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Conheça Lélia Gonzalez, pensadora pioneira do feminismo negro no Brasil

Mineira foi uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU) e escreveu diversos livros e artigos sobre o tema

Por Luccas Diaz
Atualizado em 2 out 2023, 12h18 - Publicado em 26 set 2023, 18h11
Foto 3x4, em preto e branco, da filósofa Lélia Gonzalez
Da academia à política, Lélia Gonzalez foi um nome de destaque na luta contra o racismo e o sexismo no Brasil  (Lélia Gonzalez Vive via Instagram/Reprodução)
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Professora, autora, intelectual, antropóloga, ativista, tradutora, mulher e negra. Lélia Gonzalez é um dos principais nomes da filosofia e sociologia brasileira – sobretudo no recorte dos estudos da interseccionalidade entre gênero e raça. Durante sua vasta carreira, escreveu verdadeiros clássicos do feminismo negro, como “Por um feminismo afro-latino-americano“, “Democracia racial? Nada disso!” e “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. Foi uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU), lecionou nas principais universidades públicas do Rio de Janeiro (RJ), e contribuiu fortemente com o Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN) e o Nzinga: Coletivo de Mulheres Negras.

Para se ter uma noção da dimensão da autora, durante uma visita ao Brasil, a filósofa, ativista e intelectual estadunidense Angela Davis, em uma palestra em São Paulo, questionou: “por que vocês precisam buscar uma referência nos Estados Unidos? Eu aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês comigo”.

Neste texto, conheça um pouco de sua trajetória e o que defendia. 

“A gente não nasce negro, a gente se torna negro. É uma conquista dura, cruel e que se desenvolve pela vida da gente afora. Aí entra a questão da identidade que você vai construindo. Essa identidade negra não é uma coisa pronta, acabada. Então, para mim, uma pessoa negra que tem consciência de sua negritude está na luta contra o racismo. As outras são mulatas, marrons, pardos etc.”

Lélia de Almeida Gonzalez (1935-1994) nasceu em Belo Horizonte (MG) no dia 1º de fevereiro de 1935. Décima-sétima filha de uma família de dezoito filhos, as origens da autora são semelhantes às de tantos outros brasileiros: filha de um pai operário e uma mãe faxineira. Com a família paterna negra, e a materna indígena, sua própria existência é a personificação da miscigenação brasileira. 

Aos sete anos de idade, Lélia migrou com a família para o Rio de Janeiro na busca por melhores condições de vida. Sempre interessada nos estudos, ingressou no Colégio Pedro II, renomada escola pública considerada na época uma das melhores do país. Depois disso, não demorou para iniciar sua jornada no meio acadêmico – que dividia com jornadas de trabalho sendo babá e empregada doméstica.

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Aos 27, já era formada em História, Geografia e Filosofia, passando a lecionar em escolas públicas e privadas do Rio. Em seguida, concluiu um mestrado em Comunicação Social e um doutorado em Antropologia, feitos que lhe garantiram, aos 43 anos, o cargo de professora e pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), em 1978. Na mesma instituição, tornou-se tornou diretora do departamento de Sociologia e Política.

Desmentindo a democracia racial

“Para a mulher negra, o lugar que lhe é reservado é o menor. O lugar da marginalização. O lugar do menor salário. O lugar do desrespeito em relação a sua capacidade profissional.”

O racismo e o sexismo sempre estiveram presentes na obra de Lélia Gonzalez. Seu nome foi um dos pioneiros no país a interseccionar raça e gênero ao analisar a sociedade brasileira. Ao se debruçar sobre as origens do racismo no país, bateu de frente com os pensamentos consagrados da época que difundiam o mito da “democracia racial” – em que brancos, negros e indígenas viviam sem diferenças no Brasil.

“Durante toda sua vida, Lélia teve uma postura crítica à ideia de democracia racial e ao pensamento de figuras clássicas da sociologia brasileira, como Gilberto Freyre e Caio Prado Jr.“, explica Silvio Sawaya, professor de Filosofia e Humanidades do Curso e Colégio Oficina do Estudante. “Ao ler seus textos, como ‘Racismo e sexismo na cultura brasileira’ (que você poder ler na íntegra online e gratuitamente), podemos aprender de que maneira se desconstrói um discurso que busca invisibilizar o racismo estrutural brasileiro”.

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Ao longo do artigo, publicado em 1984, Lélia escancara o racismo e a violência sexual contra a mulher negra. Para ela, esta violência ocorre de maneira simbólica contra o corpo feminino, ao mesmo tempo em que é física para com o corpo masculino.

Leia um trecho: 

“Como todo mito, o da democracia racial oculta algo para além daquilo que mostra. Numa primeira aproximação, constatamos que exerce sua violência simbólica de maneira especial sobre a mulher negra. Pois o outro lado do endeusamento carnavalesco ocorre no cotidiano dessa mulher, no momento em que ela se transfigura na empregada doméstica. É por aí que a culpabilidade engendrada pelo seu endeusamento se exerce com fortes cargas de agressividade. É por aí, também, que se constata que os termos mulata e doméstica são atribuições de um mesmo sujeito. A nomeação vai depender da situação em que somos vistas.”

