“Não Olhe Para Cima”: saiba como usar o filme no vestibular
Negacionismo, fake news, anti-ciência, sociedade do espetáculo e líderes populistas são alguns dos temas passíveis de serem desenvolvidos em uma redação
A ideia desta série de matérias é permitir que você consiga desenvolver um repertório mais amplo e um pensamento crítico mais aguçado com base nas diversas camadas que o cinema pode apresentar. As análises dos filmes que faremos aqui buscam mostrar certas relações entre o enredo e temas contemporâneos que podem ser abordados na redação, tanto do Enem quanto de outros vestibulares do Brasil.
O enredo de Não Olhe Para Cima segue dois astrônomos de Michigan, Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence) e Randall Mindy (Leonardo DiCaprio), que, durante uma pesquisa, identificam um cometa gigantesco nunca antes registrado vindo em direção à Terra. Após refazer os cálculos muitas vezes, não há dúvida: em cerca de seis meses, o cometa vai cair no Oceano Pacífico com velocidade e força suficientes para extinguir a vida no planeta.
Os cientistas passam então a alertar o resto do mundo a respeito do perigo iminente, começando pela presidente dos Estados Unidos (Meryl Streep). Mais interessada em recuperar sua reputação para não ser derrotada nas eleições que se aproximam, ela ignora os alertas. É necessário então, chamar atenção da mídia, retratada de forma satírica nos personagens Brie Evantee (Cate Blanchett) e Jack Bremmer (Tyler Perry), apresentadores de um programa de entrevistas a la Fox News e CNN.
O filme satiriza a alienação de líderes políticos para fatos do mundo, a espetacularização da mídia, além de outras dificuldades encontradas pelos cientistas na busca pela solução do desastre em curso, como a ganância, o negacionismo e a desinformação.
O “cometa” iminente da crise climática
A narrativa criada no filme em torno do cometa Dibiasky pode ser lida como uma metáfora para os perigos não mais silenciosos da crise climática que enfrentamos. Sem grande destaque na mídia e com pouca adesão da sociedade civil, a luta contra o aquecimento global tem andado a passos lentos. Eventos como a COP-26 são uma tentativa de sensibilizar líderes e opinião pública, com metas de redução na emissão de gases de efeito estufa e de carbono. No entanto, as promessas feitas em conferências climáticas encontram resistência de muitos líderes que preocupam-se mais com o futuro da economia. No filme, a presidente dos Estados Unidos represetada por Meryl Streep é uma líder que se importa mais com a perpetuação do seu mandato do que com o futuro do seu país.
O próprio diretor Adam McKay, que dirigiu também A Grande Aposta e Vice, disse em entrevista que a ideia do longa surgiu em uma conversa com um amigo jornalista que se referiu ao colapso climático como um “cometa enorme em rota de colisão com a Terra” e que “ninguém dá a devida importância”.
Impacto das redes sociais
Em momentos espalhados por todo o filme, em paralelo ao enredo, são mostrados na tela tweets, lives e posts nas redes sociais com a reação dos internautas às notícias que são veiculadas. As principais, que recebem mais atenção, são as de cunho humorístico ou relacionadas a alguma polêmica, de forma que assuntos como catástrofes climáticas e crises políticas são deixadas em segundo plano. As redes sociais se tornam, de um jeito perigoso, os olhos da população, sem qualquer crítica.
O filme ironiza a busca insaciável por entretenimento nas redes sociais, impulsionada pelo algoritmo que valoriza o que mais agrada o usuário e que acaba silenciando debates importantes que dizem respeito ao futuro do planeta. O resultado disso, como mostra o longa, é a desinformação e a disseminação de fake news.
Negacionismo
Em oposição à campanha “Olhe para cima”, que viraliza nas redes após a aparição a olho nu do cometa no céu, a equipe da presidência dos Estados Unidos passa a divulgar em bottons, adesivos e até comitivas a frase “Não olhe para cima”, com a premissa de que o cometa não existe, que não passa de uma invenção e que, mesmo se ele for real, não é uma coisa ruim.
“Sabem por que eles querem que vocês olhem para cima? Porque eles querem que vocês tenham medo. Eles querem que vocês olhem para cima porque eles querem olhar vocês de cima de um pedestal!”, diz a personagem da presidente em uma cena de comício de campanha para a sua reeleição.
