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“Retrocesso de 60 anos”: o decreto de Bolsonaro para a Educação Especial

A estudante de 16 anos Graziella vivencia na sala de aula o que especialistas em educação especial pregam desde os anos 1990: a inclusão é o melhor caminho

Por Taís Ilhéu
Atualizado em 14 out 2020, 19h43 - Publicado em 14 out 2020, 11h17

“Penso que escolas só para pessoas com deficiência é como fazer uma escola que não tenha ninguém diferente, que não tenham pessoas de outras etnias, de outras sexualidades, de outros gêneros. É bem excludente, é como dizer que eu tenho que viver apenas com pessoas deficientes só porque sou uma”. Graziella Freitas tem só 16 anos, mas já explica, a seu modo, o que a professora da USP Karina Soledad, doutora em Psicologia da Educação, classifica como o paradigma da educação inclusiva. Uma escola em que todas as diferenças coexistam. 

Tanto Graziella quanto Karina receberam com indignação o decreto do presidente Jair Bolsonaro publicado no dia 30 de setembro, que institui a nova Política Nacional de Educação Especial (PNEE). Na prática, assinala a especialista, o decreto assinado por Bolsonaro e pelos ministros Milton Ribeiro e Damares Alves, da Educação e dos Direitos Humanos, respectivamente, tende a incentivar a matrícula de pessoas com deficiência, com transtornos globais do desenvolvimento e com altas habilidades ou superdotação não em escolas regulares, mas em “escolas especiais”, onde só estudaria o público-alvo da PNEE. A medida também facilita a transferência de verbas governamentais para essas instituições. 

Em função de tudo que se conquistou até hoje em termos de educação inclusiva, seria “um retrocesso absurdo, de no mínimo 60 anos”, destaca a professora da Faculdade de Educação da USP. Ela, que desde 1995 tem habilitação na Formação de Professores para Educação Especial, assistiu em especial aos dois últimos dos três marcos da educação especial no Brasil – ou seja, do processo de escolarização de pessoas com deficiência. E afirma: todos esses avanços conquistados especialmente a partir da década de 1990 não permitem que uma política de educação especial excludente seja de novo cogitada. 

Da década de 1940 a 2017: o que tornou a política da educação especial brasileira excelente na “letra da lei”

Não é novidade que falta investimento na educação especial no país, seja para a formação continuada de professores – já que muitos deles não recebem essa formação inicial para lidar com pessoas com deficiência – para investimento em infraestrutura e gestão escolar ou mesmo para pensar novas práticas escolares diferenciadas e colaborativas. Mas, se hoje o país alcançou avanços significativos na educação especial, como a matrícula de 66% das pessoas com deficiência entre 4 e 17 anos, é porque uma luta de pelo menos oitenta anos resultou em uma legislação forte, que promove e garante os direitos deste grupo de estudantes. 

Karina Soledad destaca que os três marcos da educação especial no Brasil se deram, respectivamente:

  1. Escolas especiais – A partir da década de 1940, quando os pais de crianças com deficiência passaram a lutar pela criação das escolas especiais, para que seus filhos pudessem ao menos ter o direito à escolarização, já que a maioria estava em casa. Surgem daí as fundações não-governamentais e filantrópicas, já que a educação especial ainda não era uma função do Estado. Esse primeiro período é considerado por especialistas como de segregação, já que os estudantes com deficiência não estavam integrados aos outros em escolas regulares;
  2. Integração – Em 1988, com a Constituição Cidadã e a expansão da escolarização no Brasil, começou-se a entender a educação especial como inclusiva. A nova lei estabelece que a educação para pessoas com deficiência (na época ainda chamadas de pessoas portadoras de deficiência) é de responsabilidade do Estado, e que essas crianças e adolescentes devem estar preferencialmente em classes comuns em escolas regulares. Nesse período, começaram a acontecer as primeiras tentativas de integração de pessoas com deficiência em escolas e salas regulares, mas ainda havia uma separação entre as consideradas preparadas ou não para migrarem;
  3. Política nacional de educação especial – A partir da década de 1990, considerado a “explosão” da educação inclusiva, as organizações não-governamentais com especialistas começaram a discutir a primeira política nacional de educação especial. Foi também nessa década que o Brasil tornou-se um dos signatários da Declaração de Salamanca, resolução das Nações Unidas que trata do direito das minorias à escolarização. 
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Desde então, outras leis, decretos e documentos nacionais e internacionais vieram reforçar a importância da educação inclusiva, como o decreto de 2009 que trata dos direitos das pessoas com deficiência – que depois respaldou a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, em 2015 – e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que também foi reformulada em 2017 e passou a tratar as pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento, superdotação ou altas habilidades sob os termos corretos. Além dessas, existem leis específicas, como a legislação da educação para surdos. 

