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“Felicidade Clandestina” – resumo e análise da obra de Clarice Lispector

Entenda o enredo e os principais aspectos da obra

Por Redação do Guia do Estudante
Atualizado em 12 abr 2018, 18h05 - Publicado em 28 set 2012, 22h21

Lançado inicialmente em 1971, “Felicidade Clandestina” reúne diversos textos de Clarice Lispector que foram escritos em diversas fases da vida da autora. Os textos reunidos nessa obra podem mais facilmente serem classificados como “contos”, mas como Clarice não se prendia a convenções de gêneros, todo o conjunto reunido em Felicidade Clandestina migra de gênero em gênero, ora aproximando-se do conto, ora aproximando-se da crônica, ou por vezes sendo quase um ensaio. De fato, muitos dos textos reunidos neste livro foram publicados como crônicas no Jornal do Brasil, para onde Clarice escrevia semanalmente de 1967 a 1972.

Ao todo, Felicidade Clandestina reúne 25 textos que tratam de temas diversos, tais como a infância, a adolescência, a família, o amor e questões da alma. Assim como a crônica que dá título ao livro, muitos dos textos apresentam algo de autobiográfico, trazendo recordações da infância da autora em Recife, alguma personagem que marcou seu passado, etc. Através da recordação de fatos do seu passado, Clarice Lispector busca nos contos fazer uma investigação psicológica de autoanálise.

Uma das técnicas mais empregadas nesses contos é a da narrativa em fluxo de consciência, que é uma tentativa de representação dos processos mentais das personagens. Esse tipo de narrativa não possui uma estrutura sequencial, uma vez que o pensamento não se expressa de uma forma ordenada. Dessa forma, seria como se o autor não tivesse controle sobre a personagem e a deixasse entregue a seus próprios pensamentos e divagações.

Assim, dentro desse processo de associação de ideias e pensamentos desconexos, em um dado momento a personagem passa por um momento de epifania, que é uma súbita revelação ou compreensão de algo. Ao passar por esse momento de epifania, a personagem descobre a essência de algo que muda sua visão de mundo ou sua própria vida. Através desses momentos de epifania, personagens que poderiam ser considerados sem relevância alguma aos olhos da sociedade ganham profundidade psicológica e existencial.

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Contos representativos
“Felicidade clandestina”
Nesta crônica a narradora em primeira pessoa conta sua primeira experiência com um livro. Porém, este livro é de uma menina má que o oferece emprestado para a narradora, mas sempre inventa uma desculpa para não entregar o livro a ela. Até que a mãe da menina má descobre isso e entrega o livro para a narradora, que passa a saborear o livro como se fosse um amante. Esta crônica tem um cunho autobiográfico, como comprovou a própria irmã da escritora dizendo que se lembra da “menina má”.

O ponto central desse texto é o conceito de “felicidade”. Nele, a escritora parece se questionar “afinal, o que é felicidade?”. A menina presente na crônica parece conhecer bem o dito popular “felicidade é bom, mas dura pouco”, uma vez que ela se utiliza de todas as formas para prolongar seu sentimento de felicidade. Uma vez que ela ganhou permissão para ficar com o livro pelo tempo que desejasse, ela o deixa no quarto e finge esquecer que o possui, só para se redescobrir possuidora dele. Dessa forma, sua felicidade aparece como um sentimento “clandestino”, já que nem ela mesma pode se conscientizar de sua própria felicidade para que esse sentimento não acabe. Concluísse, portanto, que a felicidade deve ser descoberta a todos os momentos e nas coisas mais simples.

“Amizade sincera”
Este conto é a história de dois homens que se tornam amigos inseparáveis, mas em dado momento começa a faltar assunto entre eles. Os dois vão morar junto, mas não conseguem mais voltar a ser amigos como antes e, por fim, eles tomam rumos diferentes na vida e sabem que não irão mais se ver.

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Este conto tematiza os paradoxos das relações humanas e o individualismo das pessoas. Se por um lado queremos manter uma amizade a todo custo, a ponto de quase “ceder a alma” ao amigo, quem de fato gostaria de “ceder a alma”? – pergunta-se o narrador. Assim como aparece em outros contos de Clarice, a relação entre as pessoas parece estar fundamentada em uma “relação de troca”. No conto, os dois amigos já não encontram mais o que “trocar” entre si e disso nasce uma grande melancolia e desilusão, corroendo a amizade entre os dois. Por fim, o que sobra de sincero aos dois é saber que eles não mais se falarão porque escolheram isso.

“O ovo e a galinha”
Este é um dos contos mais emblemáticos de Clarice Lispector. A partir da visão de um ovo que está sobre a mesa da cozinha, o narrador inicia uma série de pensamentos a cerca das mais diversas coisas. Esses pensamentos aparecem de forma aleatória e em fluxo de consciência, onde uma ideia, sentimento, sensação etc, desencadeia outro e assim sucessivamente. Dessa forma, ele vai desconstruindo o objeto que está sendo visto e o ovo passa, então, a ser uma representação de qualquer coisa, física ou abstrata (liberdade, amor, vida, etc.). Assim, através dessa “desconstrução”, o ovo deixa de ser simplesmente um ovo e torna-se a chave para a compreensão do amor, da vida e da própria existência humana.

“Os desastres de Sofia”
Neste conto a narradora relembra seus tempos de escola. Por volta dos nove anos de idade, ela nutre uma espécie de amor pelo professor, um homem feio e aparentemente frustrado. A menina-narradora entra em um jogo sádico com o professor, de forma que ela faz tudo para que ele a odeie. Até que em certo momento da narrativa ele pede para que a sala escreva uma história a partir de dados que ele fornece. Ansiosa para ser a primeira a terminar, a menina-narradora escreve a sua história rapidamente e sai da sala triunfante. Porém, após o professor ler o texto que ela escreveu, ele se mostra impressionado e até sorri. A menina-narradora percebe que o olhar do professor não tem mais o ódio de antes, e ela se desespera com sua nova realidade. A partir disso ocorre um momento de epifania em que ela se depara com a verdade do mundo e sua vida muda.

