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Aborto no Brasil: o que diz a lei e quais os debates em torno do tema

Entenda quando o procedimento pode ser realizado legalmente no país e as consequências da criminalização

Por Julia Di Spagna
Atualizado em 24 jun 2022, 14h15 - Publicado em 23 jun 2022, 18h02
mulheres protestando pelo direito ao aborto
Em 2015, mulheres se reuniram em um protesto na Avenida Paulista, em São Paulo, pela discriminalização do aborto  (NurPhoto/Getty Images)
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Vítima de estupro em Santa Catarina, uma menina de 11 anos foi impedida de realizar um aborto legal e mantida pela Justiça em um abrigo, longe da família, por um mês. A decisão do hospital que atendeu a criança – e a posterior sentença da juíza catarinense Joana Ribeiro – foi baseada em uma recomendação técnica do Ministério da Saúde feita em 2012, que não tem força de lei e classifica como aborto somente os procedimentos feitos antes da 22ª semana de gestação. A legislação brasileira sobre o tema, no entanto, não estipula um prazo para realização do aborto legal no Brasil, o que abarca casos de anencefalia, estupro e risco de vida para a gestante – os dois últimos garantiriam o procedimento legal à menina. 

Embora o direito ao aborto não devesse sequer ser colocado em discussão neste caso, o debate sobre a criminalização dele voltou a figurar nos noticiários.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), anualmente, 39 mil mulheres morrem e milhões são hospitalizadas com complicações causadas por abortos inseguros. No Brasil, entre 2008 e 2019, mais de 700 mulheres brasileiras morreram por conta de interrupções de gravidez e cerca de 60% das vítimas eram negras, segundo dados do DataSUS.

É difícil chegar na quantidade exata de abortos realizados no Brasil, porque a maioria dos procedimentos é feito de forma clandestina. Mas reunindo o número de internações por complicações do procedimento e questionários, a estimativa é de 500 mil abortos anualmente.

Uma das justificativas de quem defende a criminalização do aborto é que a vida começaria no momento da fecundação. Não há, porém, um consenso científico sobre o momento em que a vida inicia. Trata-se de critérios subjetivos, que muitas vezes acabam orientados por valores morais e até religiosos. 

O que diz a legislação brasileira sobre o aborto

O aborto foi citado pela primeira vez na legislação brasileira no Código Criminal do Império, de 1830. Na época, era condenada a pessoa que realizasse o procedimento, não a gestante. Em 1890, o Código Penal também passou a criminalizar a mulher que realizasse aborto. 

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Hoje, o aborto é considerado crime, previsto nos artigos 124 a 126 do Código Penal de 1940. A pena varia de um a três anos de prisão para a mulher que provocar aborto em si mesma ou consentir que outra pessoa, como um médico, lhe provoque. Quem realiza ou auxilia o procedimento, pode ser condenado de um a quatro anos de prisão.

Existem, no entanto, três exceções previstas na lei:

  • quando a gravidez traz risco à vida da gestante;
  • quando a gestação é fruto de um estupro. Nestes casos, o aborto é permitido e o Sistema Único de Saúde (SUS) deve disponibilizar o procedimento;
  • quando o feto é anencéfalo, segundo decisão tomada em 2012 pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Por isso, em tese, nessas três circunstâncias, não seria necessária uma autorização judicial para realizar o aborto, mas não é o que ocorre na prática.  “Existem mulheres que vão para um hospital, confirmam que a gravidez é fruto de um estupro e a unidade pede o boletim de ocorrência, sendo que não existe a obrigação legal de apresentação dele para que se possa acessar a interrupção de uma gestação. Muitas tomadas de decisões dos profissionais de saúde ainda são fundamentadas nos seus próprios preconceitos ou visões de mundo”, afirma Isabela Del Monde, advogada e Coordenadora do Me Too Brasil, em uma entrevista à revista Glamour.

Há também unidades de saúde que recorrem a brechas na legislação para negar o aborto a mulheres que têm o direito, como ocorreu no caso da menina de Santa Catarina. Valem-se, por exemplo, da alegação de que o período para realização do procedimento foi ultrapassado. Vale destacar que o Código Penal, embora recomende o aborto legal entre a 20ª e 22ª semana de gestação, não fixa um prazo máximo para que a gravidez seja interrompida nestes casos.

