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Lilia Schwarcz: como explorar as ideias da historiadora na redação

Desigualdades sociais, patrimonialismo, autoritarismo e racismo são alguns dos temas explorados pela professora do Departamento de Antropologia da USP

Por Julia Di Spagna
Atualizado em 7 mar 2023, 10h10 - Publicado em 6 mar 2023, 16h55

“Nosso presente anda, mesmo, cheio de passado, e a história não serve como prêmio de consolação.”

A frase é de Lilia Schwarcz, uma das historiadoras e antropólogas mais renomadas do Brasil. Autora de obras fundamentais para entender a formação do país a partir de uma perspectiva crítica que busca desconstruir mitos que permanecem no imaginário social, como o da democracia racial, Lilia traz à tona debates relevantes ligados também à construção de discursos raciais e o autoritarismo no Brasil.

Suas obras ainda revelam como, desde o período colonial, passando pelo Império e chegando à República, a cidadania não se consolida de fato, na medida em que a sociedade se caracteriza por “políticas de mandonismo e patrimonialismo, assim como por várias formas de racismo, sexismo, discriminação e violência”. 

Nesse sentido, Lilia nos ajuda a compreender as razões de vivermos atualmente um período tão intolerante, violento e um cenário de crescimento de uma política de ódio que transforma adversários em inimigos. 

Biografia

Lilia Moritz Schwarcz é doutora em antropologia social pela Universidade de São Paulo (USP) e professora titular no Departamento de Antropologia da mesma instituição. É professora visitante em Princeton desde 2010 e já exerceu o mesmo cargo em Oxford, Leiden, Brown e Columbia. 

Em 2010, recebeu a Comenda da Ordem do Mérito Científico Nacional, concedida a personalidades nacionais e estrangeiras que se distinguiram por suas relevantes contribuições prestadas à Ciência e à Tecnologia. 

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É autora de premiadas obras como “Retrato em Branco e Negro” (1987, prêmio APCA), “As Barbas do Imperador” (1998, Prêmio Jabuti/Livro do Ano e New York, Farrar Strauss & Giroux, 2004), “O Sol do Brasil” (2008, Prêmio Jabuti categoria biografia 2009), e “Brasil: uma Biografia” (2015, com Heloisa Murgel Starling, indicado na lista dos dez melhores livros da categoria Ciências Sociais do prêmio Jabuti). 

Foi curadora de uma série de exposições, como Histórias Afro-Atlânticas, e desde 2015 atua como curadora adjunta para histórias e narrativas no Masp (Museu de Arte de São Paulo); também é colunista do jornal Nexo e presença frequente no debate público no Brasil. 

Por conta da relevância e urgência dos temas nos quais mergulha, as ideias de Lilia podem ser exploradas tanto em questões dos vestibulares quanto em textos de apoio na redação. Mas não são apenas as bancas que podem tirar proveito das obras e temas levantados pela antropóloga: estudantes também podem usá-los como repertório na hora da redação. Quer saber como? O primeiro passo é entender quais são os principais assuntos abordados pela pesquisadora.

E para te ajudar a conhecê-los e destrinchá-los, o GUIA DO ESTUDANTE conversou com Rafaela Defendi, professora do Poliedro Colégio, e Felipe Mello, professor do Colégio Oficina do Estudante. Confira: 

Racismo à brasileira

Desde suas primeiras obras sobre a questão racial, como “O espetáculo das raças”, Lilia Schwarcz coloca em xeque o mito da democracia racial e evidencia a existência de um “racismo à brasileira” que contempla a ideia de inclusão cultural, mas com absoluta exclusão social. 

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Para isso, a autora analisa documentos históricos que revelam como intelectuais do final do século 19 e início do século 20 propuseram teorias raciais deterministas e evolutivas que disseminaram noções de superioridade racial. Essas ideias permanecem no imaginário social brasileiro, ainda que sejam afirmadas de forma silenciosa. 

