal da USP sobre o livro Campo Geral. Mas é possível, ao menos, situar o leitor a respeito do que se trata este livro.
Narrado em terceira pessoa, mas com um narrador onisciente – já que a história se desenrola do ponto de vista do protagonista – Campo Geral retrata o cotidiano de Miguilim, menino de 8 anos que vive no minúsculo município de Mutúm, Minas Gerais, com sua família. Aqui, vale um parênteses e uma atenção especial ao nome da cidade: sendo um palíndromo, Mutúm é uma palavra que pode ser lida da direita para a esquerda. O professor do Anglo, Fernando Marcílio, enxerga essa como uma metáfora utilizada por Guimarães para representar algo que se encerra em si, sem saída. Além disso, as letras “M” no início e no final servem de representação dos morros de Minas Gerais, enquanto os “U” seriam os vales.
Por ser uma novela, gênero que caracteriza histórias mais curtas e concentradas prioritariamente em um núcleo, o enredo gira em torno dos familiares de Miguilim. Conforme os acontecimentos acometem a casa, o protagonista passa a compreender melhor a própria família e suas origens, assim como constitui-se enquanto sujeito com opinião e visão de mundo próprias. Por tudo isso, apesar de pertencer ao gênero novela, o livro poderia, de certa forma, ser lido como um “romance de formação” – aquele em que o leitor acompanha o processo de desenvolvimento emocional e até moral de um personagem que deixa a infância. É o mesmo processo que ocorre, por exemplo, em Terra Sonâmbula, com o menino Muidinga.
É possível pontuar algumas passagens específicas do livro que contribuem para esse “amadurecimento” de Miguilim. Ele descobre, por exemplo, que a avó falecida Benvinda, mãe de sua mãe, havia sido prostituta – e seria essa a razão pela qual sua a tia-avó Izidra administrava a família com mãos de ferro, temendo que a sobrinha enveredasse pelo mesmo caminho. Miguilim também percebe que a mãe, Nhá Nina, tinha uma relação proibida com o cunhado, irmão de seu marido. Tio Terêz, por sinal, é um personagens mais próximos do protagonista, por quem tem muito afeto, mas acaba se afastando da família quando o irmão desconfia da traição.
Já o pai de Miguilim, Bernardo, é representado como um homem violento, e suas ações são determinantes para que o protagonista abandone cada vez mais a inocência infantil. Em determinado trecho do livro, Miguilim bate no irmão mais velho, Liovaldo, quando o vê espancando um menino pobre da cidade. Em represália, o pai parte para cima de Miguilim e usa um cinto para castigá-lo, nu, em frente a toda a família. Este é um momento-chave para compreender a mudança de personalidade do protagonista.
Era dia-de-domingo, Pai estava lá, veio correndo. Pegou Miguilim, e o levou para casa, debaixo de pancadas. Levou para o alpendre. Bateu de mão, depois resolveu: tirou a roupa toda de Miguilim e começou a bater com a correia da cintura. Batia e xingava, mordia a ponta da língua, enrolada, se comprazia. Batia tanto, que Mãe, Drelina e a Chica, a Rosa, Tomezinho, e até Vovó Izidra, choravam, pediam que não desse mais, que já chegava. Batia. Batia, mas Miguilim não chorava. Não chorava, porque estava com um pensamento: quando ele crescesse, matava Pai. Estava pensando de que jeito era que ia matar Pai, e então começou a rir. Aí, Pai esbarrou de bater, espantado: como tinha batido na cabeça também, pensou que Miguilim podia estar ficando dôido.
A infância do menino também acaba sendo marcada pela morte de muitas pessoas próximas. Primeiro, falece o irmão mais novo Dito, seu conselheiro e melhor amigo – acontecimento que coloca o próprio Miguilim doente na cama. Depois, o pai do menino assassina o ajudante Luisaltino, quando descobre o envolvimento dele com Nhá Nina, e em seguida suicida-se.
O impacto de todos estes acontecimentos na vida do protagonista aparecem em uma metáfora final. Um médico, notando a forma como o menino olhava para as coisas ao seu redor, oferece a ele seus óculos, e quando Miguilim os coloca enxerga o mundo de uma nova forma. O leitor descobre, então, que o protagonista era míope – e, neste caso, a miopia pode ser lida como uma representação do olhar único, de uma criança, que ele tinha sobre a vida, e que deixa de ter quando coloca as lentes diante dos olhos.
“É a miopia que permite ao Miguilim olhar para o mundo de uma maneira diferente do mundo dos adultos, do mundo da exatidão, da precisão”, explica o professor Marcílio. “O mundo não é preciso, não é exato, é por isso que desde o início o Miguilim tem uma visão que não é racional, ela é poética”.
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O Brasil das tradições, no governo do “50 anos em 5”
A história de Campo Geral foi publicada, pela primeira vez, em 1956, em um livro que reunia diversas novelas de Guimarães Rosa intitulado “Corpo de Baile” – hoje, a novela já pode ser encontrada separadamente em uma edição da Editora Global. Embora não referencie diretamente temas políticos, é possível notar a influência do contexto histórico da época não só em Campo Geral como em outras obras de Guimarães. E, aqui, um dado biográfico do autor ajuda na compreensão.
Embora tenha trabalhado grande parte da vida como diplomata, Guimarães Rosa era médico de formação, e foi colega de turma de ninguém mais, ninguém menos, que Juscelino Kubitschek. Enquanto o escritor trabalhava nos anos 1950 em algumas de suas grandes obras, entre elas “Grande Sertão: Veredas“, JK alçava-se ao posto de presidente do Brasil sob um forte discurso desenvolvimentista.
O embate entre o novo e o velho Brasil, entre as grandes cidades e os sertões, certamente é um dos grandes temas de Guimarães Rosa. É como se o autor estivesse mandando um recado para o ex-colega, explica o professor do Anglo. “É como se ele dissesse: vamos modernizar o país, mas vamos trazer conosco tudo aquilo que é a tradição. Modernização não significa superação ou esquecimento daquilo que compõem as matrizes da cultura popular”, afirma.
Este recado está inscrito nas entrelinhas de Campo Geral, por exemplo, quando ao colocar os óculos emprestados pelo médico no final da história, o protagonista finalmente enxerga com clareza sua cidade natal, Mutúm. Ele constata que ao contrário do que afirmava sua mãe, que via no lugar um sinal de atraso e sonhava em se mudar, ele gostava da pequena Mutúm e via beleza nela.
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Campo Geral e o modernismo
Falecido em 1945, Mário de Andrade, um dos precursores do Modernismo brasileiro, não teve tempo de conhecer Campo Geral e outras grandes obras de Guimarães Rosa. Caso tivesse conhecido, teria muitos motivos para celebrar, defende o professor Fernando Marcílio. Ele afirma que um dos maiores projetos de Mário era retomar a cultura e tradições populares, mas dando a elas uma dimensão universal – o que, segundo ele, ocorre com maestria em Campo Geral.
Embora o livro seja ambientado nos confins de Minas Gerais, trata de temas universais da experiência humana, como o amadurecimento, a traição e até mesmo o incesto. Esta, por sinal, é uma marca do regionalismo presente também em outros autores do modernismo, como Graciliano Ramos, que ambienta suas obras no sertão nordestino.
Guimarães, conhecido por inventar uma linguagem própria, é comumente classificado como um autor da terceira fase modernista.