Ana Teresa Derraik, ginecologista e obstetra, explica que também há um desconhecimento sobre o que configura gravidez em caso de estupro. “No geral, estupro é qualquer constrangimento que você sofra para ter relação sexual com alguém. Por exemplo: uma mulher que é enganada na hora da relação sexual por acordar com o parceiro o uso da camisinha, e ele não o utilizar, é vítima um estupro. Consequentemente, tem direto ao aborto legal”, disse à Glamour. 

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Embora existam projetos de lei na Câmara e no Senado sobre o aborto (tanto para dificultar a interrupção da gravidez quanto para descriminalizar a prática), pouco mudou nas últimas décadas. 

Impactos da criminalização do aborto na saúde da mulher

Segundo a Organização Mundial da Saúde, políticas que atrasam ou impedem o procedimento, como a criminalização, período de espera obrigatório, aprovação de familiares e outros tipos de limites, acabam colocando em risco a vida de mulheres e meninas, principalmente as que enfrentam maior vulnerabilidade social. Isso porque, embora realizar o aborto clandestinamente seja perigoso para todas, as que têm melhores condições financeiras conseguem encontrar clínicas mais seguras e médicos mais qualificados para realizar o procedimento, o que não ocorre no caso das mais pobres.

O aborto clandestino é a quarta maior causa de morte materna no Brasil. Quando não resultam em óbito, os procedimentos clandestinos podem deixar sequelas físicas – perfuração de útero, retenção de restos de placenta, infecções, esterilidade – e psicológicas – depressão e transtornos diversos. 

Além disso, a criminalização gera um mercado de clínicas clandestinas e tráfico internacional de medicamentos abortivos, que aumenta ainda mais os riscos para as mulheres que podem ter contato com medicações contaminadas, adulteradas ou não saberem utilizá-las da maneira correta.

Para a OMS, o aborto (em qualquer tempo gestacional),  é uma questão de saúde pública e individual, e sua criminalização leva a mortes evitáveis das pessoas mais vulneráveis.

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“Ser capaz de obter um aborto seguro é uma parte crucial dos cuidados de saúde. Quase todas as mortes e lesões resultantes de abortos inseguros são totalmente evitáveis. É por isso que recomendamos que mulheres e meninas tenham acesso a serviços de aborto e planejamento quando precisarem”, disse Craig Lissner, diretor interino de saúde sexual e reprodutiva e pesquisa da OMS.

Em países onde o procedimento é legal, nove em cada 10 são feitos em condições médicas ideais. Já em países em que o aborto é restrito, apenas um em cada quatro é realizado de forma segura. 

Consequências para o SUS

A criminalização faz com que mulheres recorram a métodos inseguros para praticar o aborto, como a introdução de objetos no útero. Este tipo de intervenção muitas vezes resulta em hospitalizações e mais atendimentos – que, por sua vez, acabam gerando gastos para o sistema de saúde. 

Dados do DataSUS indicam que no primeiro semestre de 2020, cerca de 80,9 mil mulheres foram atendidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) após abortos mal-sucedidos. Durante o período, o SUS gastou aproximadamente R$ 14,29 milhões com curetagens e aspirações, procedimentos feitos quando os abortos não foram finalizados. 

De acordo com o mesmo levantamento, em uma década, foram gastos pelo SUS R$ 486 milhões com internações por complicações do aborto. 

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“Descriminalizar o aborto é uma medida inteligente e estratégica para os sistemas de saúde e representa economia ao investir em ações que reduzam custos, principalmente se o progresso for no sentido da prestação de serviços com tecnologia mais avançada – que atualmente é o aborto medicamentoso ou a aspiração manual intrauterina (AMIU) sem internação, centro cirúrgico, equipamentos médicos ou leitos”, disse María Antonieta Alcalde Castro, diretora para a América Central e México da organização internacional Ipas, em entrevista à Bloomberg Línea

“Proporcionar o acesso ao aborto é algo que custa muito barato se comparado ao custo de receber mulheres em situações de emergência”, completa.

O aborto em outros países e os efeitos da legalização

Nos últimos anos, diversos países da América Latina legalizaram a interrupção da gravidez, fornecendo colocando um fim nos procedimentos clandestinos. 

Em 2020, a Argentina aprovou a lei que permite o aborto, em todos os casos, até a 14ª semana de gestação. No ano seguinte, a Suprema Corte do México também legalizou a prática. Em 2022, foi a vez da Colômbia, que descriminalizou o aborto até a 24ª semana de gestação. Uruguai, Guiana e Guiana Francesa já previam a interrupção da gravidez por lei anteriormente.

