Colômbia: Acordo abre caminho para a paz
ACORDO ABRE CAMINHO PARA A PAZ
Após muitas reviravoltas, pacto entre o governo da Colômbia e as Farc entra em vigor, podendo encerrar um conflito que já dura 52 anos
“Há uma guerra a menos no mundo, e é a da Colômbia.” Ao discursar na cerimônia em que recebeu o Prêmio Nobel da Paz, em dezembro de 2016, o presidente colombiano, Juan Manuel Santos, fez questão de destacar o caráter histórico daquele momento. Havia apenas dez dias que o Congresso de seu país referendara o acordo de paz assinado entre o governo e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).
O Nobel da Paz a Santos premiou os seus esforços ao liderar as duras negociações com a guerrilha, que tiveram início em 2012 e foram marcadas por avanços, retrocessos e muitas reviravoltas. Com o acordo em vigor, a expectativa é de que os membros das Farc sejam totalmente desmobilizados, abrindo caminho para pôr um ponto final definitivo em um conflito que, em seus 52 anos de duração, deixou mais de 260 mil pessoas mortas, 6,9 milhões de refugiados internos e 45 mil desaparecidos.
Histórico do conflito
As Farc surgiram em meio ao contexto da Guerra Fria – o conflito ideológico que dividiu o planeta entre capitalistas e comunistas. Em 1948, o assassinato de Jorge Eliécer Gaitán, candidato liberal à Presidência, identificado com a luta contra o poder oligárquico, iniciou um período de intensa guerra civil conhecido como La Violencia.
Os conflitos levaram diversos simpatizantes e membros de partidos comunistas a se refugiar em comunidades rurais. Apesar de La Violencia ter se encerrado em 1958, deixando mais de 200 mil mortos, os comunistas permaneceram no campo, exigindo plena participação política e uma melhor distribuição de terras no país.
Em 1964, o governo decidiu sufocar os comunistas com a “Operação Soberania”, que massacrou camponeses e guerrilheiros da comunidade de Marquetalia. Mas o ataque surtiu um efeito contrário: os sobreviventes decidiram formar as Farc, identificando-se como um grupo militar marxista no meio rural, cuja principal reivindicação era a reforma agrária.
No final dos anos 1970, as Farc começaram a financiar suas atividades por meio do narcotráfico. Embora mantivesse um discurso anticapitalista, a organização tornou-se, na prática, um grupo armado que sobrevivia da venda de cocaína.
Além das Farc e do Exército colombiano, o conflito envolve outras guerrilhas de esquerda, como o Exército de Libertação Nacional (ELN). Também foram atores importantes os cartéis do narcotráfico, como o Cartel de Medellín, liderado por Pablo Escobar. Uma outra força fundamental na dinâmica do conflito foi o surgimento de grupos paramilitares de direita, como a Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC). Criados por grandes proprietários de terras e militares dissidentes, essas organizações surgiram para proteger as propriedades e combater as Farc. Elas obtinham financiamento por meio do narcotráfico e da ajuda de políticos e latifundiários. Nesse conflito generalizado, ações como atentados, sequestros e extorsões aterrorizaram a sociedade colombiana, principalmente nos anos 1980 e meados da década seguinte.
LINHA DO TEMPO DO CONFLITO NA COLÔMBIA
1958 O assassinato de Jorge Gaitán, candidato à Presidência, dá início a uma guerra civil que dura dez anos.
1964 Após um ataque do governo a uma comunidade marxista no interior, os sobreviventes criam as Farc.
Anos 1970 As Farc iniciam sequestros de políticos e donos de terra. Também começam a traficar cocaína.
1986 O partido União Patriótica, composto por membros das Farc, obtém vitórias em pleitos regionais.
1997 Criação da guerrilha paramilitar Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC) para combater as Farc.
2000 Com a ajuda dos Estados Unidos, o governo lança o “Plano Colômbia”, ampliando os ataques às Farc.
2002 As Farc sequestram a candidata à Presidência Ingrid Betancourt – ela seria solta em 2008.
2012 Início das negociações entre as Farc e o governo colombiano.
2016 Após aprovação do Congresso, entra em vigor o acordo de paz que desarma e desmobiliza as Farc.
Negociações e plebiscito
Com a aprovação do “Plano Colômbia” em parceria com os Estados Unidos (EUA), o então presidente Álvaro Uribe ampliou o combate às Farc nos anos 2000, forçando o grupo a recuar para regiões das fronteiras com os países vizinhos. O contexto desfavorável aos guerrilheiros, que tiveram vários líderes mortos, levou as Farc a negociar um acordo com o governo. Iniciadas em novembro de 2012, sob a mediação do presidente cubano Raúl Castro, as conversas avançaram gradativamente. Até que, em setembro de 2016, o presidente Santos e o líder das Farc, Rodrigo Londoño, conhecido como Timochenko, assinaram um acordo de paz em Cartagena, com a presença de diversos chefes de Estado.
Para garantir a legitimidade do acordo, estabeleceu-se a realização de uma consulta popular, um plebiscito, em 2 de outubro. Contrariando as pesquisas, 50,2% dos eleitores colombianos rejeitaram o acordo de paz.
O principal articulador da campanha contra o pacto foi o ex-presidente Álvaro Uribe, que contou com o apoio de vários líderes da oposição. De modo geral, os partidários do “não” eram a favor da paz, mas ficaram incomodados com algumas concessões que o governo colombiano fez à guerrilha, consideradas excessivas. Entre as principais objeções estava o fato de guerrilheiros que haviam cometido crimes contra a humanidade, como sequestros, assassinatos e estupros, passarem a receber um salário do governo e não cumprir pena de prisão.
