Por que até Machado de Assis teve receio de ler esse livro cobrado no vestibular
Em crítica publicada em 1972, o autor de Dom Casmurro confessou que temeu ler este livro por razões condenáveis

É certo que os livros cobrados no vestibular dão arrepio na espinha de muitos estudantes. Mas você imaginaria que até Machado de Assis – ele próprio figurinha carimbada nos vestibulares e Enem – ficou um tanto receoso de ler um livro que hoje é cobrado na Fuvest, prova para entrar na USP (Universidade de São Paulo)?
O medo de Machado, no entanto, não era do vocabulário refinado da poeta Narcisa Amália, sua contemporânea. Antes fosse. Em sua crítica ao livro “Nebulosas“, o primeiro e único de Amália, o autor de “Dom Casmurro” confessou que a causa de sua reticência em abrir o livro era pelo fato da obra ter como autora uma mulher.
Em seguida, o maior escritor do realismo brasileiro teceu imensos elogios ao livro da poeta, afirmando: “achei uma poetisa, dotada de sentimento verdadeiro e real inspiração, a espaços de muito vigor, reinando em todo o livro um ar de sinceridade e modéstia que encanta […]”.
+ “Nebulosas”: resumo e análise do livro de Narcisa Amália
Sua observação a respeito do gênero da autora, no entanto, não é anulado pelos louvores à obra. A historiadora e socióloga Maria de Lourdes Eleutério afirma, em introdução à edição de “Nebulosas” pela Editora 34, que o comentário de Machado de Assis reflete a sociedade patriarcal e preconceituosa do século 19, que enxergava a mulher como intelectualmente inferior.
O livro de Narcisa Amália faz parte da lista de obras obrigatórias da Fuvest 2026, a primeira composta unicamente por mulheres.
Leia, abaixo, a crítica escrita por Machado de Assis e publicada na Semana Ilustrada, suplemento de domingo da Revista Ilustrada, em 29 de dezembro de 1972.
Com este título acaba de publicar a sra. d. Narcisa Amália, poetisa fluminense, um volume de versos, cuja introdução é devida à pena do distinto escritor dr. Pessanha Póvoa.
Não sem receio abro um livro assinado por uma senhora. É certo que uma senhora pode poetar e filosofar, e muitas há que neste particular valem homens, e dos melhores. Mas não são vulgares as que trazem legítimos talentos, como não são raras as que apenas se pagam de uma duvidosa ou aparente disposição, sem nenhum dote literário que verdadeiramente as distingua.
A leitura de ‘Nebulosas’ causou-me a este respeito excelente impressão. Achei uma poesia, dotada de sentimento verdadeiro e real inspiração, a espaços de muito vigor, reinando em todo o livro um ar de sinceridade e de modéstia que encanta, e todos estes predicados juntos, e os mais que lhe notar a crítica, é certo que não são comuns a todas as culturas da poesia.
Há, sem dúvida, alguma página menos aperfeiçoada, algum verso menos harmonioso, alguma imagem menos própria; mas, além de que estes senões melhor os conhecerá e emendará a autora com o tempo (e um talento verdadeiro não os deixa de os conhecer e emendar), é antes de admirar que o seu livro não saísse menos puro, dadas as condições de uma estreia.
Quisera transcrever aqui mais de uma página de ‘Nebulosas’; receio estender-me demais; limito-me a dar algumas estrofes. Sejam as primeiras estas que se chamam ‘Saudades’, e que a leitora há de sentir que o são.
‘Tenho saudades dos formosos lares
Onde passei minha feliz infância;
Dos vales de dulcíssima fragrância;
Da fresca sombra dos gentis palmares.
Minha plaga querida! Inda me lembro
Quando através das névoas do Ocidente
O sol nos acenava adeus languente
Nas balsâmicas tardes de setembro;
Lançava-me correndo na avenida
Que a laranjeira enchia de perfumes!
Como escutava trêmula os queixumes
Das auras na lagoa adormecida!
Eu era de meu pai, pobre poeta,
O astro que o porvir lhe iluminava;
De minha mãe, que louca me adorava,
Era na vida a rosa predileta! …
Mas…
… tudo se acabou. A trilha olente
Não mais percorrerei desses caminhos…
Não mais verei os míseros anjinhos
Que aqueciam na minha a mão algente!’
Vê o leitor a harmonia natural destes versos, não menor nem menos suave que a destas estrofes de ‘Confidência’, versos a d. Joanna de Azevedo, de uma amiga a outra amiga:
Pensas tu, feiticeira, que te esqueço;
Que olvido nossa infância tão florida;
Que a tuas meigas frases nego apreço…
Esquecer-me de ti, minha querida!? …
Posso acaso esquecer a luz divina
Que rebrilha nas trevas desta vida?
………………………………………………..
Sem ti não tem o sol um raio terno;
Contigo o mundo tredo — é paraíso,
E a taça do viver tem mel eterno!
Oh! envia-me ao menos um sorriso!
Dá-me um sonho dos teus doirado e belo,
Que bem negro porvir além diviso!
Que a existência sem ti, é um pesadelo! …’
São tristes geralmente os seus versos, quando não são políticos (que também os há bons e de energia não vulgar); a musa da sra. d. Narcisa Amália não é a alegria; ela mesma o diz na poesia que intitulou ‘Sadness’, e que transcrevo por inteiro, e será esta a última citação:
‘Meu anjo inspirador não tem nas faces
As tintas coralíneas da manhã;
Nem tem nos lábios as canções vivaces
Da cabocla pagã!
Não lhe pesa na fronte deslumbrante
Coroa de esplendor e maravilhas,
Nem rouba ao nevoeiro flutuante
As nítidas mantilhas.
Meu anjo inspirador é frio e triste
Como o sol que enrubesce o céu polar!
Trai-lhe o semblante pálido — do antiste
O acerbo meditar!
Traz na cabeça estema de saudades,
Tem no lânguido olhar a morbideza;
Veste a clâmide eril das tempestades,
E chama-se — Tristeza! …’
Aqui termino as transcrições e a notícia, recomendando aos leitores as ‘Nebulosas’.
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