Partidos do campo da esquerda – como o PT, PDT e PSOL – e congressistas outrora aliados ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) entraram ontem com um “superpedido” de impeachment do chefe do Executivo – que já acumula um número recorde de pedidos de impedimento. Todos engavetados.
Uma pergunta recorrente aos opositores e críticos do presidente, dentro e fora do sistema partidário, é: por que ele não cai, mesmo com todas as denúncias? Para responder a essa pergunta, precisamos, antes, entender o processo de impeachment em sua complexidade.
Impeachment surgiu na… Monarquia?
O impeachment remonta à Inglaterra medieval, época em que surgiu o primeiro parlamento daquele país. Nesse período, o líder político inglês era o rei, que não poderia ser destituído. No entanto, os altos funcionários da monarquia estavam sujeitos a esse processo.
Em 1376, o Lord Latimer sofreu o primeiro processo de impedimento do mundo por meio da Câmara dos Comuns, o Parlamento Inglês. O caso mais célebre de impeachment na Inglaterra na Idade Média foi o do escritor e cientista britânico Francis Bacon. Em 1621, ele ocupava um cargo semelhante ao que hoje chamamos de primeiro-ministro.
Essa, todavia, é apenas a origem do conceito. É importante lembrar que a ideia de Estado tal como conhecemos começa a ganhar corpo a partir do século 18 e vai se estabelecendo nos séculos seguintes, com avanços e retrocessos.
Como surgiu o atual impeachment
A atual forma de impeachment surge com a Constituição dos Estados Unidos (Artigo 1, seção 3 e Artigo 2, seção 4). Alexander Hamilton – figura fundamental para a História americana – foi quem defendeu, por exemplo, que o julgamento do presidente da República no Senado fosse feito pelo presidente da Suprema Corte e não pelo presidente do Senado, onde se vota a perda do mandato do presidente.
É importante notar que, nos Estados Unidos, um presidente pode sofrer impeachment e não perder o cargo. “Sofrer impeachment” por lá significa que o presidente é formalmente processado pela Câmara (House of Representatives) e o caso segue para o Senado, onde são necessários 2/3 de votos para que o presidente perca o cargo.
Até hoje, três presidentes americanos sofreram impeachment – Andrew Jhonson, Bill Clinton e Donald Trump – mas apenas o primeiro perdeu o mandato, nos conflituosos anos pós-Guerra Civil (1861-65). O republicano Richard Nixon renunciou na esteira do escândalo de Watergate durante o processo. Senadores e juízes também foram processados e destituídos nos Estados Unidos ao longo de sua História.
Os termos para impeachment e deposição nos EUA estão previstos no Artigo 2, seção 4 da Constituição. São vagos – como aliás, vários pontos da Carta Magna estadunidense. Os termos para abertura do inquérito são, assim, definidos a cada pedido de impeachment com base na Constituição.
E no Brasil?
O impeachment brasileiro tem evidente inspiração no dos Estados Unidos e é admitido no país desde 1891, quando foi outorgada a primeira carta constitucional da República brasileira.
Segundo a Constituição de 1988 – vigente no país –, em seu Artigo 86, “Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade.”
O presidente, segundo a Carta, “ficará suspenso de suas funções” ao incorrer “nas infrações penais comuns, se recebida a denúncia ou queixa-crime pelo Supremo Tribunal Federal”, “nos crimes de responsabilidade, após a instauração do processo pelo Senado Federal”, não podendo, “na vigência de seu mandato […] ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções.”
Como no caso dos Estados Unidos, o processo de impeachment não está sujeita somente aos ocupantes do cargo máximo do Executivo. Membros de outros poderes também estão sujeitos a impeachment, assim como prefeitos e governadores.
Ao contrário dos Estados Unidos, o Brasil tem uma legislação que regula o impeachment, não estando este restrito apenas à Constituição. Trata-se da Lei 1079/50 (Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950), que define quais são os crimes de responsabilidade, como se dará o processo e as eventuais punições.
Os crimes de responsabilidade do presidente da República são: atentar contra “A existência da União”, “O livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados”, “O exercício dos direitos políticos, individuais e sociais”, “A segurança interna do país”, “A probidade na administração”, “A lei orçamentária”, “A guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos” e “O cumprimento das decisões judiciárias”.