Na França, o aborto foi legalizado em 1975. Em Portugal, a legalização aconteceu em 2007. Canadá, Dinamarca, Suécia, Espanha, Cuba, Rússia, Coreia do Norte, Holanda e Nova Zelândia também estão na lista de países que legalizaram a interrupção da gravidez. 

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Pesquisas indicam que, de maneira geral, após um período inicial de aumento ou estabilidade nos números de abortos, os casos caem drasticamente nos países onde ocorreu a legalização. Isso também está associado às políticas públicas de saúde sexual e reprodutiva que fazem parte do processo de legalização, como campanhas de conscientização e educação sexual da população.

Segundo um levantamento do Instituto Francês de Estudos Demográficos (INED), os números caíram na França um certo período após a descriminalização. Em 1976, a cada 1.000 mulheres entre 15 e 49 anos, 19,6 realizavam o aborto. Em 2019, a taxa caiu para 15,7. Já em relação à eficácia das políticas públicas, no ano em que a lei foi alterada, 20,1% das francesas entre 18 e 44 anos não utilizava nenhum tipo de contraceptivo. Em 2013, a porcentagem era de 2,3%.

No Uruguai, que é um caso mais recente, nos primeiros anos da lei houve um aumento no número de abortos e depois foi observada uma estabilização. Entre 2013 e 2014, os dois primeiros anos da lei em vigor, o número de abortos cresceu 27%; já entre 2016 e 2017 o aumento foi de 2% , de acordo com dados do Ministério da Saúde Pública (MSP) uruguaio.

Soledad González, cientista política e integrante do coletivo feminista Cotidiano Mujer, explicou em entrevista à revista Gênero e Número que esse aumento faz parte da etapa de implementação da lei. Com a legalização, segundo a especialista, as mulheres passam a confiar mais no sistema de saúde e utilizá-lo com mais frequência. “Não se trata necessariamente de um aumento real no número de abortos, mas um aumento no número de abortos legais: as mulheres deixam de fazê-lo de forma clandestina e passam a fazê-lo de maneira segura.”

Apesar dos indicativos otimistas em termos de saúde pública, alguns países reconhecidamente pioneiros na legalização do aborto voltaram a colocar a questão em xeque nos últimos anos. O caso mais emblemático e recente é o americano. Nesta sexta-feira (24), a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que o aborto deixaria de ser um direito constitucional no país, como ocorre desde 1973. Com a decisão, os estados americanos passam a ter autonomia para legislar sobre a legalidade do aborto.

“Consideramos que a Constituição não confere um direito ao aborto. É hora de observar a Constituição e devolver a questão do aborto para os representantes eleitos pelo povo”, afirma a decisão da Suprema Corte. A expectativa é que estados conservadores, como o Texas, passem a criminalizar a interrupção da gravidez.

Nos vestibulares

Por ser um tema polêmico, o aborto deve aparecer apenas em redações de vestibulares que estejam habituados a dialogar com questões atuais, segundo Maria Catarina Rabelo Bozio, coordenadora e professora de Redação do Poliedro Colégio de São José dos Campos,. 

Essa abordagem, voltada a discussões atuais e sensíveis, é mais frequente em propostas de redação elaboradas pela banca da Fundação Vunesp e pela banca da Comvest, responsável pela elaboração do vestibular da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). 

Em 2017, por exemplo, a banca da Vunesp cobrou dos candidatos à Faculdade de Medicina de Jundiaí (FMJ) o tema “Estatuto do Nascituro: os direitos do embrião devem se sobrepor aos direitos das mulheres?”.

“Trata-se de um tema que coloca em embate questões relacionadas à ética e à ciência, e esse é um caminho que pode ser cobrado pela redação no vestibular, a fim de que o aluno se posicione a favor ou contra o aborto”, diz Daniela Toffoli, professora de Redação do Curso Anglo. 

No entanto, Daniela ressalta que a banca de nenhum vestibular faz julgamentos quanto à posição que o candidato adota, já que o principal objetivo é analisar se ele consegue sustentar seu posicionamento de maneira coerente e consistente. Por isso, a banca pode seguir um um viés mais social – ou seja, um tema que faça o estudante explorar as relações de causas e consequências (impactos) em se descriminalizar o aborto no Brasil.

Para se aprofundar

Para ampliar ainda mais o seu repertório sobre o assunto, as professoras separaram algumas indicações. Confira:

Documentários

Filme

Literatura

Podcast

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