FHC e Lula: uma história de mais de 40 anos
Os dois ex-presidentes entraram na vida pública brasileira em oposição à ditadura e governaram o país durante o período de maior progresso da Nova República
O aperto de mão entre os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no final da semana passada repercutiu nas redes sociais. Quem estava habituado a vê-los em dois lados opostos da disputa político-partidária brasileira deve ter estranhado. O que pouca gente lembra – sobretudo os mais jovens – é que Lula e FHC caminharam no mesmo campo durante muito tempo, entre o final da ditadura e o início da Nova República (1985). Afastaram-se ao longo dos anos e, agora, em mais um momento de grave crise política, se reencontram.
Vamos conhecer melhor as trajetórias de ambos
A abertura política
O fim do AI-5, em 1978, e a Lei de Anistia, no ano seguinte, marcam o início do processo de abertura política no Brasil e o fim da ditadura civil-militar (1964-85). Nessa época, o ex-presidente Lula era o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. O ex-presidente FHC, que havia sido aposentado compulsoriamente da Universidade de São Paulo (USP) em 1969 pela ditadura, dava seus primeiros passos na vida política, como suplente de Franco Montoro pelo MDB (Movimento Democrático Brasileiro), a oposição “consentida” à ditadura. Lula e FHC conheciam desde 1977 e se aproximaram muito nesse período, que ficou marcado, entre outras coisas, pelas greves operárias lideradas pelo movimento sindical do ABC.
1985
As eleições municipais deste ano marcam o primeiro afastamento entre Lula e FHC. Candidato à prefeitura de São Paulo, FHC atribuiu em partes sua derrota para o ex-presidente Jânio Quadros ao petista Eduardo Suplicy, que acabou as eleições em terceiro lugar.
A Constituinte
Lula e FHC estiveram juntos na Assembleia Constituinte (1987-88), que foi concluída em 5 de outubro de 1988 com a promulgação da chamada “Constituição cidadã”, em decorrência de seu caráter social.
Uma curiosidade: FHC é o redator do Art 142, o qual afirma que “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.” Este artigo ganhou notoriedade em meio à crise política de 2020, quando o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) aventou acioná-lo contra o Supremo Tribunal Federal (STF).
1989
As eleições de 1989 foram as primeiras para presidente da República desde 1960, quando o país elegeu Jânio Quadros – sim, o mesmo que derrotou FHC em 1985. Foi a primeira vez que o PT e o PSDB – fundado no ano anterior – se enfrentaram, embora não tenham polarizado a disputa. O segundo turno deu-se entre Fernando Collor (então no Partido da Reconstrução Nacional, PRN) e Lula, que teve o apoio do PSDB.
O Plano Real
Collor renunciaria em 1992, após mais de dois anos de crise econômica e política que levaram à abertura de um processo de impeachment. A renúncia se deu para escapar da cassação. Com sua queda, ascende seu vice, Itamar Franco (1930-2011) e os tucanos ingressam no poder.
No final de 1993, FHC assume o Ministério da Fazenda e coordena o grupo de economistas responsável pela elaboração do Plano Real, instituído a partir do início de 1994. A boa condução do plano que erradicou a inflação tirou o favoritismo de Lula das eleições daquele ano. FHC seria eleito no primeiro turno com 54,3% dos votos.
Anos FHC
Os anos FHC marcam o início de uma oposição formal entre PSDB e PT. O primeiro, inspirado originalmente na socialdemocracia europeia, adota um programa econômico em consonância
com o neoliberalismo, então em seu auge. Tem, nisso, forte oposição ao PT, sobretudo em relação às privatizações, um dos símbolos do período.
No entanto, a oposição aguerrida dos petistas não foi o suficiente para fazer frente à sensação de bem estar proporcionada pela estabilidade da inflação – após mais de uma década. FHC seria reeleito no primeiro turno em 1998.
A lua de mel com seu governo, todavia, acabaria logo no início do segundo mandato. A chamada âncora cambial, que mantinha o real e o dólar no mesmo valor, é abandonada, reacendendo o alerta de volta da inflação. Isso porque a paridade entre as duas moedas tinha um custo muito alto. A sua manutenção dependia que a taxa Selic se mantivesse em níveis elevadíssimos para atrair dólares.
