Em pronunciamento em cadeia nacional de rádio e televisão no dia 31 de agosto, o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, pediu o envolvimento de toda a sociedade para evitar apagões e racionamento nos próximos meses. Na ocasião, o ministro justificou situação crítica dos reservatórios das usinas e a alta na tarifa para pagar a energia produzida por termelétricas.
Mas afinal, a crise hídrica pode deixar o Brasil sob o risco de um novo apagão? Vamos relembrar um passado recente para explicar a situação.
Quem era crescidinho em 2001 tem na memória uma profunda readaptação nos lares e municípios brasileiros naquele ano. Quem tinha duas geladeiras desligou uma. As lâmpadas comuns foram trocadas por fluorescentes. A ordem era não demorar no banho, não deixar a luz acesa e evitar todo e qualquer desperdício de energia. Os shoppings centers e comércios em geral funcionavam em horários restritos e mesmo a indústria teve que se readaptar à nova realidade.
Naquele ano, o Brasil vivia seu primeiro racionamento de energia desde que se constituíra de fato como um país urbano e industrial. A ação coletiva evitou o apagão, risco iminente naquele ano, mas não poupou o país de uma queda no crescimento econômico, que caiu de 4,5% em 2000 para 1,4% em 2001.
Diversificar a matriz energética
Após duas décadas, os reservatórios enfrentam a maior seca em 91 anos. No entanto, hoje nossa matriz energética é mais diversa. Segundo um levantamento do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a partir de dados do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), “o Brasil dispõe, em agosto de 2021, de 172 GW de capacidade de geração, distribuídos desta forma: 63% proveniente de usinas hidroelétricas (UHE), 13% de usinas térmicas, 11% de plantas eólicas, 3% de painéis solares, 8% de usinas à biomassa e pouco mais 1% relativo às duas usinas nucleares.”
Há 20 anos, o sistema estava baseado somente nas hidrelétricas e nas termoelétricas. Essa diversidade da matriz energética é o que protege, por exemplo, a região Nordeste, com índices próximos a 70% em seus reservatórios.
Mesmo assim, a situação é grave. O próprio governo, por meio da ONS, já lançou um programa que visa estimular a redução do consumo de energia para evitar o racionamento. O vice-presidente Hamilton Mourão também tratou o racionamento como possível.
Embora haja divergências entre os principais estudiosos do assunto em relação à dimensão da crise, um fato com o qual todos concordam é que há risco de racionamento em razão dos índices dos reservatórios, em torno de 20% no Sudeste/Centro-Oeste e Sul. Outra certeza é que a conta de luz vai ficar mais cara.
“Tem uma questão que não aparece no cenário que é o racionamento via preço. As medidas oneram muito uma tarifa que já estava elevada”, afirma Clarice Ferraz, diretora do Instituto Ilumina, voltado ao desenvolvimento estratégico do setor elétrico.
Outro risco apontado por Ferraz diz respeito à gestão do sistema elétrico brasileiro. Em 2001, o setor ainda tinha preponderância do Estado na geração, distribuição e transmissão de energia, o que favorecia ações centralizadas, fundamentais num contexto de crise. O que não há agora.
“A situação é mais grave. Naquela época você tinha recém-aberto o setor à concorrência. Nesse setor todo mundo tem que estar alinhado. O mercado livre era 2%. Hoje a gente já está em 30%”, afirma. “A crise foi tamanha [naquele ano] que o entendimento da crise fez com que os gestores, depois de muito adiarem, tomaram a decisão de centralizar [a gestão da crise]. Você teve justamente a criação de uma câmara de gestão de crise. Foi tudo centralizado na mão do Estado via governo.”
A especialista aponta também para mudanças no perfil do consumo de eletricidade no âmbito doméstico. À época, ela lembra, a energia elétrica era barata e o país vivia ainda a memória do período de inflação, que havia se encerrado há pouco mais de cinco anos. Desse modo, quando veio o racionamento foi mais fácil adaptar o cotidiano.
Hoje, os eletrodomésticos consomem menos energia e a conta de luz é mais alta. Esses fatores estimulam o uso mais racional da eletricidade por um lado. Por outro lado, nos tornamos mais dependentes da energia elétrica dentro de casa. “Afinal, a gente está trabalhando em home office”, lembra Ferraz.
A questão ambiental também é outro fator apontado por Ferraz, ante os frequentes recordes de desmatamento que o país tem enfrentado. “Faz mais de 10 anos que a pluviometria não é a mesma. Lá no Sul, as afluências do Rio que abastece estão em 21% da média histórica. Isso é muito seco. Há na média uma tendência a aquecimento e mais seca.”
Diante desse contexto, o pesquisador Ronaldo Bicalho, da UFRJ, um dos maiores conhecedores do sistema elétrico brasileiro, alerta para risco de danos nas turbinas das hidrelétricas se os reservatórios atingirem índices abaixo de 10%. “Abaixo de um determinado nível, você coloca em risco a turbina. Tem um fenômeno chamado cavitação (quando entra água e ar). Essas bolhas de ar batem na paleta da turbina e danificam. Para não danificar a turbina, você para a central hidrelétrica”, explica. Isso, ele afirma, torna o setor demasiado dependente do volume de águas dos rios, criando um cenário de instabilidade para o sistema. “A gente tem um problema estrutural no setor elétrico. Esse problema não vai acabar em novembro, março, nem em 2023. É uma crise que veio para ficar.”
Bicalho explica que isso ocorre em virtude da perda de capacidade dos reservatórios em acumular água e das próprias mudanças dos índices pluviométricos, num país cuja matriz energética está baseada, por questões geográficas, na hidroeletricidade. “Nós precisamos mudar nossa matriz de recursos naturais. Buscar uma diversidade maior. Chover ou não chover tornou-se uma questão dramática”, afirma. “As nossas [usinas] térmicas são ruins e caras. Essas térmicas quando a gente desenhou, eram as térmicas dos reservatórios grandes. Elas não entravam nunca [em atividade]. Elas são inadequadas para o jogo que a gente precisa jogar.”
Para o pesquisador sênior do Gesel, Roberto Brandão, a situação é mais grave, do ponto de vista da seca, mas o racionamento, se houver, não será na mesma proporção que de 2001. “Acho que a gente pode ter problemas mais para o final do ano. Pode ter até um racionamento, mas não na dimensão de 2001. Em 2001, a gente já estaria racionando numa média de 20%.” Segundo o especialista isso não deve se repetir neste ano. “É uma situação muito pior do ponto de vista hidrológico, mas o sistema está mais folgado e mais diversificado. Foi dimensionado para um consumo bem maior que esse aí.”
No entanto, ele alerta que a energia deve ficar mais cara – questão também apontada por Ferraz e Bicalho. “A gente pode vir [também] a ter problemas de abastecimento.”