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Cotas raciais: por que as universidades adotam bancas de verificação?

Entenda os principais pontos desse debate que envolve as raízes do racismo brasileiro

Por Juliana Morales
Atualizado em 10 mar 2023, 15h36 - Publicado em 5 set 2022, 10h10
Alunos fazem tour no prédio das letras na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
 (Marcos Santos/USP Imagens/Reprodução)
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A exemplos de outras instituições do país, a Universidade de São Paulo (USP) decidiu implementar, para o ano de 2023, uma comissão de verificação para ingressantes via cotas raciais no vestibular da Fuvest e no Sisu. A banca será composta de um docente, um servidor técnico-administrativo, um aluno de graduação e um aluno de pós-graduação (ambos indicados pela Coligação dos Coletivos Negros da USP), além de um representante da sociedade civil. Os cinco membros deverão ter, preferencialmente, experiência comprovada em procedimentos do tipo ou ser especialistas na temática da igualdade racial.

A USP adota a reserva de vagas para alunos de escolas públicas e autodeclarados PPI (pretos, pardos e indígenas) nos cursos de graduação desde o vestibular de 2018. Até o processo seletivo deste ano, a USP utilizava apenas a autodeclaração para validar a matrícula dos ingressantes pelas cotas étnico-raciais. Nesse caso, o próprio candidato, no ato da inscrição do vestibular, especifica a sua identidade racial.

O processo, no entanto, se mostrou ineficiente. Desde a adoção dessa política, a USP recebeu cerca de 200 denúncias de supostas fraudes na autodeclaração de pertencimento ao grupo PPI (pretos, pardos e indígenas). Só no ano passado, foram invalidadas as matrículas de seis estudantes matriculados em cursos da área de saúde, entre eles, de Medicina.

Como funcionam as bancas de verificação, na prática

As bancas de verificação não são uma novidade e já estão presentes em diversas universidades brasileiras. Ainda assim, não há um modelo padrão. Cada instituição define suas regras, como o número de membros da comissão, como eles são selecionados ou em qual formato deve ocorrer.

Existem, no entanto, algumas características em comum a elas. Em geral, a análise segue critérios fenotípicos, ou seja, características físicas dos candidatos. Ela acontece por meio da avaliação de fotos, vídeos e entrevistas presenciais. Na USP, por exemplo, a primeira etapa será uma avaliação de foto, e caso haja dúvidas, o estudante passará por uma averiguação presencial.

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Dessa forma, a comissão será capaz de identificar os casos em que estudantes brancos tentam se passar por negros usando de artifícios fraudulentos como o “blackface” – quando uma pessoa branca pinta a face ou o corpo para escurecer a pele – ou lançam mão de penteados que se passem por cabelo crespo.

Distorções na autodeclaração

Além das fraudes, as bancas lidam com algumas distorções que acontecem na autodeclaração. Muitos alunos acreditam que se enquadram no grupo PPI (pretos, pardos e indígenas) porque seus pais ou avós são negros – mesmo que eles próprios não possuam traços físicos que os caracterizem dessa forma. 

O problema não é exclusivo do ambiente acadêmico. No campo político, a questão também é discutida, principalmente, depois de 2020, quando a declaração racial foi implementada pelo Tribunal Superior Eleitoral e passou a impactar diretamente na distribuição de fundo e horário eleitorais.

Nas eleições deste ano, a autodeclaração gerou controvérsias. Segundo levantamento do jornal O Estado de S. Paulo, um grupo de 33 deputados candidatos à reeleição “mudou de cor”. Em 2018, eles se declararam brancos e, em 2022, se apresentaram à Justiça Eleitoral como pardos.

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O caso do ex-prefeito de Salvador e candidato ao governo da Bahia ACM Neto (União Brasil), que se declarou pardo, foi o que mais repercutiu. Após ser questionado sobre a autodeclaração, durante entrevista a uma emissora de televisão, ACM Neto disse que não se considera uma pessoa branca, mas que jamais diria que é negro. Segundo definição do IBGE, a população negra é composta por pretos e pardos. Ao receber essa informação na entrevista, o candidato reagiu: “Então o erro é do IBGE, não é meu. Simplesmente isso”.

Samuel Vida, professor de Direito e coordenador do Programa Direito e Relações Raciais na Universidade Federal da Bahia, destacou, em entrevista ao podcast O Assunto, como a categoria pardo tem sido utilizada de uma forma muito diferente do que historicamente ela se apresentou.

O especialista explica que, na histórica demográfica brasileira, a nomeação de pardo sempre foi atribuída ao mestiço de negro ou de indígena, com características distintas das que são predominantes em pessoas brancas. “Eles eram chamados de moreno escuro ou mulato, mas tratava sempre de um sujeito com traços fenotípicos negróides (como a cor da pele mais escura, cabelo crespo lábios grossos e nariz mais largo) ou características semelhantes aos ameríndeos”, esclarece. “Nos últimos dez anos, no entanto, pessoas com traços fenotípicos brancos começaram a se reivindicar pardos, sem ter qualquer tipo de conexão com a tradição cultural vigente do país”, analisa Samuel.

Luiz Augusto Campos, professor de sociologia e ciência política do Iesp-Uerj (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), coordenador do Gemaa (Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa), explica que os pardos entraram na categoria dos negros porque percebeu-se que eles também saíam em desvantagem nas oportunidades sociais e, assim, também necessitam de ações afirmativas. “Estudos sociológicos sobre racismo e desigualdades raciais, que começaram a ser realizados desde o final da década de 1970, mostraram que pretos e pardos têm dados socioeconômicos similares”, afirmou também em entrevista ao O Assunto.

