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O Senhor das Moscas: conheça o livro que inspirou a série Yellowjackets

Livro clássico de 1954 conta a história de um grupo de jovens vivendo em uma ilha deserta após um acidente aéreo. Parece familiar?

Por Luccas Diaz
Atualizado em 9 Maio 2023, 12h13 - Publicado em 5 Maio 2023, 18h38
Montagem com uma cena do filme "O Senhor das Moscas" de 1990, e o pôster de "Yellowjackets"
A série estadunidense não é necessariamente uma adaptação do clássico, mas a inspiração é clara  (IMDb/Divulgação)
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Após a queda de um avião, um grupo de jovens estudantes se vê preso em um lugar remoto e sem contato com a civilização. Para sobreviver, são obrigados não apenas a se unir uns aos outros, mas a ceder aos seus instintos mais selvagens – enfrentando, no processo, dilemas morais e existenciais. Essa é a premissa principal da aclamada série “Yellowjackets“(2021-), que recentemente estreou sua segunda temporada. Mas também é a sinopse de um grande clássico da literatura inglesa, de 1954, considerado leitura obrigatória nas escolas estadunidenses: “O Senhor das Moscas“.

A série não é necessariamente uma adaptação do livro, mas, assim como em “Lost” (2004-2010), a inspiração é clara. As semelhanças entre as duas ficções fizeram alguns críticos apelidarem a produção de “‘O Senhor das Moscas’ versão feminina”. Enquanto na série de TV o avião que cai levava um time de futebol feminino do Ensino Médio para o campeonato nacional, no clássico de William Golding, o grupo de sobreviventes é composto por meninos pré-adolescentes que escapavam da Segunda Guerra Mundial.

Mas sobre o que, afinal, fala este clássico da literatura? E por que o romance ainda inspira tantas outras obras?

Em meio à guerra, nasce “O Senhor das Moscas”

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“O Senhor das Moscas” já ganhou diversas adaptações, uma das mais conhecidas é o filme de 1990 (IMDb/Divulgação)

O autor William Golding teve a ideia de escrever o livro após um diálogo com a sua esposa sobre um outro clássico: “A Ilha Coral”, do autor escocês R. M. Ballantyne, publicado quase cem anos antes, em 1858. O livro infanto-juvenil conta a história de sobrevivência e heroísmo de três crianças isoladas em uma ilha após um náufrago.

“Não seria uma boa ideia se eu escrevesse um livro sobre crianças em uma ilha, mas com crianças se comportando do jeito que crianças se comportariam em uma ilha?”, teria dito o autor à esposa.

A crítica de Golding ao livro de 1858 era, na verdade, uma crítica a todo um gênero literário muito comum no ocidente. Desde a Antiguidade Clássica, obras como “Odisseia“, de Homero, e, já no século 18, “Robinson Crusoe“, de Daniel Defoe, relatam aventuras de sobrevivência em lugares remotos a partir de um ponto de visto heróico e de superação.

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Na realidade de Golding, em 1954, era difícil conciliar essa visão positiva com a realidade.

O mundo havia acabado de passar pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945), um conflito que marcou no imaginário humano cenas de violência, barbárie e desumanidade que dificilmente serão esquecidas. A perseguição sem freios de Hitler aos judeus mostrou o teor destrutivo que um poder autoritário e a ausência de um controle regulador pode ter sobre em uma sociedade.

Era difícil para o autor acreditar que crianças, ainda em formação de caráter e ao contrário do que pregava os contos de aventura, não cederiam aos seus instintos mais selvagens ao serem colocadas em um ambiente hostil e livre de normas.

Hitler discursa durante ato na Segunda Guerra Mundial
Na Segunda Guerra Mundial, existiram mais de 5 mil campos de concentração espalhados pela Europa. Juntos, eles foram responsáveis pela morte de 6 milhões de pessoas (Wikimedia Commons/Reprodução)

O que vemos em “O Senhor das Moscas”, e se reflete em inúmeras produções até hoje, é um tema comum não apenas na ficção mas também em vertentes da filosofia e sociologia. O que somos quando estamos desprovidos de contratos sociais? Qual o limite da ética e da moralidade? O que define uma civilização? Onde termina o humano e começa o animal?