Quantos presidentes sofreram impeachment no Brasil?
Você deve ter respondido mentalmente: ora, dois! Collor e Dilma. Só que você se enganou. Na verdade, quatro presidentes sofreram impeachment no Brasil: Fernando Collor (1992), Dilma Rousseff (2016), Café Filho e Carlos Luz (1955)
Em junho de 1954, Getúlio Vargas chegou a sofrer um processo de impeachment que não foi adiante.
No final de 1955, na esteira da crise política iniciada ainda em agosto de 1954, com o suicídio do presidente Vargas, opositores planejavam um golpe de Estado. Para impedir, forças políticas e militares destituíram os interinos Café Filho, que havia se afastado da presidência, e Carlos Luz, seu sucessor. Ambos afastados sem direito a processo.
De Collor a Bolsonaro
Até 1992, o impeachment era uma prática pouco usual no Brasil e na América Latina. Desde a queda de Collor, no entanto, começaram a se proliferar como saída política para destituir presidentes que eram mais fracos que seus opositores, não respondiam a crises ou contavam com forte rejeição popular. Estudiosos do tema consideram, inclusive, que o impeachment substituiu os tanques nos golpes latino-americanos.
E o que é necessário para um presidente ser derrubado? Por que Bolsonaro não cai?
O impeachment é uma hecatombe política. Ao contrário do que ocorre com o voto de desconfiança do parlamentarismo – em que se dissolve determinado governo e se realizam de pronto novas eleições, estabelecendo (ou não) um novo governo –, o processo de impeachment é lento e pode dividir uma sociedade. Ou mesmo gerar crises políticas ainda maiores – e mais longevas. É o caso, por exemplo, do impeachment do ex-presidente venezuelano Carlos Andrés Pérez em 1993, que foi destituído num contexto de forte crise venezuelana e levou à ascensão de Chávez cinco anos depois.
Para que um impeachment ocorra não basta que o presidente cometa crimes de responsabilidade – mesmo porque, diante da ambiguidade das leis a respeito, quase todo presidente esta sujeito a eles – ou que não tenha maioria no Legislativo. É preciso uma somatória de fatores, tais como: uma crise econômica e política que não consiga enfrentar, alto desemprego, confronto com outros poderes, rejeição de diferentes setores da sociedade (de trabalhadores a empresários), perda de apoio Legislativo, um sucessor confiável e também um desenho de um novo governo ou projeto de país.
Collor e Dilma caíram pela união desses fatores. A diferença é que no impeachment de Collor havia um consenso entre a população quanto à necessidade de o destituir, o que não ocorreu no caso de Dilma. A alta rejeição da presidente não se configurou em apoio ao impeachment. Ou seja, mesmo tendo um índice de aprovação inferior a 10% na ocasião, Dilma contava com algum apoio social para manter-se no cargo. Ainda que esse apoio, à época, não fosse suficiente para mantê-la no cargo, não foi tampouco o bastante para legitimar seu sucessor para uma parcela expressiva da população.
Isso ajuda a responder por que Bolsonaro não cai. O presidente, mesmo vendo sua rejeição aumentar, conta com apoio social. Setores empresariais temem a interrupção da agenda de reformas econômicas, liderada pelo ministro Paulo Guedes. O contexto da pandemia impede manifestações consistentes, como houve contra Collor e Dilma. Lideranças partidárias seguem aliadas ao presidente ou mesmo têm uma posição ambígua quanto impeachment – sobretudo por conhecer seus efeitos e temer outra hecatombe apenas cinco anos depois da destituição de Dilma.
Fontes
Notícias do Planalto (Companhia das Letras), Mario Sergio Conti
Alexander Hamilton (Intrínseca), Ron Chernow
“Estas verdades: a história da formação dos Estados Unidos”, Jill Lepore
“Getúlio: uma biografia (v. 3)” (Companhia das Letras), Lira Neto
“Mãe Pátria: a desintegração de uma família na Venezuela em colapso”, Paula Ramón
4 autoridades que sofreram impeachment mundo afora – Politize!