(Marco Di Lauro/Getty Images News)
Em tempos de escândalos, a imigração é, provavelmente, o único assunto que consegue unir a classe política no Congresso Nacional. Uma prova disso foi dada em maio de 2015, quando a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CRE) do Senado aprovou, em primeiro turno, a Lei da Imigração, que deve substituir o Estatuto do Estrangeiro, em vigor nos últimos 35 anos. Não é pouca coisa. E é um caminho que pode colocar o Brasil na vanguarda.
“A nossa legislação ainda é do tempo da ditadura militar [de 1980], com um caráter muito mais regulatório. A nova lei que está se discutindo tem um viés muito mais humanitário. Os nossos vizinhos no Mercosul (Argentina, Uruguai) já atualizaram as suas legislações e até dão direito ao voto, por exemplo”, disse ao Brasil Post a coordenadora do curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina (FASM), Rita de Cássia do Val Santos.
Mestre em políticas sociais e consultora de programas do Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), Rita de Cássia avaliou que o Brasil faz parte de um cenário global no que diz respeito aos fluxos migratórios. Entretanto, ao contrário dos países europeus, que estudam inclusive medidas militares para barrar os imigrantes — sobretudo os africanos, as autoridades brasileiras sinalizam uma abordagem bastante diferente. E mais correta:
“O Brasil passou a pensar nessas questões mais recentemente, a partir de 2000. Sempre fomos um País mandava pessoas para fora, e hoje isso mudou, por isso há a necessidade de repensar como lidamos com a imigração. A estratégia é receber pessoas e se tornar um lugar seguro para viver, com uma vida digna. Se na Europa se discute a imigração sob o âmbito da segurança, aqui estamos buscando punir sim aqueles que lucram com esse tráfico de pessoas.”
O autor do projeto em análise no Senado é o tucano Aloysio Nunes (PSDB-SP). O senador é um enfático defensor de posições que desagradam aos movimentos sociais, como a redução da maioridade penal, porém no tema imigração ele concorda que é preciso acolher e não criminalizar os imigrantes.
A chamada Lei das Migrações foi desenvolvida junto a especialistas desde 2013, em um esforço do Ministério da Justiça para trazer um outro olhar para uma realidade presente e que demanda regulamentação.
“Não podemos tratar as vítimas como vilões. Agora, que se cumpra a lei e se punam os verdadeiros criminosos”, afirmou o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, em maio.
Para o Palácio do Planalto, lidar com os imigrantes pode dar a projeção internacional que o País vem buscando há anos, mas que naufragou em metas como obter um assento no Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU).
O pensamento se justifica. De acordo com o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), órgão vinculado ao Ministério da Justiça, as solicitações de refúgio no Brasil cresceram 2000% nos últimos quatro anos.
“É uma questão premente ao Brasil, no qual as três esferas governamentais – municipal, estadual e federal – precisam conversar, a fim de criar políticas públicas de absorção e integração. Não podemos ser surpreendidos, temos de ter coragem e lisura para enfrentar o tema com propriedade. Isso tem a ver com projeção no cenário internacional também, mostrando um viés pacífico ao mundo. Temos de fazer disso uma vocação. É algo que vai muito além dos partidos políticos”, complementou Rita.
Preconceito e xenofobia em uma nação de imigrantes
Até maio deste ano, a Polícia Federal informou que o Brasil possuía mais de 1,87 milhão de estrangeiros registrados. É a consolidação de um crescimento que vem avançando desde 2010, e cuja presença pode ser ainda maior, levando-se em conta que a imigração ilegal ainda existe.
No noticiário, a chegada persistente de haitianos é a bola da vez. Segundo a PF, o país caribenho enviou ao Brasil mais de 39 mil pessoas. Só neste ano, o Estado do Acre registrou até março a entrada de pouco mais de 4,7 mil haitianos.
A entrada pela fronteira com o Peru, porém, é apenas parte de uma longa jornada dos haitianos, que costumam ficar em trânsito por mais de 20 dias. Tanto a entrada dos imigrantes pelo Acre quanto a sua ida para outros estados, prioritariamente aqueles no Sudeste e Sul do Brasil, vêm gerando rusgas entre autoridades. O entendimento de como lidar com o assunto, ainda visto como problema, é outro desafio do momento.
A acolhida humanitária costuma ser a regra no caso dos haitianos, porém o raciocínio para a construção de soluções vai além de uma nova legislação. É preciso, para começar, que os brasileiros não esqueçam suas raízes históricas.
“O povo brasileiro, por formação, possui uma grande mistura e a presença de imigrantes sempre foi uma realidade. Digo mais: o Brasil tem uma dívida histórica com os seus imigrantes. No passado a instabilidade econômica fez brasileiros buscarem melhores condições de vida em outros países. É um processo natural, é justo que se busque uma vida melhor. Qual é a razão para o Brasil não ser esse destino? Temos de assumir esse problema”, afirmou a consultora da ONU.
Não se pode perder de vista que, para muitos brasileiros, ainda é difícil ver com naturalidade a chegada de estrangeiros que querem obter direitos comuns aos cidadãos nascidos aqui. Vencer tal raciocínio é o que poderá impedir o surgimento de movimentos xenófobos e dar mais clareza a uma imigração que não vai cessar, mas sim crescer nos próximos anos.
“Temos que tomar cuidado porque existe esse pensamento do se não tem nem para nós, como vamos dividir?. O brasileiro não tem esse viés xenófobo, até pela sua formação, mas temos de vencer essa ideia de que o mundo é um lugar cheio de muralhas, no qual o cidadão não pudesse circular livremente. Já há haitianos e outros imigrantes trabalhando informalmente. Por que não podemos trazê-los para formalidade?”, disse Rita de Cássia.
“Eles [imigrantes] já são consumidores de produtos e serviços aqui, seja em pouco ou grande volume. Se lembrarmos que a maior parte da carga tribuntária vem de produtos e serviços, isso aumenta a arrecadação e aquece a economia. Muitos se estabelecem como microempresários e também contribuem para isso.Só temos a ganhar. Além disso, muitos ocupam postos de trabalho que os brasileiros não querem. É algo que acontece em todo o mundo”, emendou a especialista.
“A Europa paga o preço. E nós também” |
O acaso não explica o momento vivido quanto aos fluxos migratórios no mundo. Para Rita de Cássia do Val Santos, a “Europa paga o preço” por ter participado do processo de empobrecimento e exploração das nações africanas durante o período de colonização e partilha, que em alguns países africanos durou até a década de 70. Mas o Brasil também tem a sua parcela de culpa nesse processo atual. “O País se serviu durante muito tempo de mão de obra escrava, foi o último a abolir essa vergonha. Agora estamos fazendo a lição de casa, com maior reconhecimento do estrangeiro e um acolhimento sendo feito de uma maneira amável. Já na Europa o movimento é o inverso”, disse.
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A melhora nos indicadores sociais, propagada durante a década passada no Brasil, também é um fator que tornou o País não mais um destino de passagem, mas sim final de muitos povos – além dos haitianos, africanos e imigrantes do Oriente Médio engrossam as estatísticas de recém-chegados. “A Copa do Mundo [de 2014] ajudou nesse movimento. Propagou-se essa imagem de Nova América, de uma nação que propicia emprego, estabilidade, serviços sociais etc. Se o sujeito antes vinha para cá, seja pelo Acre, seja pela Tríplice Fronteira (no Paraná), apenas como passagem para seguir para outros países, hoje ele faz questão de permanecer aqui”, concluiu.
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