Já os que votaram a favor do acordo reconheciam as injustiças, mas alegavam ser preciso superá-las em nome da paz. Questionado sobre as concessões que o governo havia feito às Farc, o presidente Santos respondeu: “Eu prefiro um acordo imperfeito que salve vidas a uma guerra perfeita que continue semeando morte e dor em nosso país”. Como em qualquer acordo do gênero, no qual é preciso fazer concessões, logo ficou clara a dificuldade em conciliar a justiça plena e a paz.
O acordo final
Após o plebiscito, o governo colombiano e as Farc voltaram a sentar-se à mesa de negociações para rever alguns dos pontos mais polêmicos do acordo. O anúncio do Prêmio Nobel da Paz a Santos ocorreu justamente nesse período, o que ajudou nos esforços para o avanço do processo de paz.
Em novembro, um novo pacto foi assinado e, dessa vez, o governo optou por não submeter a proposta a um plebiscito. O texto foi encaminhado diretamente para o Congresso, que ratificou o novo acordo, em 30 de novembro. Em linhas gerais, os principais termos do acordo dizem respeito aos seguintes itens:
REFORMA AGRÁRIA O governo se comprometeu a investir em educação e saúde nas áreas rurais e fará a distribuição de terras para as famílias mais pobres.
TRÁFICO DE DROGAS As Farc se comprometem a abandonar suas relações com organizações criminosas que participam do tráfico. Os trabalhadores rurais envolvidos no plantio da coca terão incentivos do governo na transição para cultivar outros produtos.
REINSERÇÃO NA VIDA CIVIL O governo pagará um valor correspondente a 90% do salário mínimo colombiano por dois anos aos guerrilheiros, até que consigam reintegrar-se à sociedade e inserir-se no mercado de trabalho.
REINSERÇÃO NA VIDA POLÍTICA O governo também subsidiará a preparação dos líderes das Farc para a vida política e a conversão do grupo em um partido apto a participar das eleições parlamentares de 2018 e 2020 – caso não conquistem os votos necessários, o grupo terá direito a cinco cadeiras no Senado e na Câmara.
REPARAÇÃO ÀS VÍTIMAS Será criada uma Comissão da Verdade para que a população conheça o que aconteceu durante o conflito. O acordo permitirá que famílias que foram deslocadas em virtude do confito possam retornar às suas terras. As Farc entregarão um inventário de suas posses, e esses bens devem ser revertidos em um fundo para reparação das vítimas.
JULGAMENTO Um sistema jurídico especial será criado para julgar guerrilheiros, militares e civis envolvidos no conflito. Aqueles que cometeram crimes menos graves podem ser anistiados se confessarem e pedirem perdão – as penas serão convertidas em trabalho voluntário. Quem cometeu e confessar os crimes de lesa-humanidade, como assassinato, sequestro, estupro e tortura, pode ter a pena abrandada de cinco a oito anos de restrição de liberdade. Não serão encaminhados a prisões comuns e sim para unidades de “movimentação limitada e vigilância”. O narcotráfico pode ser passível de anistia se for comprovada a finalidade política do crime.
Apesar da ratificação do acordo, o estabelecimento da paz definitiva não será fácil. Isso porque ainda atuam na Colômbia outras milícias, como o ELN, que podem atrair membros das Farc insatisfeitos com o acerto. Ainda assim, é inegável que se trata do maior passo rumo à estabilização de um país abalado por décadas de violência.
Colômbia
FARC As Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) surgiram em 1964, em meio ao contexto histórico da Guerra Fria. Identificando-se como um grupo militar marxista no meio rural, o grupo aderiu à luta armada para derrubar o governo e reivindicar a reforma agrária. A partir do final dos anos 1970 passou a financiar suas atividades por meio do narcotráfico.
O COMBATE À GUERRILHA Nos anos 1980 e 1990, a guerrilha aterrorizou a população colombiana promovendo atentados, sequestros e extorsões. Grupos paramilitares, formados por militares dissidentes e proprietários de terras, passaram a combater as Farc. Nos anos 2000, com a ajuda militar dos Estados Unidos (EUA), o governo da Colômbia intensificou o ataque à guerrilha, que enfraqueceu e abriu a possibilidade de negociar a paz.
NEGOCIAÇÕES As negociações entre o governo e as Farc começaram em 2012, sob mediação de Cuba. Um acordo foi alcançado em setembro de 2016. Mas o pacto não foi aprovado em plebiscito realizado no mês seguinte. Pesaram contra o acordo as concessões, consideradas excessivas, feitas pelo governo à guerrilha, como a possibilidade de anistia a crimes graves.
ACORDO DE PAZ Diante do resultado do plebiscito, o governo voltou a negociar com as Farc, revendo alguns dos pontos mais polêmicos. Sem ser submetido a um novo plebisicito, o acordo de paz foi aprovado pelo Congresso da Colômbia em 30 de novembro. Pelo papel na condução das negociações, o presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, recebeu o Prêmio Nobel da Paz.
OS TERMOS DO ACORDO Em linhas gerais, o acerto prevê a indenização às vítimas, a participação política dos membros das Farc e a criação de um sistema jurídico especial para julgar guerrilheiros, civis e militares. O que mais pode prejudicar o acordo é o fato de membros das Farc insatisfeitos e outras guerrilhas, como o Exército de Libertação Nacional (ELN), sabotarem os esforços para a paz.