Fake news
No mesmo evento, outro orador diz: “Os que olham para cima querem que milhões de chilenos clandestinos cruzem a nossa fronteira”. A frase, que vem acompanhada da repercussão nas redes sociais com outras mentiras a respeito dos cientistas que descobriram o cometa, denuncia o mar de notícias falsas que circulam nas redes sociais, ou do já instituído “WhatsApp da família”, e que acabam por moldar a opinião de muita gente.
Apesar de se passar nos Estados Unidos, a satirização da criação de fake news pode ser associada ao cenário brasileiro, em que notícias falsas têm sido largamente divulgadas ao longo dos últimos anos. Um exemplo recente foi o caso em que Jair Bolsonaro disse que apresentaria supostas fraudes nas urnas eletrônicas ou então quando fez a defesa de medicações contra o coronavírus sem nenhuma comprovação científica.
Grandes corporações
Fazendo referência aos bilionários da atualidade, como Mark Zuckerberg e Jeff Bezos, Adam McKay inclui no enredo o dono de uma grande empresa de tecnologia. Considerado o terceiro homem mais rico do mundo, Peter (Mark Rylance) interfere constantemente nas decisões políticas do país e, guiado pela ganância, boicota a missão de desvio do cometa para tentar aterrissá-lo na Terra de modo a extrair um suposto metal precioso encontrado no asteróide.
O personagem pode ser associado às grandes corporações da tecnologia e aos bilionários que têm sido idolatrados e vistos como revolucionários por seus feitos na corrida espacial e nas tecnologias do dia a dia. No filme, o empresário aparece inicialmente como gênio charmoso e empático, mas acaba demonstrando seu verdadeiro intento: o lucro. E ele não mede esforços para conseguir o material contido no cometa, mesmo que isso signifique arriscar a vida humana na Terra.
Papel da imprensa e a sociedade do espetáculo
A dupla de repórteres em destaque no longa-metragem é uma alusão aos programas de entrevista de emissoras norte-americanas. Irônicos e piadistas, tratam com jocosidade qualquer tipo de informação, sem levar a sério temas urgentes – no caso do filme, o meteoro que se aproxima. Após receber duras críticas ao vivo de um dos cientistas, a jornalista Brie responde: “É isso que fazemos aqui, deixamos as más notícias mais leves!”.
O filme satiriza a abordagem dos programas do jornalismo de massa, cada vez mais próxima do entretenimento e distante da seriedade dos fatos. Discussões mais robustas e complexas perdem espaço para pautas rasas e com cara de ‘curiosidade’.
Esse fenômeno pode ser associado ao conceito da sociedade do espetáculo, criado pelo filósofo francês Guy Debord, na época da popularização da televisão. De acordo com a pesquisa de Debord, as imagens passaram a pautar o cotidiano e surgiu uma necessidade de espetacularizar as ações humanas. No intuito de “agradar o público”, o “parecer” se tornou mais importante do que o “ser”, ou seja, a forma se tornou mais importante do que o conteúdo veiculado.
Assim, um cientista perde força perto de um bom comunicador, que parece mais eloquente e confiante em frente às câmeras. O próprio protagonista do filme, Dr. Mindy, ouve diversas vezes que “precisa de media training”, anunciando que não sabe se comportar em programas televisivos por não ser um comunicador carismático como os apresentadores do programa.
Cooperação entre os países
Em diversos momentos do enredo, vem à tona a informação de que os Estados Unidos não incluíram outros países na missão de desvio do cometa. Uma representante da ONU aparece para comentar, inclusive, que a organização cogita criar sua própria missão, com a colaboração de outras nações, já que a potência estadunidense não busca a cooperação. Em determinada cena, uma base de pesquisa russa é bombardeada pelo governo dos Estados Unidos, que tem seus próprios planos para o meteoro e vê a mobilização estrangeira como afronta.
A situação pode ser comparada à corrida pela vacina que marcou o ano de 2020. Países como o Canadá adquiriram estoques de vacinas suficientes para imunizar o equivalente a três vezes a própria população, enquanto lugares da África sequer tinham recebido a primeira dose. Entenda como a geopolítica impactou a distribuição de vacinas em todo o mundo.