Fotografia em preto e branco da filósofa Lélia Gonzalez, ela sorri para a foto.
Aos 27 anos, Lélia era formada em História, Geografia e Filosofia (Wikimedia Commons/Reprodução)

A “dupla jornada” vivida pela mulher negra no Brasil, que sofre simultaneamente as dores do racismo e do sexismo, é o ponto principal de sua obra – justamente a chamada interseccionalidade. Temas como lugar de fala, luta pela memória, patriarcalismo e o papel da mulher negra como “mucama” e “mãe preta” foram alguns dos tópicos amplamente estudados pela autora, em um tempo em que a temática ainda era pouco difundida.

“A mulher negra é responsável pela formação de um inconsciente cultural negro brasileiro. Ela passou os valores culturais negros, a cultura brasileira é eminentemente negra, esse foi seu principal papel desde o início.”

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Luiza Bairros (1953-2016), ministra-chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do Brasil entre 2011 e 2014, escreveu sobre a postura pioneira de Lélia no MNU, assim como o seu papel em discussões acerca da mulher negra no Brasil de forma geral.

“Quando a maioria das militantes do MNU ainda não tinha uma elaboração mais aprofundada sobre a mulher negra, era Lélia que servia como nossa porta-voz contra o sexismo que ameaçava subordinar a participação de mulheres no interior do MNU, e o racismo que impedia nossa inserção plena no movimento de mulheres. Mas, através de muitas e longas conversas e dos textos dela, aprendemos como incorporar um certo modo de ser feminista às nossas vidas e à nossa militância, articulamos nossos próprios interesses e criamos condições para valorizar a ação política das mulheres negras.”

Outro ponto muito debatido na obra de Lélia Gonzalez é a cultura brasileira. Para a filósofa, a cultura é tão importante quanto a política de um povo, sendo por meio dela possível constituir mudanças e abrir novos caminhos de consciência.

Em 1987, ela publicou o livro “Festas Populares no Brasil”, um verdadeiro mergulho nas principais tradições festivas ao redor do país. A penetração do colonialismo e do imperialismo europeu e estadunidense no Brasil foi alvo de críticas em sua obra. “Não só no Brasil, mas em toda América Latina, que ela chama de ‘Améfrica Ladina’, para ressignificar o termo percebido como eurocêntrico”, explica o professor.

Vida política

Lélia fala em microfone, ao lado de outros protestantes.
Lélia Gonzalez em ato contra a discriminação racial, em 1978 (Januário Garcia/Reprodução)

Simultaneamente à vida acadêmica, Lélia trilhou uma longa trajetória na política e na militância. Sua contribuição para a fundação do MNU, em 1978, é uma de suas participações mais recordadas, mas não deve ser vista como a única. Sua atuação política, inclusive, botou um alvo em suas costas durante a Ditadura Militar (1964-1985). Já perto do fim do regime, em 1983, se juntou com outras ativistas e formou o Nzinga: Coletivo de Mulheres Negras, no Rio de Janeiro, órgão ainda ativo e que busca mitigar a opressão do racismo e do machismo na sociedade.

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Em 1985, fez parte da primeira formação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), órgão vinculado ao Ministério da Justiça e criado naquele ano com o intuito de pensar políticas públicas para a integração igualitária da mulher na sociedade.

Lélia participou também da fundação do Partidos dos Trabalhadores (PT), em 1980, partido pelo qual candidatou-se a deputada federal dois anos depois. Em 1986, tentou novamente, desta vez ao cargo de deputada estadual, pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT). Em ambas as tentativas, não foi eleita, ainda que com um expressivo número de votos. 

Por onde começar

Para o estudante que deseja aprofundar os estudos na obra da filósofa, o professor Silvio Sawaya recomenda alguns títulos.

“Existe o livro que traz diversos ensaios, intervenções e entrevistas que mostram um panorama sobre a autora, chamado ‘Lélia Gonzalez: por um feminismo afro-latino-americano‘, organizado por Flávia Rios e Marcia Lima e publicado pela editora Zahar. Dentre os textos indicaria: ‘A juventude negra brasileira e a questão do desemprego’, ‘Por um feminismo afro-latino-americano’, ‘Democracia racial? Nada disso!’ e o já citado ‘Racismo e sexismo na cultura brasileira’”.

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Ele também cita o episódio do dia 21 de novembro de 2020 do podcast Ilustríssima Conversa (disponível acima), que faz um panorama geral sobre a vida da Lélia e a importância de sua obra. Por fim, a edição 225, de março de 2020, da Revista Cult, em que a filósofa foi a matéria de capa.

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