Foi esse conjunto de garantias que levou diversos especialistas do mundo a afirmarem, em 2015, durante um congresso em Lisboa sobre o tema do qual Soledad participou, que o Brasil possui uma excelente política de educação especial na “letra da lei”, mas que falta investimento para colocá-la integralmente em prática. O temor dos que vivenciam a pauta em suas pesquisas, trabalhos, ou mesmo alunos com deficiência, como Graziella, é que a mudança de Jair Bolsonaro desvie ainda mais o investimento na educação inclusiva, e volte no tempo, retomando uma ideia de educação especial já ultrapassada ao menos desde a constituição de 1988. 

Sociedade inclusiva

Graziella cursa o primeiro ano do Ensino Médio em uma escola estadual em São Bernardo do Campo (SP) e, quando perguntada sobre sua experiência como pessoa com deficiência no ambiente escolar, responde antes sobre o crescimento de seus colegas pela convivência com as diferenças: “eles estão acostumados comigo, então se vier outro cadeirante eles vão saber como lidar”, assinala de cara, pontuando que, por outro lado, não saberiam lidar com um estudante autista, por exemplo. A adaptação inicial desse novo aluno, explica, seria difícil porque os colegas poderiam ter pensamentos capacitistas sobre ele. Capacitismo é a discriminação ou o preconceito contra pessoas com deficiência.

Ao pensar no crescimento global da comunidade escolar ao acolher pessoas com deficiência, Graziella caminha junto de especialistas da educação especial inclusiva. Eles entendem que o modelo é importante não apenas para estudantes com deficiência, que se sentirão mais amparados, em condições de exercer sua cidadania e de ter uma formação, mas também para a sociedade, que aprende desde cedo a aceitar e lidar com as diferenças.

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Segundo a professora Karina, trata-se de uma mudança do modelo de pensar a deficiência, que passa a ser entendida então como um problema social, e não individual dessas crianças e adolescentes. Ao sugerir que estudantes com deficiência, com transtornos globais do desenvolvimento e com altas habilidades ou superdotação estudem em escolas segregadas, o Estado acaba “culpando” eles próprios por sua dificuldade em acessar serviços ou espaços. 

Por outro lado, se o Estado as acolhe nas escolas regulares e investe para tornar estes e outros espaços mais acessíveis, eliminando barreiras pedagógicas, de infraestrutura, linguísticas, tecnológicas e outras, admite que a deficiência só existe quando as pessoas encontram esses impedimentos, explica Karina. 

Por fim, para a professora, o incentivo à segregação de pessoas com deficiência em escolas especiais não se justifica sequer sob o ponto do direito à educação de qualidade: “está provado nos estudos da Educação e na Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem. Se as crianças estão com pessoas na mesma condição que elas, o que elas vão aprender?”

Dinheiro público no setor privado: o que as fundações não-governamentais e escolas particulares ganham com o novo decreto

Assim como em seu surgimento a partir da década de 1940, as chamadas “escolas especiais” – que hoje são, na verdade, instituições especializadas – não são públicas, mas sim fundações não-governamentais filantrópicas ou compõem até mesmo a rede privada de ensino. 

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Ou seja, o decreto e a Política Nacional de Educação Especial do atual governo apontam como falhas as práticas educacionais especiais inclusivas construídas ao longo dos últimos anos, mas, em vez de se comprometer em investir mais nelas, abre caminho para investir no setor privado. Por isso, Karina Soledad entende o movimento também como uma tentativa da rede privada de “abrir escolas especiais e ter verba para seu funcionamento”. 

Vale lembrar que hoje a lei já permite a existência, o funcionamento e até o financiamento das instituições especializadas pelo governo, mas especialmente para prestar atendimento em contraturno para estudantes com deficiência que apresentam quadros mais complexos como a surdocegueira.

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