A longa história do racismo na Espanha
Olhar para o passado colonizador do país ajuda a entender como este preconceito perpetuou-se ao longo dos séculos
O espanhol Frei Bartolomé de Las Casas (1484-1566) foi um famoso missionário na colonização espanhola sobre a América. Hoje, seu legado é lembrado pela oposição que fez à violência contra os povos indígenas praticada no período, mas essa defesa tinha um preço – que Las Casas parecia não se importar em pagar. Para proteger os nativo-americanos da escravidão, ele estimulou o tráfico negreiro, que levava africanos para as colônias espanholas e os escravizava.
Como aconteceu em todo o período da escravidão, o frei tratou de encontrar uma justificativa para a escravidão, que o pesquisador de sua obra, Ruben Sánchez-Godoy, explicou séculos depois. Os africanos, para Las Casas, eram os piores tipos de bárbaros. Ele os considerava “desprovidos de razão, de costumes propriamente humanos e de tudo o que entre os homens se aceita por costumes”. Eram “selvagens, homens imperfeitos e péssimos, erros ou monstros”. Adjetivos como “bárbaros”, “escravos”, “mouros” e “infiéis” foram utilizados mais vezes pelo religioso para se referir a esses homens e mulheres do que a palavra “humanos”.
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Acontece que essa visão do religioso sobre os africanos não refletia só a sua época, mas uma relação conflituosa entre Espanha e o continente africano que já datava de séculos atrás, do período medieval. Muçulmanos e espanhóis disputaram o mesmo território por muito tempo: a região onde a monarquia espanhola se consolidou no final do século 15 estava sob domínio islâmico desde o século 8. Foi só em 1492 – poucos meses antes de Colombo chegar ao Caribe e quanto o próprio Frei Las Casas já era nascido – que a monarquia católica espanhola expulsou os mulçumanos e se consolidou na região de Granada, que hoje corresponde ao sul do país. Para os espanhóis desse período, o africano era uma mistura de mouro e bárbaro, sendo, portanto, legitimada sua escravidão.
No artigo “Atlantic History and the Slave Trade to Spanish America“, os historiadores Alex Borucki, David Eltis e David Wheat calculam que no continente americano as colônias espanholas foram as que mais se utilizaram da escravidão africana (sendo superadas somente pelo Brasil). De acordo com esses pesquisadores, entre 1520 e 1810, por volta de 1.506.000 africanos chegaram escravizados à América Espanhola diretamente da África – isso sem contar outros 566.000 africanos que desembarcaram na colônias espanholas, porém comercializados de outras colônias da América, como Jamaica e Brasil.
Novas colônias, mesmo racismo
No início do século 19, as colônias espanholas na América iniciaram as lutas pela independência, e o Império Espanhol perdeu força e relevância. Mas não era o fim do colonialismo para os espanhóis – e muito menos o fim de sua história com o racismo. Embora o neocolonialismo na África fosse dominado por outras potências globais, já plenamente inseridas na 2ª Revolução Industrial, o decadente Império Espanhol ainda investiu nos seus poucos territórios africanos no século 19 e 20. Especialmente para fortalecer e validar o franquismo – a variante espanhola do fascismo.
Durante a ditadura de Francisco Franco (1936-1975), as tropas marroquinas (Ejército de África) foram mobilizadas para lutar contra os opositores do general na Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Além disso, o domínio espanhol nestes territórios africanos fortaleceu teorias fascistas que legitimavam o franquismo, e intelectuais que apoiavam a ditadura trataram das temáticas raciais e nacionalistas sob esse viés.
Um exemplo é o filósofo Manuel García Morente (1886-1942), importante inspirador intelectual do franquismo e da Falange – outro movimento fascista –, que defendeu o conceito de “hispanidade”. Basicamente, ele definia que ser espanhol passava por critérios religiosos (católicos), nacionalistas e de raça (ou seja, incluía apenas brancos). É claro que imigrantes que vinham de colônias espanholas na África não faziam parte dessa suposta “hispanidade”. Os conceitos de Morente ganharam espaço e foram replicados em publicações fascistas espanholas, como as revistas Vértice e Juventud, ou então o semanário El Español, entre as décadas de 1930 e 1940.
Democracia – mas não racial
A queda de Francisco Franco foi celebrada na Espanha, mas não foi capaz de varrer o fascismo – e tampouco o racismo – do país. No final da década de 1970, a redemocratização espanhola não conseguiu impedir a ascensão de organizações neofascistas, que além de celebrarem a memória do ditador, mantêm vivas as ideologias de extrema-direita. Até mesmo nos meios institucionais.
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Hoje, no século 21, o partido Vox, a coalizão ADÑ Identidad Española, a fundação CitizenGO são algumas dentre inúmeras organizações que ganham espaço canalizando ódio e violentos anseios ultraconservadores, nacionalistas, misóginos, heteronormativos. Elas se fortalecem principalmente de uma xenofobia presente na sociedade espanhola alimentada também pelo racismo – seja ele contra pessoas africanas ou não.
Em entrevista concedida à BBC Brasil, o historiador Antumi Toasijé tenta explicar por que o ódio contra povos não-brancos parece ganhar ainda mais força na Espanha atualmente. Segundo ele, essa é uma forma do país “provar a sua branquitude” em um momento que se sente excluída do restante da Europa. O historiador também defende em seus artigos que o país passa por um período de “desafricanização”, uma tentativa de negar todo o legado e contribuição dos povos africanos ao longo de séculos de imigração. Para Toasijé, se essa identidade não for reconciliada, o sentimento de injustiça por parte das pessoas negras pode, cedo ou tarde, explodir em um conflito social.
O caso de racismo nos campos espanhóis parece chocar o mundo – especialmente nas últimas semanas – mas se imaginássemos um jogo educativo infantil, o que restaria do mapa mundi se retirássemos do tabuleiro todos os países onde as populações negras são submetidas a situações semelhantes ao que ocorre na Espanha?
Raphael Amaral, o Tim, é professor de História e autor de material didático para Ensino Médio e Pré-Vestibular. Possui Bacharelado e Licenciatura pela USP, Lato Sensu e Mestrado em História pela PUC. Acompanhe-o no Instagram também: @raphael_tim
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