Posteriormente, nos anos 1930, a historiadora observa que houve uma exaltação oficial da mestiçagem por intelectuais e políticos como uma singularidade brasileira. Foi nessa época, inclusive, que o sociólogo Gilberto Freyre projetou o mito da democracia racial, e Getúlio Vargas descriminalizou práticas esportivas e culturais como a capoeira e o samba, assim como exaltou o futebol como símbolo nacional. 

A partir desse histórico que Lilia nos mostra como se constituiu o “racismo à brasileira”: a convivência entre inclusão social definida pela afeição e pela cultura, entendida como traços compartilhados na música, na religião, nos costumes divididos; e exclusão social no exercício da política, da ciência, no convívio social. 

“E, se hoje em dia as teorias raciais saíram de voga, se o conceito biológico de raça é entendido como falacioso e totalmente equivocado em suas decorrências morais, ainda utilizamos a noção de ‘raça social’; aquela que é criada pela cultura e pela sociedade no nosso cotidiano. Tendemos também a perpetuar um plus perverso de discriminação, que faz com que negros e negras morram mais cedo e tenham menor acesso aos direitos de todos os cidadãos brasileiros”, afirma a autora no livro “Sobre o autoritarismo brasileiro”.

Além disso, segundo a autora, esse racismo se configura atualmente como silencioso: os brasileiros, em geral, não negam o racismo, mas atribuem sempre a discriminação ao outro e não o afirmam publicamente, apenas na intimidade.

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Sobre o autoritarismo 

A tese central de Lilia na obra “Sobre o autoritarismo brasileiro” é a de que o autoritarismo tem raízes em outros problemas da sociedade como o patrimonialismo, corrupção, desigualdade, violência e racismo. Ela mostra, por exemplo, como a escravidão no Brasil – não por acaso um dos últimos países do mundo a aboli-la – foi bem mais que um sistema econômico.

“Ela [a escravidão] moldou condutas, definiu desigualdades sociais, fez de raça e cor marcadores de diferença fundamentais, ordenou etiquetas de mando e obediência, criou uma sociedade condicionada pelo paternalismo e por uma hierarquia muito estrita”, escreve.

A autora também evidencia como o país não se livrou das políticas de mandonismo, criadas ainda no período colonial, quando o país foi dividido em grandes latifúndios monocultores e se atribuiu poder a um número restrito de colonos que detinham essas propriedades.

Até hoje, a concentração fundiária e o acúmulo de poder político persiste nas mãos de famílias que praticam historicamente o mandonismo. Sendo assim, a obra nos permite refletir criticamente como continuamos distantes da consolidação de uma democracia.  

Patrimonialismo

A historiadora defende que o patrimonialismo é um dos grandes inimigos da República. Com base em Max Weber, Lilia conceitua patrimonialismo como “o uso do Estado para a resolução de questões privadas”. 

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Historicamente, essa prática se evidenciou em ações de compadrio e troca de favores, e persiste atualmente no cenário político no qual observa-se, por exemplo, o uso dos recursos do Estado por políticos para viagens pessoais, a indicação de parentes para cargos públicos, a aprovação de leis que beneficiem seus negócios particulares entre outras práticas. 

“A saúde de uma democracia é medida pela robustez de suas instituições e, no nosso caso, desde os tempos coloniais boa parcela de tais instâncias foi dominada por interesses de grupos de poder, que se apropriam de parte da máquina do Estado com fins particulares. A teoria de que os brasileiros são mais informais e ‘alheios à burocracia’ ganha aqui outra ‘roupagem’, quando expedientes como esses acabam resultando no benefício de alguns e no malefício de muitos”, descreve na obra “Sobre o autoritarismo brasileiro”.

As origens das desigualdades

Lilia Schwarcz defende que “mão de obra escrava, divisão latifundiária da terra, corrupção e patrimonialismo, em grandes doses, explicam os motivos que fizeram do país uma realidade desigual, seja do ponto de vista econômico, racial, regional, de gênero, social”. Porém, ela ressalta que esses fatores não são suficientes para esclarecer o porquê de, apesar do processo de modernização e de industrialização no século 20, não ter sido possível romper totalmente com esse círculo vicioso do passado. 