Isso, por um lado, auxiliava na manutenção da inflação em patamares baixos, por meio do consumo de importados. Por outros, deu início ao processo de desindustrialização no Brasil, elevando o desemprego, além de ter um alto custo fiscal, uma vez que a dívida do governo é quase toda lastreada nos juros da Selic.
A crise inicial foi logo revertida com a criação do regime de “metas de inflação”. Em 2000, o país chegou a crescer 4,4%. No entanto, a crise do setor elétrico no ano seguinte, que obrigou o país a poupar energia, derrubou o crescimento e a popularidade de FHC. Em 2002, além do baixo crescimento, o país conviveu com um repique da inflação. Apesar do “medo” que despertava em alguns setores, Lula foi eleito no segundo turno, derrotando José Serra (PSDB), o candidato tucano.
A transição
A eleição de Lula marca também a primeira alternância de poder no período da redemocratização. O momento da troca da faixa presidencial, em 2003, trouxe outro simbolismo, tão ou mais importante que a própria sucessão: em 1º de janeiro daquele ano um opositor da ditadura civil-militar entregava o poder a outro opositor do regime ditatorial. Lula e FHC, na ocasião, selaram um pacto de não-agressão.
Anos Lula
A pax tucano-petista durou pouco. Um marco do acirramento entre os dois partidos é a declaração de que o PT havia recebido uma “herança maldita” dos tucanos. No entanto, o PT manteve ao longo de seus oito anos várias políticas herdadas do governo antecessor, como o regime de metas de inflação, e aprofundou outras, como as políticas de transferência de renda. Henrique Meirelles, presidente do Banco Central do Brasil (BCB) durante os oito anos de governo Lula, era um quadro vindo do PSDB.
A manutenção de determinadas políticas teve um lado positivo, mas também negativo, sobretudo no que diz respeito ao câmbio – a forte valorização do real no período, se ajudou no aumento do consumo e do bem estar da população, também colaborou com o processo de desindustrialização.
No entanto, não é correto dizer que o desempenho de Lula na presidência se deve tão somente à herança positiva de FHC. Os anos Lula foram marcados, entre outras coisas, pela retomada dos investimentos, a valorização do salário mínimo, políticas de inclusão e o forte investimento em ciência e tecnologia.
Dilma e o impeachment Logo em seu início de governo, a ex-presidente Dilma Rousseff emitiu uma nota parabenizando o ex-presidente FHC, na ocasião muito impopular, por seu aniversário. A mensagem, enviada em 2011, teve grande repercussão – àquela época o forte acirramento entre os dois partidos já era a norma e viveria seu auge entre 2014 e 2016.
A reeleição de Dilma, por uma margem estreita, leva à contestação dos resultados eleitorais por Aécio Neves (PSDB), seu opositor. Em 2015, o partido embarca na campanha pelo impeachment e, no ano seguinte, com o afastamento de Dilma, compõe o governo Temer (MDB). A sucessão de eventos que levaria à queda de Dilma marca o fim de qualquer possibilidade de diálogo entre petistas e tucanos – incluindo aí os simpatizantes do partido.
A ascensão de Bolsonaro
O apoio velado e a tibieza da maior parte dos quadros tucanos frente a ascensão de Bolsonaro – incluindo-se, aí, o ex-presidente FHC – levam a um afastamento ainda maior entre PT e PSDB. O acirramento da crise política e democrática do país a partir de 2020, no entanto, leva a uma crescente pressão pelo restabelecimento do diálogo entre os dois partidos, algo esperado desde a ascensão de Bolsonaro em 2018 e que se consumou na semana passada.
Os encontros de Lula e FHC
É preciso dizer, no entanto, que a polarização entre petistas e tucanos entre 1994 e 2014, se contou com excessos entre ambos, foi marcada durante quase todo o período pelo cumprimento das regras democráticas. E até mesmo por momentos de grandeza, como os abraços de FHC e Lula na ocasião das mortes de dona Ruth Cardoso, esposa do primeiro, e dona Marisa Letícia. E também por momentos simbólicos, como a ida de ambos – acompanhados também por Collor e José Sarney (MDB) –, na comitiva da presidente Dilma, ao funeral do ex-presidente sul-africano Nelson Mandela (1918-2013). FHC, ainda, depôs a favor de Lula em um dos processos da Lava Jato.