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Autodeclaração e heteroidentificação

A socióloga e pesquisadora de relações raciais na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Najara Lima Costa, explica que o racismo estrutural brasileiro está ligado às características fenotípicas das pessoas pardas e pretas. Diante da desigualdade histórica existente no país, esses aspectos físicos interferem nas oportunidades acadêmicas, sociais e profissionais dessa população. Ou seja, no Brasil, a pessoa sofre racismo por ser vista pela sociedade como negra – categorização que inclui pretos e pardos. Mas se a pessoa tem pais ou avós pretos, mas é percebida como branca por outras pessoas, a tendência é que ela não sofra tanta discriminação, acredita Najara.

Os números provam isso. Dados oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Ministério da Economia de 2020 mostram que a desigualdade racial no mercado de trabalho, que sempre existiu, se acentuou por causa da pandemia da covid-19. Segundo a pesquisa, na passagem do primeiro para o segundo trimestre de 2020, que correspondem aos três primeiros meses de pandemia, a taxa de desemprego entre os pretos aumentou em 2,6 pontos percentuais (p.p.) e a dos pardos, 1,4 p.p. Já entre os brancos, a alta foi de apenas 0,6 p.p.

É para combater esse racismo que tem marcas sociais muito arraigadas que as cotas devem seguir em vigor, acredita Najara. E para evitar fraudes e equívocos é que surgem as comissões para avaliar caso a caso. Apesar de serem mais conhecidas como bancas de verificação, alguns especialistas defendem que o melhor termo para se referir a elas é “heteroidentificação”.

Como a própria etimologia diz (“hetero” refere-se ao “outro”), trata-se de um grupo (qualificado em questões raciais) para analisar se, na percepção da sociedade, o estudante é lido como negro e por isso vai estar em desvantagem de oportunidades.

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Najara esclarece que a heteroidentificação não anula a autodeclaração e nem cria um “tribunal racial”, como alguns críticos alegam. O estudante de ascendência negra pode se identificar como uma pessoa parda ou preta, apesar da falta de traços físicos considerados determinantes. É um aspecto pessoal e subjetivo, cabendo apenas ao sujeito a autodeclaração. No entanto, cabe a banca ater-se à percepção alheia sobre a raça daquela pessoa, sem considerar a história de vida e, para isso, é preciso critérios que levem em conta o aspecto fenotípico.

A socióloga acrescenta que, para não ferir o princípio da autodeclaração, existem alguns procedimentos necessários, como o princípio do direito ao contraditório. Ou seja, o candidato tem o direito de questionar juridicamente ou por processos administrativos o veredito da banca.

Outro ponto é a garantia do direito à dignidade humana. “As pessoas que passam pelas bancas não podem se sentir constrangidas”, explica. “Os candidatos, por meio do tratamento adequado pela comissão, precisam compreender que aquele procedimento é importante para preservar uma política pública tão importante, evitando fraudes”, acrescenta.

Uma verificação que dê conta da realidade brasileira

Para entender esse critério usado nas comissões, Najara diz que é preciso perceber como o racismo opera no Brasil. A título de comparação, ela dá o exemplo do Estados Unidos, onde a população negra é minoria (11%) em termos de número de habitantes. Por conta de seu processo de colonização da Guerra de Secessão, a questão racial na sociedade norte-americana sempre esteve muito ligada a uma ideia de pureza (branca) e uma segmentação espacial.

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Um exemplo disso era a existência de escolas, banheiros, bebedouros e até lugares no ônibus divididos entre pessoas brancas e pessoas negras. Uma referência que pode ajudar a ilustrar como se dava esse tipo de racismo é o filme Histórias Cruzadas, de 2011.

“Lá [nos EUA] existe a regra da gota de sangue: se você tem um gota de sangue negro você será tratado como tal”, diz Najara. Portanto, a sociedade norte-americana não define quem é negro ou não apenas pelo fenótipo, mas também leva em consideração as origens das pessoas. “Assim, uma pessoa branca, com cabelo liso e olhos claros pode ser vista como negra por ter antepassados pretos”, acrescenta.

A realidade histórica do Brasil é diferente, alerta a professora, que é autora do livro Quem é negra/o no Brasil?. Aqui, foi criado o mito da democracia racial que perpetua o racismo no Brasil até hoje. Ele consiste na ideia que, ainda que a colonização tenha sido marcada pela imposição dos valores europeus, a grande miscigenação no Brasil teria contribuído para proporcionar uma relação menos conflituosa entre as raças.

Em resumo, seria uma realidade na qual todos teriam igualdade nas diferentes esferas da sociedade, independentemente de cor ou etnia. Todos sabemos que na prática a teoria é outra. Os pretos e pardos ainda estão mais expostos à violência, representando 77% das vítimas de homicídio segundo o Atlas da Violência, disponibilizado pelo IPEA.

A pesquisa “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, divulgada pelo IBGE em 2019, mostrou que, pela primeira vez, o índice de alunos pardos e pretos matriculados em universidades públicas superou o de alunos brancos, alcançando 50,3% naquele ano. A inserção de mais negros no ensino superior se dá, principalmente, pela Lei de Cotas, que desde 2012 estabelece que os 50% de vagas reservadas para cotas nas universidades federais deverão ainda ser subdivididas entre pessoas pretas, pardas e indígenas (agrupadas na sigla PPI), além de pessoas com deficiência.

Apesar de todo o avanço educacional para a população negra, a desigualdade racial continua a olhos vistos. Pretos e pardos representam 55,8% da população brasileira e, por mais que sejam maioria nas universidades públicas, o número de negros no ensino superior ainda é baixo. Por isso, a política de cotas raciais ainda se faz necessária e deve ser usufruída por quem, de fato, sofre com as consequências do racismo. Sem fraudes ou distorções.

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