Na manhã em que completa 30 anos, Josef K é visitado no quarto de pensão onde mora por dois sujeitos que o informam que está preso. Os homens se recusam a revelar a natureza da acusação e comunicam ao réu que ele poderá responder ao inquérito em liberdade, desde que se apresente para interrogatórios periódicos no tribunal. É esse o argumento inicial de “O Processo” (1925), romance que Franz Kafka (1883-1924) – advogado que se ocupou vários anos de um ofício burocrático em uma companhia de seguros e que se tornou, segundo o filósofo francês Jean-Paul Sartre, “pai da literatura moderna” – nunca concluiu.
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Nascido em Praga, quando a cidade ainda pertencia ao Império Austro-Húngaro (hoje a cidade pertence à República Tcheca), Kafka cresceu sob a influência de três culturas: a judaica, a alemã e a tcheca. Essa identidade multifacetada fez com que ele se sentisse, muitas vezes, estrangeiro em sua própria terra.
A sensação de alheamento (somada a uma relação conturbada com o pai autoritário) é traço marcante de sua biografia – e teve intenso reflexo em sua produção literária, publicada em grande parte postumamente por seu amigo Max Brod. Em “A Metamorfose” (1915), um de seus escritos mais conhecidos, a sensação de inadequação é levada ao extremo: o protagonista, o caixeiro-viajante Gregor Samsa, desperta certa manhã transformado em inseto.
Em sua curta existência, Kafka travou experiências com as pesadas engrenagens da burocracia e da Justiça estatais. Com elas, formou o esteio de obras como “Na Colônia Penal” (1914), “O Castelo” (1926) e, claro, “O Processo”. Em comum, as obras compartilham o drama de personagens que se vêem tolhidos por forças a um só tempo arbitrárias e desconhecidas. Para o crítico literário alemão Wolfgang Kayser, a saga desses personagens reflete “a estranheza que não provém do eu, mas da essência do mundo e da falta de concordância entre ambos”. Ou seja, percebe-se, nessas histórias, o desespero do homem diante do absurdo que parece rodeá-lo.
Em “O Processo”, Joseph K aflige-se com a falta de sentido que lhe corrói a vida. Seus relacionamentos afetivos são artificiais e seu cotidiano, metódico e vazio. É o processo que faz com que K desperte para a própria existência: ele ensaia um relacionamento amoroso com sua vizinha e busca ajuda de outras pessoas, na vã esperança de se livrar do inquérito.
Do ponto de vista histórico, “O Processo” pode ser considerado uma antevisão do nazismo, cujas raízes já podiam ser sentidas durante a vida de Kafka. A ascensão do nacional-socialismo e o antissemitismo convertido numa indústria de morte a condenar réus baseada no argumento despropositado da raça acabaram tornando-se o contraponto amargo e real da alegoria kafkiana.
A narrativa do romance é marcada pela mistura do real e do simbólico, pelo mergulho no inconsciente e pelo emprego de metáforas que por vezes podem soar exageradas ou grotescas, procedimentos que se repetem em toda a obra do autor. O uso desses recursos o situa dentro da escola expressionista, movimento estético focado na expressão da angústia, da dor e do mal-estar do ser humano perante a realidade lhe que escapa.
Mas o escritor é tão singular em seu universo literário que o termo kafkiano alcançou as páginas dos dicionários, como sinônimo de algo evocatório de uma atmosfera de pesadelo, de absurdo, em um contexto que se furta à lógica ou à sensatez. Ou, como observou o crítico americano Harold Bloom, “a expressão kafkiano se tornou um termo universal para o que Freud chamou de ‘o fantástico’, uma coisa ao mesmo tempo conhecida e estranha para nós”.
Título: O Processo
Autor: Franz Kafka
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Esse texto faz parte do especial “100 Livros Essenciais da Literatura Mundial”, publicado em 2007 pela revista Bravo!
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