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Tanto no livro de Golding quanto em “Yellowjackets”, ao serem jogados em um cenário selvagem, os jovens sobreviventes são colocados frente a frente a escolhas que podem levar a caminhos sem volta – ou, ainda pior, mostrar quem eles são por baixo das máscaras sociais.

Os questionamentos levantados pelo comportamento dos personagens, que ao longo da estadia no ambiente hostil vão cedendo a tendências primitivas, são uma oportunidade de refletir a própria natureza humana. Reflexão muito valorizada nas bancas de redações da Fuvest e Unicamp, por sinal.

Democracia versus barbárie: o enredo de “O Senhor das Moscas”

No livro, o avião dos garotos cai nos arredores de uma ilha no Oceano Pacífico. Apenas os meninos e o piloto sobrevivem. Este, porém, assim como treinador de “Yellowjackets”, está gravemente ferido – o que o incapacita de agir como o adulto da situação. Sem supervisão e sem perspectivas de resgate, não demora para os garotos comecem a questionar as regras sociais do convívio.

Dois líderes opostos se destacam: Ralph e Jack. Ralph representa a democracia pacífica, a lei e a racionalidade. Enquanto Jack é o autoritarismo, a tirania, o comando pela força e crueldade.

Cena do filme
Os rivais Ralph e Jack, na adaptação cinematográfica de 1990. Ambos representam sistemas de governos antagônicos (IMDb/Divulgação)
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Em um primeiro momento, Jack até aceita a liderança de Ralph e se dedica somente à caça, mas não leva muito tempo para o menino se rebelar e montar o seu próprio grupo, vivendo sob as regras que acredita serem as certas. Ele defende que a força bruta é mais relevante do que as palavras de racionalidade de Ralph. Conforme os dias vão passando, o grupo de Jack aumenta, assim como o seu caráter violento e tribal.

Seus seguidores se tornam vis, animalescos e até mesmo desenvolvem uma própria religião – que cultua o tal senhor das moscas. A rivalidade entre os dois grupos chega ao auge quando o grupo de Jack ultrapassa a mais sagrada das linhas morais e comete um assassinato.

Os frágeis contratos sociais estabelecidos no começo não têm mais validade alguma e os meninos vivem em um estado de puro caos e barbaridade liderados por Jack. Ralph – e a própria democracia – está cercado.

O mundo sem um Leviatã

Pintura do filósofo Thomas Hobbes
O filósofo contratualista inglês Thomas Hobbes (1588-1679), autor do livro “Leviatã” (Wikimedia Commons/Reprodução)

Muito do que acontece no livro é uma interpretação dos estudos do filósofo contratualista Thomas Hobbes (1588-1679), na obra “Leviatã”. Seu ponto de partida é a construção de um estado de natureza hipotético. Este seria um estado de violência, de guerra: Bellum omnium contra omnes (a guerra de todos contra todos).

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Para ele, o homem é, desde a mais tenra infância, egoísta, parcial, competitivo, orgulhoso, vingativo, vaidoso e ambicioso: homo homini lupus (o homem é o lobo do homem).

Assim como ocorre em “O Senhor das Moscas”, Hobbes afirma que a vida sem um controle regulador (um Estado, por exemplo) é brutal, violenta, miserável, infeliz e solitária, a guerra de todos contra todos. E marcada pelo mais intenso sentimento do homem: o medo da morte. Para ele, somente um poder regulador pode conter o lobo do homem, ou seja, pode proteger o homem dos seus semelhantes, evitando o medo e a guerra entre si.

Podemos dizer que, em “Yellowjackets”, Taissa é como Ralph, sempre tomando decisões sensatas e baseadas na racionalidade. Enquanto Misty e Lottie são, de certa forma, Jack, representando o egoísmo inerente do ser humano, que é manipulador e sedento por poder.

Se você está assistindo ou já assistiu “Yellowjackets” está mais do que na hora de conhecer a obra que inspirou a série. “O Senhor das Moscas” é um clássico pessimista que serve como um prato cheio para análises filosóficas, políticas e psicológicas da natureza humana. É uma verdadeira alegoria para as muitas facetas que a vida em sociedade nos desperta. Além de, claro, uma ótima referência para uma redação no vestibular.

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