Ficou na dúvida de como esse conteúdo poderia ser aplicado na sua redação? Vamos ajudá-lo nessa missão. É impossível prever qual será a proposta dos vestibulares. Entretanto, seja qual for o tema, se você estiver munido de diversos exemplos e argumentos relevantes na hora da prova, poderá ter um bom desempenho.
Você não precisa assistir ao filme com um caderno fazendo várias anotações. O importante é entender o enredo como um todo e refletir sobre determinados acontecimentos que achar adequados. Se quiser, anote alguns tópicos e pesquise mais sobre os temas que achar mais pertinentes ou nos quais tiver alguma dificuldade.
No caso do filme “Não Olhe Para Cima”, é importante identificar os principais tópicos, como o negacionismo, a importância da cooperação entre os países e a espetacularização da notícia e memorizar algumas cenas que exemplifiquem as situações.
Para ajudar na defesa de argumentos para a sua redação, pedimos para Daniela Toffoli, professora de redação do Curso Anglo, levantar algumas propostas de redação de anos anteriores em que fosse possível utilizar elementos do filme.
(UNESP 2009) “O homem: inimigo do planeta?”
O tema abordado na prova pedia que o aluno discorresse sobre a presença e as ações dos seres humanos no planeta, que tem levado não somente a consequências irreversíveis a nível ambiental, como também a nível social, já que sua própria existência é ameaçada.
O filme apresenta a possível destruição do planeta a partir da chegada de um cometa à Terra em poucos meses. O cenário pode ser revertido, mas, para isso, é necessário que haja o devido envolvimento de estudiosos, políticos e empresários. O que se vê, no entanto, é que a ciência acaba sendo utilizada e moldada a partir do interesse desses grandes empresários, que veem na iminente chegada do cometa uma oportunidade de ganhar mais dinheiro – apesar do perigo de destruição que ele traz.
Fazendo um paralelo com a nossa realidade e inserindo a narrativa no contexto da prova da Unesp, é possível considerar que a crise climática que vivemos é como se fosse o cometa que se aproxima da Terra e que irá extinguir toda a humanidade. Toffoli explica: “o meio ambiente é cada vez mais explorado em prol do lucro, mesmo que cientistas e estudiosos apontem para os perigos que a falta de investimentos em desenvolvimento sustentável pode trazer. Ou seja, a falta de recursos naturais – fruto da lógica capitalista, que também predomina no filme – pode, igualmente, levar a humanidade à extinção”.
(Fuvest 2020) O papel da ciência no mundo contemporâneo
Essa proposta trabalha a ideia geral de que a ciência tem sido cada vez mais desvalorizada nas sociedades modernas, embora seja a grande responsável pelo progresso nas áreas da economia, política, meio ambiente, qualidade de vida, dentre outros. Uma das causas dessa desvalorização, trazida pela coletânea de textos, é o fato de que, atualmente, muitos indivíduos preferem dar maior importância a crenças e opiniões pessoais do que a fatos comprovados cientificamente.
Segundo Daniela Toffoli, o filme, nesse sentido, pode ajudar a discutir e ilustrar tanto a presença desse negacionismo na sociedade como também os impactos que isso pode vir a ter no mundo contemporâneo.
(FCMSCSP – 2018) Os desafios do jornalismo na era da pós-verdade
Os textos motivadores da proposta levam os alunos a refletirem sobre como, nos dias de hoje, diversos desafios são enfrentados no que diz respeito à busca por informações confiáveis. A prevalência da pós-verdade cria uma sensação confortável para os leitores, uma vez que informações falsas ajudam a consolidar sua convicções e crenças pessoais, sem a necessidade de busca pela verdade.
Isso é intensificado quando se leva em consideração que, na sociedade do espetáculo, a valorização da dimensão visual da comunicação vira instrumento de poder e acúmulo de capital. Portanto, uma parcela dos meios de comunicação, visando lucro e controle da população, contribui para a intensificação desse processo de pós-verdade e disseminação de fake news.
“O que se vê, portanto, e que é trabalhado muito bem no filme e nesta proposta da Santa Casa, é que parte da imprensa tem o desafio de combater essa realidade, enquanto a outra parte, na contramão, tem auxiliado na piora de todo esse contexto.”, explica Toffoli.