A principal explicação, segundo Lilia, seria que os governos brasileiros, na prática, jamais optaram por enfrentar efetivamente a desigualdade social, de modo que o país apresenta uma tributação em que os mais pobres pagam proporcionalmente mais de sua renda em impostos. Além disso, há uma educação pública de baixa qualidade que provoca a evasão escolar e não promove formação necessária que impeça que jovens pobres e negros sejam alocados em serviços temporários e recebam uma remuneração precária.

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“Desigualdade não é uma contingência nem um acidente qualquer, tampouco uma decorrência natural e mutável de um processo que não nos diz respeito. Ela é consequência de nossas escolhas – sociais, educacionais, políticas, culturais e institucionais –, que têm resultado em uma clara e crescente concentração dos benefícios públicos nas mãos de poucos. (…) Quando se trata de enfrentar a desigualdade, não há saída fácil ou receita de bolo. Prefiro apostar nos alertas que nós mesmos somos capazes de identificar”, afirma Lilia em entrevista ao Nexo. 

Lilia Schwarcz na redação

Por revelarem um olhar crítico sobre problemas e características sociais brasileiras enraizadas historicamente, as ideias de Lilia Schwarcz podem ser usadas em diversas propostas de redação, tanto as que exigem um olhar analítico quanto as que cobram de um olhar cidadão, como o Enem

Um exemplo seriam os temas que envolvem o autoritarismo e a violência por parte do Estado. Neste caso, o estudante poderia recorrer às origens das políticas de mandonismo criadas no período colonial. “Elas [políticas de mandonismo] estabeleceram uma sociedade condicionada pela postura autoritária e violenta daqueles que têm poder sobretudo contra a população negra, devido às hierarquias sociais e à naturalização de estruturas de mando e obediência”, explica Rafaela Defendi, professora do Poliedro. 

Já em temas ligados à corrupção, segundo a professora, pode-se usar a tese da autora sobre o patrimonialismo como uma prática enraizada nas relações sociais brasileiras que normaliza “o uso do Estado para a resolução de questões privadas”. Assim, pode-se defender que, por conta dessa prática, populações mais vulneráveis foram privadas historicamente de direitos que o setor público deveria proporcionar.

Para o professor do Etapa, Felipe Mello, o candidato também poderia utilizar as ideias de Lilia para explicitar como os discursos autoritários têm capilaridade perante a população, desde a formação do estado-nação até os dias atuais – o que explicaria, de certa forma, a ascensão da extrema direita no país.

Por fim, em propostas que abordem diferentes problemas sociais brasileiros ligados às desigualdades, como a violência urbana, por exemplo, pode-se discutir, com base na obra da historiadora, os fatores históricos que provocaram um cenário de profundas desigualdades enraizadas. Ou ainda a ausência de políticas públicas que diminuam essas desigualdades por meio da tributação dos mais ricos e do maior investimento em educação pública de qualidade, que garanta melhores oportunidades de emprego e de acesso a bens culturais aos jovens negros e periféricos. 

Nesse sentido, em vez de uma política de genocídio e de armamento dessas populações, a autora revela que a saída para problemas complexos, como o da violência, passa pelo combate à “nossa renhida desigualdade social”.

“É importante destacar ainda que as ideias e teorias de Lilia Schwarcz são muito importantes para se compreender a formação do país e seus atuais problemas, mas é fundamental que o estudante, no desenvolvimento argumentativo, aplique a ideia selecionada em uma análise autoral do tema para que o argumento não se torne meramente expositivo”, diz Rafaela Defendi.

Para se aprofundar

Confira algumas obras da pensadora para entender melhor suas ideias: 

+ O canal de Lilia Schwarcz no YouTube

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Desigualdades sociais, patrimonialismo, autoritarismo e racismo são alguns dos temas explorados pela professora do Departamento de Antropologia da USP

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