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O título do conto é provavelmente uma alusão a um livro infantil escrito no século XIX pela francesa Condessa de Ségur e que também se chama “Os desastres de Sofia”. Porém, no conto de Clarice, o nome “Sofia” não aparece nenhuma vez além do título. Este nome, “Sofia”, é de origem grega e significa “sabedoria”. Assim como em muitos outros contos da escritora, o núcleo temático de “Os desastres de Sofia” parece ser o da autodescoberta. Isso parece ser sugerido também pela ausência do nome Sofia no conto, pois a personagem estaria em busca de sua própria identidade, o que acontece só ao final do livro com o momento de epifania.

Por fim, cabe ressaltar que a narradora traça o seu passado de uma forma autobiográfica, mas ela não o faz de uma forma “fiel”. Ao invés de simplesmente contar os fatos e acontecimentos de seu passado, ela o reinventa a partir das experiências do “eu” presente. Isso fica bem marcado em passagens em que a narradora confessa ter dúvidas sobre o que aconteceu ao certo em determinadas ocasiões e se mostra constantemente hesitante. Assim, através da reconstrução não sistemática de seu passado, a narradora constrói a imagem que faz de si mesmo no seu presente.

Comentário do professor
O Prof. Marcílio Gomes Júnior, da Oficina do Estudante, frisa que Felicidade Clandestina foi publicado no auge da carreira de Clarice Lispector, sendo o seu quarto livro de contos. Como escritora, pode-se dizer que Clarice já havia atingido sua maturidade e conseguia realizar com maestria o que seria o ponto chave de suas obras: o estudo e análise do ser humano. Através de um mergulho no universo interior das personagens, Clarice trazia à tona temas existencialistas e as contradições, dúvidas, inquietudes do ser humano. Nesse ponto, o prof. Marcílio comenta que ela se aproxima bastante de escritores como o russo Dostoievsky (autor de Crime e Castigo), e dos brasileiros Machado de Assis e Graciliano Ramos. Em seus contos, Clarice também explora muito o tema da família e seus confrontos, exibindo o cerne da família brasileira.

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Quanto à questão existencialista, o prof. Marcílio chama atenção para o fato de que esse existencialismo sempre conduz o sujeito (as personagens) para um inevitável isolamento. Assim, em toda a obra de Clarice Lispector teremos personagens desconfiadas, inadaptadas ao meio em que vivem, com temores e inquietações. Através de um mergulho no interior do ser humano, essas personagens cheias de crises existenciais sempre irão passar por um momento de epifania, que seria um “momento de tomada de consciência” ou um “momento de iluminação”. Esta experiência epifânica irá ampliar o campo de percepção da personagem e ela será elevada a outro nível de consciência, passando a ver o mundo a sua volta de outra maneira. Assim, após ver a existência humana de um novo modo, a personagem ou voltará a ser o que era, mas agora com uma consciência elevada, ou então irá manter seu novo estado de consciência.

Por fim, o prof. Marcílio ressalta que como a preocupação de Clarice é com a personagem em si e sua viagem ao interior do ser humano, o cenário físico ao redor é muitas vezes deixado de lado. A não ser que o cenário interfira diretamente ou ativamente na história, não encontraremos nenhuma passagem descritiva nos contos de Clarice. Além disso, a escritora utiliza uma linguagem subjetivada, abusando de adjetivos, metáforas e comparações. Do ponto de vista formal, vale a pensa ressaltar que Clarice utiliza um chamado estilo circular, que consiste na repetição sistemática de palavras, expressões ou frases, para conseguir um efeito enfático.

Sobre Clarice Lispector
Clarice Lispector nasceu em 10 de dezembro de 1920 em Tchetchelnik, Ucrânia. Quando tinha cerca de dois meses de idade, seus pais migraram para o Brasil, terra que considerava como sua verdadeira pátria. Em 1924, a família mudou-se para o Recife, onde iniciou seus estudos. Por volta dos oito anos, Clarice perdeu sua mãe. Três anos depois, a família muda-se para o Rio de Janeiro.

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Ingressa em 1939 na Faculdade de Direito, e publica no ano seguinte seu primeiro conto, Triunfo, em uma revista. Forma-se em 1943 e casa-se no mesmo ano com o diplomata Maury Gurgel Valente, com quem teve dois filhos. Durante seus anos de casada, mora em diversos países pela Europa e nos Estados Unidos.

Em 1944, publica seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, vindo a ganhar o Prêmio Graça Aranha, da Academia Brasileira de Letras, no ano seguinte. Separa-se de seu marido em 1959 e volta para o Rio de Janeiro com seus dois filhos. No ano seguinte, publica seu primeiro livro de contos, Laços de família.

Em 1967, um cigarro provoca um grande incêndio em sua casa e Clarice fica gravemente ferida, correndo risco inclusive de ter sua mão direita amputada. Porém, após se recuperar, continua com sua carreira literária publicando diversos livros.

Publica em 1977 seu último livro, A hora da estrela, vindo a ser internada pouco tempo depois com câncer. A escritora vem a falecer no dia 9 de dezembro do mesmo ano, véspera de seu aniversário de 57 anos.

Suas principais obras são: “Perto do coração selvagem” (1944), “Laços de família” (1960), “A maçã no escuro” (1961), “A legião estrangeira” (1964), “A paixão segundo G.H.” (1964), “Felicidade clandestina” (1971), “Água viva” (1973) e “A hora da estrela” (1977).

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